Na matéria abaixo o Juiz de Direito lembra mais uma importante função social da propriedade.
Não nos esqueçamos que o imóvel é nosso, mas a forma com que o usamos interfere diretamente com os interesses e até mesmo com a saúde da população.
A liminar foi concedida pelo juiz João Agnaldo Donizeti Gandini, da 2ª Vara da Fazenda de Ribeirão Preto. “A situação é crítica. O interesse público prevalece sobre o interesse privado e, se o imóvel não cumpre sua função social, o direito de propriedade é menor”, afirmou o juiz.
Acho que este tema “função social da propriedade” deve ser dissecado ao extremo. Temos que analisar todas as suas vertentes e fazer com que mais e mais informações acessem o Registro de Imóveis, bem como façamos criar na população o costume de pesquisar tudo aquilo que lhes possa interessar sobre o direito de propriedade (uso, ocupação, restrições administrativas, ambientais etc…).
Somente desta forma o Registro Imobiliário poderá suprir certas dificuldades de comunicação da PMSP e dos seus agentes com a população, uma vez que o Registrador Imobiliários tem interesse apenas em prestar um bom serviço público ao usuário recebendo, em contrapartida, uma justa remuneração estritamente prevista em Tabela de Custas e Emolumentos elaborada pelo Governo Estadual.
Juiz libera arrombar casa por dengue
(Marcelo Toledo, Folha Ribeirão)
A Prefeitura de Ribeirão Preto (314 km de São Paulo) conseguiu ontem uma liminar na Justiça que autoriza a entrada, até por arrombamento, em imóveis que já impediram a visita de agentes do combate à dengue.
Na ação civil pública, movida pela prefeitura e o Ministério Público Estadual, a administração obteve autorização para invadir nove imóveis que se recusaram sucessivas vezes a receber a visita dos agentes do Controle de Vetores. Um novo pedido será protocolado na segunda-feira, com pelo menos mais 50 imóveis.
É o primeiro caso de uso da Justiça para combate à dengue que chega ao conhecimento do Ministério da Saúde neste ano, segundo Fabiano Pimenta, 45, diretor técnico de gestão da Secretaria de Vigilância em Saúde do ministério.
A prefeitura apelou à Justiça porque Ribeirão enfrenta uma epidemia da doença, com 1.467 casos, sendo nove da forma hemorrágica -a mais grave-, com uma morte. A cidade lidera o ranking de casos no Estado, que registrou já 5.767 neste ano.
Munidos da liminar, uma equipe do Controle de Vetores, acompanhada por um chaveiro, tentou cumprir a determinação judicial ontem mesmo. “Temos de sair e executar porque alguém pode recorrer da liminar e complicar a situação. Não estamos brincando, é uma ação que é muito importante para o combate à dengue”, disse Clésio Soares, diretor de Vigilância em Saúde da prefeitura.
Por causa do tempo escasso -a diligência começou às 17h30-, os agentes, o oficial de Justiça Fernando Gentil e um chaveiro só visitaram um imóvel, no bairro Campos Elíseos, onde a entrada dos agentes já fora impedida pelo menos três vezes. No portão, um cartaz xingava os vizinhos e mandava que cada um cuidasse de sua vida.
A invasão, no entanto, não ocorreu. “Como o morador não estava no local para oferecer resistência, como prevê a liminar concedida, voltaremos logo na manhã de segunda-feira para cumprir a determinação judicial”, afirmou Gentil. Os outros oito imóveis também serão visitados no mesmo dia.
Segundo o diretor do Ministério da Saúde, a ação da prefeitura se justifica porque as casas não vistoriadas no momento em que o agente passa comprometem o trabalho de campo. “Se a maioria das casas infestadas estiver nessa situação, isso é suficiente para manter a infestação e propiciar o surgimento de novos casos”, afirmou Pimenta.
A liminar foi concedida pelo juiz João Agnaldo Donizeti Gandini, da 2ª Vara da Fazenda de Ribeirão Preto. “A situação é crítica. O interesse público prevalece sobre o interesse privado e, se o imóvel não cumpre sua função social, o direito de propriedade é menor”, afirmou o juiz.
A liminar contempla três situações: os imóveis que estavam fechados, os locais cujos proprietários se recusaram a receber os agentes e imóveis reincidentes, em que os agentes encontraram focos do Aedes aegypti, transmissor da doença, mais de uma vez.
Aproveito o tema salutarmente destacado pelo nosso Ilustre Colega Eduardo para tecer algumas considerações e conhecer as opiniões dos demais colegas.
A função social da propriedade é um tema intrigante e que está na pauta do dia nas discussões jurídicas atuais.
Eu diria que temos, pelo novo CC, que avaliar uma situação ainda antecedente à função social da propriedade que é a função social da posse.
Esta, na minha opinião, é um subproduto daquela e que conspira em favor da propriedade (exemplificando, com fato real, o plebeu sempre quis (quer) virar nobre, o burguês entendia que a propriedade era significativo de cidadania…..e de liberdade).
Não é de hoje que escutamos falar em função social da propriedade. A dificuldade da conceituação pode ser tema atual, mas não a preocupação com tal finalidade.
Talvez porque a contraposição histórica do conceito de propriedade introduzido pela Revolução Francesa e, por conseqüência, pelo Estado Liberal, em relação ao período feudal, mas especialmente aquele do início do século XX, colocou em tema a função que deve ser atribuída à propriedade privada e acentuou a qualidade dos poderes do titular de domínio.
O Código de Napoleão no art. 544 descreve o direito de propriedade como “o direito de fazer e de dispor das coisas do modo mais absoluto”. Este diploma influenciou a maioria dos ordenamentos jurídicos da época; no direito português vemos a expressão: “a propriedade é sagrada”. Ao proprietário era conferido inclusive o direito de não usar (o que foi enfrentado, na atualidade, pelo próprio Estatuto da Cidade e demonstra os novos rumos da propriedade ou do exercício pelo titular).
O tempo passou e percebeu-se que a propriedade deveria ter novos contornos. Desde a nossa Constituição de 1934 que já temos a previsão de uma propriedade voltada pra os interesses sociais. Talvez por reflexo da Constituição de Weimar de 1919 e do próprio texto constitucional alemão atual (no art. 14, inciso 2 há o seguinte conteúdo normativo: “A Propriedade obriga. A sua utilização deve servir igualmente ao bem de todos da sociedade”). A Constituição Federal de 1988 seguiu a tradição e reforçou o entendimento desta finalidade social (que não se confunde com a socialização da propriedade) da propriedade privada (art. 5º XXIII, art. 170, III, artigos 182, 184 e 186).
No Código Civil de 2002 houve, ao menos na minha opinião, significativa mudança em relação ao conteúdo do direito de propriedade previsto no Código Civil de 1916. Neste, o art. 524, bem como a doutrina, traduziam o individualismo marcante do liberalismo do início do século XX.
Penso, com todo respeito, que a propriedade imobiliária, apesar de ter novos contornos conferidos pelos textos constitucionais, continua a ser a mesma propriedade (na essência), em termos de conceituação, daquela da época do art. 544 do Código Civil francês.
O que ocorreu, no entanto, ao menos na minha opinião, é que o atual texto constitucional, aliado aos diplomas inferiores, deram novos contornos ao direito de propriedade.
Parece que ocorreu não uma nova e diminuída concepção da essência do direito de propriedade, mas sim certa delimitação da extensão dos poderes afetados ao “dominus”, como, dentre outros exemplos, o quanto previsto no § 2º, do art. 1.228, além de preverem maiores restrições ao uso e ao direito de construir dependendo da concreta situação do bem imóvel (urbano especialmente).
Se analisarmos do ponto de vista do aproveitamento a propriedade urbana é redelineada por uma variedade de leis na qual se inclui a própria Constituição, que prevê a garantia do direito de propriedade, mas passa, também, pelo Código Civil, pelo Estatuto da Cidade, pelo Plano Diretor, até as pelas leis municipais de zoneamento.
O Código Civil continua a regular a propriedade individual, sujeita, porém, a nova realidade em que predomina o interesse social.
O caput do art. 1228 do Código Civil de 2002 teve algumas alterações, mas os parágrafos apresentam importantes mudanças. O § 1º apresenta todo entendimento já previsto na legislação esparsa (Código de Águas, Florestal, Reservas Ambientais, etc) sobre o que se esperar do exercício do direito de propriedade. O § 2º (com inspiração no art. 833 do Código Civil Italiano) parece proibir o abuso de direito no exercício dos atributos da propriedade (sem adentrar no mérito da subjetividade não presente no art. 187 da parte geral). O 3º tem origem constitucional, mas o 4º e o 5º, além de novos, ainda são obscuros para mim, ao menos.
O § 4º estabelece que o proprietário poderá ser privado da ação reivindicatória caso a coisa imóvel com extensa área seja ocupada por considerável número de pessoas, com posse ininterrupta e de boa-fé (????), por mais de 5 anos, com realização de obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante. O § 5º prevê o pagamento de justa indenização que deverá ser paga ao proprietário para que os interessados adquiram a propriedade; a sentença servirá de título para o registro.
A impressão que tenho é que o legislador pensou na regularização das favelas – problema urbano da maior relevância -, que se multiplicam nas grandes cidades. Evidentemente que as áreas rurais estão incluídas, pois a lei civil não fez qualquer restrição e se aplica à propriedade em geral, independentemente da qualidade da coisa.
Bom, as questões são inúmeras e gostaria de saber as opiniões dos nobres colegas sobre este tema e dispositivo legal diante as perspectivas registrárias, inclusive; quem deverá pagar a indenização do §5º; os ocupantes? E se não houver o pagamento? Recobra o proprietário o direito de reaver a coisa? Será que este dispositivo terá aplicabilidade? A questão da distribuição da propriedade (tão necessária em nosso Brasil) não é uma atribuição muito mais de ordem política do que do Código Civil?
As desapropriações necessitam de prova de pagamento para o registro. Parece que a exigência deve ser a mesma na hipótese o art. 1228, §5º do CC.
Ah! Acho que não é caso de desapropriação judicial e nem hipótese de pagamento de indenização pelo Poder Público, pois parece não ser possível dar a conta para quem sequer participou da demanda. Sem esquecer a lei de responsabilidade fiscal. Para mim a desapropriação não pode ser a solução deste embrólio legislativo. Ainda, temos a questão incompreensível, ao menos para mim, do termo “boa-fé” contido no teor do §4º. Será que aquele que invade tem, de fato, a boa-fé que se espera nestas situações (sem levar em consideração o espírito político do assunto)? Especialmente aquela referida no art. 1201 e parágrafo único do Código Civil? Não me parece.
Resumidamente para mim os ocupantes é que devem pagar a indenização, mas se levarmos em consideração o destinatário do comando legal do art. 1228 do CC será difícil porque a regra parece ser dirigida às situações em que este poder financeiro não se faz presente.
O que acham os colegas?
O que pensam da função social da posse (o NCC acompanhou a orientação Constitucional do usucapião pro labore)?
Abraços a todos.
Alexandre Laizo Clápis
Marco Bortz disse…
Como sói, o Dr. Alexandre Clápis deixa-nos questões bem difíceis de digerir…
A função social da propriedade é um atributo acrescentado hodiernamente pela implementação do elemento moral ao titular da coisa.
Creio que a compreensão desse novel fenômeno passa, justamente, pela noção do elemento moral integrado tanto aos negócios jurídicos como à propriedade.
A integração do elemento moral (aos negócios e à coisa) induz de forma direta à compreensão do abuso de direito.
Georges Ripert deixa-nos a (belíssima) lição de que: «a teoria do abuso do direito encontrou hoje acolhida nos tratados clássicos de direito civil e a literatura jurídica destes últimos vinte anos é rica no que diz respeito a este assunto (…) Na realidade, nada é mais duvidoso do que o sentido profundo e o alcance da aplicação desta teoria (…) Trata-se, com efeito, de desarmar o titular dum direito, e, por conseguinte, tratar de maneira diferente direitos objetivamente iguais pronunciando uma espécie de decadência contra o que é exercido imoralmente. Não se trata dum simples problema de responsabilidade civil, mas duma questão geral de moralidade no exercício dos direitos» (in A Regra Moral nas Obrigações Civis, Bookseller, 2000, pág. 167/168).
É nítida a dificuldade do próprio (e do grande) Ripert na aplicação da Teoria do Abuso do Direito. O que de certa forma é um consolo, ao menos para este que, longe da capacidade intelectual daquele, sofre verdadeira angústia na compreensão do instituto.
Planiol era contrário à admissibilidade da teoria do abuso do direito, dizia: «esta nova doutrina assenta inteiramente, diz ele, numa linguagem insuficientemente estudada; a sua fórmula, uso abusivo dos direitos, é uma logomaquia porque, se eu exerço o próprio direito, o meu ato é lícito, e quando é lícito é porque excedo o meu direito e atuo sem direito. É preciso não nos deixarmos enganar pelas palavras; o direito cessa onde o abuso começa, e não pode haver uso abusivo dum direito, pela razão irrefutável que um só e mesmo ato não pode ser, ao mesmo tempo, conforme ao direito e contrário ao direito» (op. cit., pág. 170/171). Ao que é respondido por Ripert: «os direitos, efetivamente, não devem ser considerados como absolutos. Quando se verifica que há abuso, é que o titular saiu dos limites legais fixados pelo exercício do seu direito» (op. cit., pág. 171).
Daí que, segundo este entendimento, não se poderia mais dispor da propriedade da forma absoluta como prevista no art. 544, do Código Napoleônico.
No caso do § 4º, do artigo 1.228, do CC, o Juiz tem que reconhecer a realização de obras ou serviços de interesse social e econômico relevante para decreto da usucapião.
Cabia ao proprietário realizá-las, dar utilidade à propriedade, mas este não as fez, quedou inerte quanto à ocupação do solo, portanto abusou da propriedade num sentido negativo, abandono.
Parece que a justa indenização (§ 5º, do art. 1228, do CC) pode ser efetivada pelos possuidores (em forma associativa), como também por intervenção do Poder Público, que se possuir recursos orçamentários, estará autorizado a disponibilizá-los para esse fim.
Se a propriedade está vinculada à sua função social, a posse, que é um atributo daquela, também está.
À própria usucapião pode ser atribuído o exercício da função social da posse.
No tocante à boa-fé dos ocupantes, isso requererá cognição de prova pelo juiz. Afastada a boa-fé não poderão os ocupantes adquirir título de propriedade.
Felizmente essa será uma questão que escapará à qualificação registrária… caberá ao juiz, e só a ele, decidir sobre a boa-fé dos ocupantes.
Enfim, Dr. Alexandre Clápis, fica aqui uma breve reflexão, sem qualquer pretensão de dar respostas, mas apenas de contribuir para amadurecer o debate.
Abraços.