Direito de propriedade ameaçado?

Em artigo publicado hoje no Valor Econômico (legislação & tributos, E2), assinado por Danilo Pieri Pereira, questiona-se o Provimento 1/2006 do TST, que na opinião do autor “ameaça de maneira gravosa o direito do cidadão de dispor de seus bens livremente”.

O Provimento versa sobre a desconstituição da personalidade jurídica a fim de alcançar a responsabilização dos sócios. Pretende o ato normativo “proteger o terceiro de boa-fé contra a má-fé dos sócios executados, que, ao se sentirem ameaçados em seu patrimônio pessoal, buscam se desfazer de seus bens, valendo-se, para tanto, de certidões negativas na Justiça do Trabalho”.

O advogado e articulista também repercute esse tema: “com isso, em tese o terceiro, quando negociar bens com alguém que é ou já foi sócio de alguma empresa, poderá evitar a conclusão do negócio, caso detecte que o alienante é devedor na Justiça do Trabalho”.

Será?
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Basta responder a uma simples pergunta: a quem ocorreria diligenciar pesquisas na JT em nome do alienante (pessoa jurídica) e, além disso, solicitar certidões das juntas comerciais ou registros civis de pessoas jurídicas e, com essa informação, extrair certidões em nome dos sócios, diretores, membros do conselho de administração, gerentes estatutários, diretores, advogados etc.?

Francamente! E o custo de diligência e investigação? E a possibilidade de a ação ser proposta em outras comarcas? A aquisição de bens imóveis passa a ser uma aventura lotérica, logo se vê!

Voltamos pateticamente às discussões que se acham nas origens da legislação hipotecária decimonômica, quando se buscava obviar a existência dos danosos créditos privilegiados e ocultos. É disso que deveríamos estar a tratar – publicidade da constrição judicial pelos meios mais modernos e eficazes de publicidade jurídica. Não deveríamos estar perdendo tempo em reformar a publicidade deficiente dos distribuidores judiciais.

Diligenciar uma certidão negativa para realizar com segurança um negócio jurídico imobiliário é quase uma probatio diabolica. Ordinariamente, não se extraem certidões que abarquem a amplitude de todas as ocorrências possíveis. Algumas vezes a iniciativa é simplesmente inócua. Só por essa razão, o mecanismo alvitrado pelo TST deve ser considerado inadequado e, portanto, insuficiente para garantir o terceiro de boa fé. Estamos incorrendo e maiores custos transacionais para a circulação das riquezas. Isso é genuinamente inflacionar o “custo Brasil”.

Somente com o registro das constrições judiciais vamos alcançar o nível de segurança desejado pelo sistema.

As penhoras e as recentes investidas legislativas (como a disseminação de indisponibilidades decretadas a granel) estão a demandar um estudo detido sobre a imobilização da propriedade, pois, concordando com Danilo Pieri Pereira, o Direito não pode prejudicar nem minorias, nem favorecer maiorias.

O direito de Propriedade está ameaçado

O novo provimento da Corregedoria-Geral do Tribunal Superior do Trabalho (TST) recomenda aos juízes corregedores dos tribunais regionais do trabalho (TRTs) que determinem aos magistrados de primeira instância que, ao optarem pela desconsideração da pessoa jurídica no processo de execução, voltando-se contra o patrimônio dos sócios, ordenem também a retificação da autuação do processo, para que figurem no pólo passivo os nomes das pessoas físicas envolvidas, a fim de que essas não possam obter certidões negativas de débitos trabalhistas em cartório.

Na prática, o juiz da execução, ao deferir o pedido do autor acerca da desconsideração da pessoa jurídica, deverá determinar, no mesmo despacho que ordenar a citação para pagamento, garantia da execução ou penhora de bens, que seja feita a reautuação e inclusão do sócio executado no rol de devedores daquele fórum trabalhista, evitando, assim, a expedição de certidões negativas em seu nome.

Com isso, em tese o terceiro, quando negociar bens com alguém que é ou já foi sócio de alguma empresa, poderá evitar a conclusão do negócio, caso detecte que o alienante é devedor na Justiça do Trabalho, ao solicitar uma certidão negativa. Embora a medida a princípio pareça salutar, resguardando tanto o direito do trabalhador como do terceiro de boa-fé, ela pode também causar graves violações ao direito de propriedade, garantido constitucionalmente.

A desconsideração da pessoa jurídica ganhou notoriedade no país com a edição do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que prevê que “o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”.

Tendo em vista que o CDC é de aplicabilidade restrita às relações de consumo, a jurisprudência se dividiu quanto à possibilidade de desconsideração da pessoa jurídica também em litígios de outras naturezas, como os trabalhistas. A discussão perdeu espaço com a entrada em vigor do novo Código Civil que, além de adotar para outras relações obrigacionais o instituto já vigente para as relações de consumo, também ampliou a responsabilidade pessoal das pessoas físicas, atribuindo responsabilidade pela dívida não só ao sócio, mas também aos administradores da sociedade respectiva.

Dada a vasta possibilidade de administração e gestão conferida pelas leis societárias, a jurisprudência trabalhista vem cada vez mais ampliando o grau de incidência da norma e alargando enormemente o conceito de desconsideração da pessoa jurídica, para estabelecer responsabilidade também aos membros do conselho de administração, gerentes estatutários e delegados e diretores das sociedades por ações.

De qualquer sorte, o princípio geral que deve nortear a amplitude da desconsideração da pessoa jurídica de forma justa e racional parece ser o da responsabilidade pessoal do gestor empresarial apenas por seus atos de gestão. Nessa linha, só responde subjetivamente aquele que puder ser responsabilizado pessoalmente pelos eventuais prejuízos causados ao trabalhador decorrentes de uma má-gestão sua no tempo da prestação de serviços ou do pagamento do crédito trabalhista.

Ocorre que, no afã de dar satisfação a créditos trabalhistas não garantidos pela sociedade, muitos credores acabam por obter a determinação judicial de constrição de patrimônio de pessoas que não figuraram no quadro societário à época de prestação de serviços, o bloqueio de bens de sujeitos que sequer possuíam poderes de gestão societária e até mesmo de procuradores dos acionistas, conselheiros e administradores, normalmente advogados, que apenas tiveram poderes de representação em troca de honorários por serviços prestados, nos termos da lei. Há que se ressaltar, ademais, que não é incomum estarem defasadas as informações societárias advindas das juntas comerciais dos Estados.

Assim, embora o Provimento nº 1, de 2006, se apresente bastante salutar quando corretamente aplicado, ele igualmente ameaça de maneira gravosa o direito do cidadão de dispor livremente de seus bens, na medida em que se poderá lançar no rol de devedores da Justiça do Trabalho pessoas que nada têm a ver com a execução trabalhista em questão, antes mesmo que a sua possibilidade de responsabilização seja confirmada, o que viola o direito de propriedade, garantido constitucionalmente.

A parte final do novo provimento, aliás, prevê que, uma vez comprovada a inexistência de responsabilidade desses sócios, seja imediatamente cancelada a inscrição da pessoa judicial da lista negra de devedores. Isso demonstra claramente que a medida tende a acusar primeiro para perguntar depois. Quanto aos eventuais prejuízos sofridos moral e materialmente por aquele que se viu impedido de obter certidões negativas, o provimento nada esclarece.

Como se vê, a nova recomendação do TST, que deverá passar por reformulações e adaptações pelas corregedorias de cada tribunal regional do trabalho do país nos próximos meses, provavelmente ainda causará muita discussão e, até que se chegue a um entendimento razoável de como aplicá-la de forma equânime, o direito de propriedade do cidadão corre o risco de ser vilipendiado. E não venham com estatísticas para justificar que, em mil casos, apenas 50 apresentaram problemas, pois o direito não pode prejudicar nem as minorias e nem favorecer as maiorias.

Danilo Pieri Pereira é advogado da área trabalhista do escritório Demarest e Almeida Advogados

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