Guerra ao notariado em Portugal

Bom, neste meu primeiro post no Registral – a que me sinto muito honrada de pertencer, e em tão excelente companhia – vou dar uma perspectiva do estado de coisas lusitano no que à função notarial concerne. Temo que a visão optimista de nosso jardim à beira-mar plantado, dada pelo Doutor Marco Bortz no último post, possa sair um tanto ferida do que vou expor; mas, se tiverem paciência de ler o relato de nossa saga, acredito que a diferente perspectiva e visão do problema que nos podem oferecer, pela distância, poderá ser de grande valia.
A história recente da função notarial neste jardim à beira-mar plantado valia bem uma Odisseia – o que, tendo em conta que Lisboa foi Olissipo para os romanos, se revela até muito adequado; e por certo que não têm os governantes daquela capital do Império razões menos nobres que as de fazer a sina de um nome encontrar cumprimento pleno…
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O estatuto do notário português variou imensamente na história; mas acreditem que os últimos três anos nos bastarão bem para a presente reflexão.
Corria o ano de 2004 quando o governo PSD resolveu cumprir um anelo que vinha revelando há algum tempo, e que aproximaria o notariado português do sistema do notariado latino que se vem praticando nos demais países da Europa. A ministra da Justiça de então, responsável por algumas revoluções mais ou menos precipitadas durante o seu mandato (outro bom exemplo seria a reforma da acção executiva), promulga um conjunto de legislação no sentido da privatização do notariado, criação de uma Ordem dos Notários e correspondente Estatuto da Profissão, e abre um concurso a todos os licenciados em Direito para atribuição do título [Decreto-Lei nº 26/2004, de 4 de Fevereiro – Aprovação do Estatuto do Notariado; Decreto-Lei nº 27/2004, de 4 de Fevereiro – Criação da Ordem dos Notários e aprovação do respectivo estatuto; Portaria nº 385/2004, de 16 de Abril – Aprovação da Tabela de Honorários e Encargos Notariais; Portaria nº 398/2004, de 21 de Abril – Aprovação do Regulamento de Atribuição do Título de Notário].

Sobre os motivos do Governo, podemos apenas especular. Talvez que a ideia fosse realmente acabar com a discrepância injustificada relativamente aos nossos congéneres europeus; talvez que se tenha reconhecido que só um notariado privado, dinâmico, muito distante do funcionário público cinzentão que nos habituámos a conhecer, pudesse servir tão altos interesses de segurança jurídica e valores de fé pública à entrada de um novo milénio. Talvez que, pelo contrário, houvesse pressa apenas em libertar o erário público do pesado fardo de uma estrutura quixotesca e pouco eficiente, transferindo para o domínio privado os seus custos juntamente com os seus ganhos.

Fosse qual fosse a verdadeira razão da revolução, ela deu-se, e ganhou vida própria. Os notários que então exerciam a sua profissão como funcionários públicos foram convidados a escolher entre a privatização e as conservatórias (Aviso nº 4994/2004, de 20 de Abril. Foi ainda concedido àqueles que quiseram arriscar o novo modelo, bem como aos funcionários que os acompanhassem na aventura, um prazo de cinco anos para, querendo, retornar à função pública, diminuindo consideravelmente a margem de risco da opção, mas ainda assim colocando numa posição algo desconfortável uma classe que não tinha qualquer tradição recente de corporativismo (nem no bom nem no mau sentido) e que se habituara à modorra da função pública. Ainda assim, muitos embarcaram na grande nau, e vêem-se hoje na situação que já conhecerão.

Quanto ao concurso para atribuição do título nesta fase transitória, foi aberto em Outubro de 2004 (Aviso nº 9225/2004, de 6 de Outubro), dirigia-se a todos os licenciados em Direito e implicava exames e um estágio de três meses num cartório. No futuro, o sistema de atribuição previa-se próximo daquele que regula a entrdaa na advocacia, com um estágio de 18 meses. Não surpreendentemente, o concurso obteve uma grande adesão junto de uma camada profissional tristemente votada ao desemprego ou à exploração por sociedades de advogados transformadas em grandes empresas. Mais de 1500 juristas, a maioria deles recém-licenciados ou quase, responderam à chamada. Organizaram-se cursos de preparação para o exercício da função notarial – que é como quem diz, preparação para os exames do concurso – que, no caso das universidades privadas (no caso das universidades públicas, duvido), devem ter gerado verbas bastantes razoáveis.

Num fim-de-semana solarengo de Dezembro, lá se realizaram as provas escritas, sempre na Capital do Império, porque o resto do país é paisagem, e lá me obrigaram a celebrar em campo inimigo uma retumbante vitória do meu Futebol Clube do Porto. As provas ocuparam duas tardes e uma manhã, e apresentaram um nível de dificuldade que eu consideraria acima da média, mas adequado à importância da função a exercer. Muitos dos candidatos faltaram logo no primeiro dia; maior parte ainda desistiu depois do primeiro round; mas uma grande parte foi ainda até ao fim.

Dizia-se, a esta altura, que o mais tardar em Março seguinte (= de 2005) aqueles que houvessem superado as provas deveriam ter já tomado posse. Mas faltava a entrevista, algo de semelhante a uma prova oral, sem carácter eliminatório (com funções de mera graduação), e para essa, claro, era indispensável que saíssem os resultados da prova escrita.

Ora, algures entre Dezembro e Março, o Primeiro-Ministro de então resolveu ir pregar para uma freguesia mais alargada, mais especificamente alargada a 25 países, e abriu uma crise política que, se não tivesse sido tão rísivel, seria trágica. O Presidente da República não quis dissolver o Governo, mas o povo agradou-se pouco do substituto deixado à pressão, e em última instância fomos mesmo a votos.

O Partido Socialista ganhou com uma maioria esmagadora. No que diz respeito ao notariado, da vaguidão do programa podia apenas concluir-se que havia muito pouca simpatia pelo processo de privatização iniciado pelo PSD e que o único limite (esse mesmo eventual) à tentativa de o reverter seria o princípio básico da legalidade de um Estado de Direito.

To make a long story short, começou aí um percurso de completa surdez-mudez do Estado relativamente aos candidatos. O dinheiro e o papel que foi gasto em comunicações para a Direcção Geral dos Registos e Notariado, nosso único interlocutor até então, sempre sem resposta palpável, talvez tivesse alimentado durante alguns meses um cartório deficitário do interior. Em Março, finalmente – supostamente quando deveríamos estar a tomar posse – fizemos as entrevistas. Ficámos então a saber que, dos mais de 1500 candidatos iniciais, apenas 121 haviam superado a fase escrita.

Bastante tempo depois, saiu a graduação provisória, e abriu-se um período de impugnação que, suponho, não levantou questões de maior. Todavia, a lista de graduação final demoraria muitos mais meses a sair, muito embora intocada, aparentemente apenas acrescentada da assinatura do Ministro. Não poderia dizer a data exacta porque, algures a meio deste caminho, o cansaço venceu-me e deixei de as registar, passando pura e simplesmente a esperar. Qualquer imprecisão na descrição desta via sacra, ou na fixação das datas dos eventos, apenas a esse cansaço se deve, e não a alguma tentativa de, como se diz em Portugal, puxar a brasa à minha sardinha; a sardinha está visivelmente estorricada, sem que seja precisa chama mais forte que a obviedade dos factos.

O isolamento completo a que a maioria dos candidatos estava votado tornou o calvário ainda mais desesperante. Só muito mais tarde acabaríamos por nos descobrir uns aos outros e montar um sistema de comunicação minimanente eficaz, com algumas reuniões pelo meio. Muitas das pessoas envolvidas haviam assumido o firme propósito, mesmo de antes da privatização, de enveredar pela carreira notarial, e encararam o concurso com a normalidade de quem responde a uma chamada estatal num Estado de Direito – com confiança plena. Começaram a redesenhar as suas vidas, perderam longas horas de estudo, redefiniram carreiras.

Em Março novamente, MAS DO ANO SEGUINTE (o corrente), fomos finalmente admitidos ao estágio em cartório notarial. Sem qualquer espécie de pré-aviso, já se vê, uma página da Internet até então completamente estática impunha-nos de repente 10 dias úteis para desencantar um orientador. E assim fizemos todos, todos os 121, com um prazo ultra escasso de mais 15 dias úteis para abandonar tudo o que estivéssemos a fazer e ficar no cartório cinco dias por semana, com um máximo de faltas de duas por mês.
Espantosamente, todos largaram os seus empregos e seguiram um sonho que cada vez mais ameçava fugir. Por esta altura as ameaças veladas do Governo socialista no início do seu mandato iam-se concretizando por intermédo dos jornais, enquanto nunca nos permitiram chegar à fala directa sequer com um Secretário de Estado, quanto mais com o Senhor Ministro!

Pessoalmente, nada fazia no momento, pelo que a única grande desvantagem que sofri foi a necessidade de me mudar para Lisboa. De facto, farta de aguardar indefinidamente que as coisas evoluíssem, inscrevi-me num Mestrado de uma área completamente diferente, na capital, o que seria completamente inconciliável com um estágio a tempo inteiro na minha terra de origem. Foi custoso, mas daí só resultaram coisas boas, pelo que nem disso me arrependo. Mas imagino os meus colegas pais e mães de família, obrigados a trocar empregos certos pela insegurança completa, ou melhor, pela segurança de uma dívida enorme a um banco.

Durante o estágio a situação deteriorou-se. Todas as competências notariais relativamente à vertente comercial foram profundamente descaracterizadas, na medida em que o DL 76-A/2003 acabou com a obrigatoriedade de escritura pública para todos os actos relativos a sociedades comerciais. Os poucos actos “de balcão” que ainda não haviam sido generalizados aos advogados foram-no na mesma lei, incluindo a autenticação de documentos. Foi adiantado várias vezes por fontes governamentais que a seguir à reforma empresarial viria a reforma dirigida ao cidadão, e rumores nada despiciendos prometeram a abolição da escritura pública para a compra e venda de propriedades, através de um processo expedito e concentrado nas conservatórias do registo predial (actualmente completamente entupidas, SEM tais competências). A opinião pública vai sendo (des)esclarecida por artigos e notícias estrategicamente colocados, quase sempre nas mesmas fontes. Qualquer tomada de posição por parte dos notários será irremediavelmente rotulada de corporativismo primário e obstáculo à modernização.

Neste pé estamos hoje, havendo apenas que acrescentar que nas semanas finais do estágio abriu o concurso para as licenças dos cartórios, exclusivamente destinados ao nosso grupo (muitos mais, aliás, do que os candidatos); às indagações directas o gabinete do senhor Ministro (nunca o próprio) responde que nem sim nem sopas. Isto quando nos não sugere que fomos avisados através de um programa eleitoral vaguíssimo e que, ainda que não o fosse, nunca poderia fazer tábua rasa das obrigações assumidas pelo mesmo Estado, ainda que através de um diferente Governo, se Portugal se quer manter um Estado de Direito!

Sugeriram-nos que adiantássemos competências que pudéssemos vir a desempenhar no Portugal do plano tecnológico. Mas que espécie de nação é esta em que o Estado não sabe definir as funções daqueles aos quais entrega a fé pública, antes contando com a sua colaboração para os «encaixar» onde aborreçam menos e vão , preferencialmente, caminhando rumo à extinção?

A Ordem, cujos órgãos foram entretanto, e não sem perturbação, eleitos da única lista que se apresentou, não parece ter conseguido até agora, tão-pouco, que o Ministério a esclareça de uma vez por todas que destino configura para os notários. A opinião pública, convencida que apenas o corporativismo dita as reclamações da classe, aplaude o Governo, sem se aperceber que daqui uns meses a situação dos tribunais, já calamitosa, explodirá, também em virtude disto. A segurança jurídica não é normalmente preocupação dos leigos, nem teria que o ser, se as operações de marketing do Governo não o tivessem levado a esquecê-la, a ele que devia ser o seu principal garante.O Ministério da Justiça alardeia as perdas de receitas que sofreu com a privatização, ocultando deliberadamente informação essencial, como a diminuição de custos em funcionários e logística e o enorme aumento das receitas entradas no Ministério das Finanças que, queremos supor, não é um compartimento estanque do Governo.

Algumas vozes esparsas colocam objecções; fá-lo o Sindicato do Ministério Público e a própria Ordem dos Advogados, com a sugestão de que a lei de simplificação dos actos relativos a sociedades comerciais pode entrar em conflito com a I Directiva Comunitária sobre sociedades, na parte em que exige documento autêntico para a celebração de determinados actos. Da parte do Governo, meia bola e força.
Em suma, dizem-nos por todas as formas possíveis que conseguem encontrar, excepto a directa, que fomos condenados à extinção. Que os planos de modernização administrativa com que sempre sonharam para o país não podem ser travados por uma reforma precipitada do Governo anterior, e que à nossa posição jurídica falta qualquer espécie de solidez. E todavia – isto é o mais espantoso de todo o muito que aqui escrevi – é nesta insustentável leveza de espírito que publicam SEGUNDO CONCURSO DE ATRIBUIÇÃO DO TÍTULO DE NOTÁRIO ( AVISO N.º 1582-A/2006, 2ª série), sem terem tomado posse os candidatos que venceram o primeiro, e sem tão-pouco terem sido esclarecidos do papel que são chamados a desempenhar no futuro! Se em relação a nós a desculpa era a indesejabilidade do fardo herdado de um projecto alheio, relativamente a estes novos colegas qual será o pretexto para os arrastarem para uma travessia cega?

Apenas os bancos e as empresas de software parecem convencidos de que a nossa profissão florescerá, e nos assediam em conformidade. Apenas, não: também os meus colegas do Grupo dos 121 (como acabámos por lhe chamar) parecem espantosamente optimistas, atendendo às circunstâncias. Felicito-os, mas não os posso seguir; não tenho razões para ser optimista e, felizmente, não sou pessoa de vocação única. Tenho plena consciência que qualquer reivindicação nossa que se alicerce em expectativas legítimas ou em sinceras preocupações de segurança jurídica será por todos interpretada como mais um lamento corporativo – tentatação que, aliás, muito facilmente atrairá a classe nos momentos derradeiros, levando-a a esgrimir os mais antipáticos agrumentos quando os há bons, e válidos. E aqui ao lado, a Espanha, onde os notários são o próprio veículo da modernização administrativa, e nunca um alvo a abater por quem a tem em vista!
Não choro os dois anos gastos, nem sequer o (muito) dinheiro despendido, porque não tenho feitio para tal. Conheci gente de que gostei muito, e outra de que gostei bem menos. Aprendi coisas que de outra forma nunca aprenderia, e vi abrir portas que nem sabia que existiam. Estou melhor, agora, do que há dois anos atrás, mas isso é um resultado puramente aleatório, se calhar o único positivo das 121 vidas alteradas. No notariado ou fora dele, procurarei escolher um caminho que me ponha o mais possível a salvo da má-fé do Estado sendo certo que, com a actual estrutura das coisas, o mais que posso almejar é a estar tão vulnerável como um sujeito a correr num descampado; não há construção da nossa vida que o poder central, num dia mau dos governantes, não consiga hoje destruir num estalar de dedos. Pelo menos isso, está aprendido.

P.S. Qualquer imprecisão – que as há, por certo – neste texto, cronológica ou outra, fica a dever-se não a má-fé mas a fraca memória (já lá vão quase dois anos que a história começou…) e será imediatamente corrigida quando assinalada; para isso peço os reparos dos meus colegas de blog, particularmente os portugueses.

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