Portugal é surpreendente. Aniquila a atividade essencial dos notários – ao universalizar os documentos privados – e fomenta a desestruturação das instituições jurídicas, deslocando atividades tipicamente jurisdicionais para instâncias extra-judiciais.
Vejam a nota abaixo, assinada pelo jornalista Nelson Morais.
Notários vão decidir partilhas litigiosas
Ordem dos Notários manifesta reservas em decidir partilhas que vão além dos actuais processos amigáveis
Ontem (NELSON MORAIS)
Proposta de Lei aprovada pela Assembleia da República pretende descongestionar tribunais, mas magistrados duvidam que a desjudicialização do processo de inventário respeite os limites da Constituição
O Governo quer retirar os processos de partilhas litigiosas dos tribunais e entregá-los aos notários, mas procuradores e juízes estão contra esta desjudicialização do processo de inventário. Até a Ordem dos Notários tem dúvidas.
Os notários já tratam de partilhas amigáveis, mas, segundo diz ao JN a sua bastonária, Carla Soares, “é muito questionável que a resolução dos litígios seja entregue a uma entidade que não é juiz”. De resto, a Ordem dos Notários não deu parecer positivo à iniciativa legislativa do Ministério da Justiça.
Esta já tem forma de Proposta de Lei e até prevê que o acordo alcançado sobre a partilha de bens, por herdeiros ou membros de um casal divorciado, seja homologada por um juiz. A garantia, contudo, não convence a Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), nem o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP). Em pareceres enviados ao Parlamento, no mês passado, defendem mesmo que a Proposta de Lei n.º 235/X pode violar a Constituição.
Nos tribunais, os processos de inventário são sujeitos a distribuição aleatória. Já o regime proposto dá ao requerente (herdeiro ou divorciado) “inteira liberdade de escolher o decisor do processo (optando por um dos cartórios notariais à sua disposição), não havendo qualquer mecanismo de oposição dos demais interessados. Esta opção legislativa parece-nos de constitucionalidade duvidosa”, sustenta a ASJP, que lembra a recente liberalização do notariado.
Aqui, a bastonária Carla Soares contrapõe que “o notário tem o dever de ser imparcial” e pode responder, disciplinarmente, perante a Ordem ou o ministro da Justiça.
Aos procuradores caberá comparecer nos notários e conservatórias para as conferências de interessados. Obrigação que levou o Conselho Superior do Ministério Público a alertar para a “inconstitucionalidade da desjudicialização do inventário”. O Sindicato subscreve, notando que o MP “é um órgão com consagração constitucional e inserido nos tribunais”. “Desloca-se o magistrado do tribunal ao notário que é um agente privado?”, questiona a própria Ordem dos Notários.
Mais uma vez, o Poder Político diverge dos operadores judiciais. A 10 de Janeiro, todos os partidos com assento parlamentar aprovaram a Proposta de Lei n.º 235/X, na generalidade. Só lhes resta discuti-la e votá-la na especialidade.
Para o Governo, trata-se de descongestionar os tribunais, onde os processos de inventário têm tramitado de modo “excessivamente moroso”. Procuradores, juízes e notários duvidam da eficácia do novo diploma.
“Não sabemos se o Governo efectuou o estudo de qual será o impacto estatístico desta medida na diminuição das pendências, mas com certeza não terá uma relevância significativa”, prevê o SMMP. A ASJP receia que a adaptação das conservatórias e dos cartórios notariais ao novo diploma, “se exequível, seja bastante morosa, assim impedindo que o objectivo de prestação de um serviço mais célere seja alcançado”.
Já a Ordem dos Notários duvida que haja uma diminuição “relevante” das pendências, porque a Proposta de Lei concede ao juiz o “controlo geral” do processo, permitindo-lhe “chamar a si a decisão das questões que entender dever decidir”, justifica. Ainda assim, ao JN, a bastonária Carla Soares diz que a obrigatoriedade de as partes recorrerem aos notários poderá evitar processos de inventário.
Fonte: http://jn.sapo.pt/PaginaInicial/Nacional/Interior.aspx?content_id=1170683