O gato de notas – ou a eficácia jurídica nas franjas

A questão da regularização fundiária está mesmo na ordem do dia.

Depois de a MP 459 consagrar a gratuidade plenária para a regularização e demarcação urbanísticas; após sufragar o princípio de que é preciso tirar dos pobres para dar aos ricos para dar à campanha política (vide a nova velhacaria do art. 237-A), a questão dos bens de consumo passa a representar certo interesse para os estudiosos.

Afinal, os bens de consumo que estão fornindo os lares da comunidade favelada, segundo o Estadão – TVs a plasma, geladeiras, ar condicionado, ventilador de teto, máquina de lavar, chuveiro elétrico, computador etc. – podem ser considerados bens próprios? São exemplos de propriedade privada? Via de consequência, a própria ocupação deve ser convertida em propriedade privada?

Alguns entendem que não. Afinal, a propriedade privada é um roubo – além de representar um direito absoluto, o que sempre agride ouvidos relativos. “Logo esses bens de consumo não devem ser adquiridos, mas locados diretamente nas Casas Bahia”, diz o sardônico Dr. Ermitânio.

Já fiz uma sumária apresentação do Dr. Ermitânio Prado. Advogado aposentado, leitor contumaz de biografias ilustres, numismata, é um “assinante imemorial” do Estadão ( “os Mesquitas me devem uma assinatura perpétua!”). Conhecido no círculo estrito de amigos como o Leão do Jocquey, por sua voz tonitruante e sentenciosa.

Dr. Ermitânio leu no Estadão de hoje que uma interessante discussão empolga as comunidades faveladas do Rio de Janeiro. Com a vinda da segurança pública, a reboque vêm os tributos, as contribuições, as assinaturas, as tarifas etc. Aqui, justamente, reside a questão econômica da informalidade e de seu custeio. Alvitra-se uma “tarifa social” para todos esses bens e serviços que, afinal, eram consumidos regularmente pela comunidade.

Nada mais justo. O que Dr. Ermitânio não compreende, entretanto, é que para a regularização do bem mais importante  – o domínio das áreas ocupadas – não se pagará absolutamente nada.

Realmente, todos concordam que a MP 459, ao prever a gratuidade plenária no seu artigo art. 72, comete uma grande injustiça com os registradores imobiliários, que serão demandados em um procedimento complexo e custoso. Patenteia-se, com a medida, que a regularização fundiária (ou a arrecadação urbanística) terá menor importância que os bens de consumo e serviços públicos pelos quais, afinal, os moradores se propõem a pagar.

O Leão diz que a locação social, que a ninguém interessa na comunidade, está sendo passada como o gato contratual, serializado nas agências estatais e distribuído como volantes políticos para fatura eleitoral postergada. Tudo graciosamente, à custa de terceiros.

Diz que a cidade ilegal, cravejada de pardos diamantes enquistados na floresta úmida, é a “consumação perfeita do ideal bolivariano de distribuição universal e democrática de benefícios e vantagens. Sem contraprestação pecuniário e trabalho”.

Dr. Ermitânio Prado volta, como se vê, ao batido tema do contubérnio entre indolência e clientelismo político que, segundo ele, “esquadram a cidade moderna nestes tristres trópicos”.

“A cidade é gizada por linhas concêntricas que levam, todas elas, a uma Nova Roma tropical!”. Acomodado em sua poltrona Sheriff, pontifica o que seja integração social nestas condições:

– É o acesso universal ao Sexy Hot e às delícias lagomorfas de Hugh Hefner. O desejo revolucionário agora é pautado pelas redes clandestinas da TV a cabo. A GatoNet é índice de barbarike epinoia, suprema afirmação de ativismo sexual, político e cultural. Neo-socialismo desbastado pela troca de tiros e juras de amor eterno: pay-per-view agenciado pelo tráfico dadivoso…

O fim da violência na Comunidade Batam, segundo registra o Estadão, levou a uma consequência inesperada – e até certo ponto indesejada pela comunidade: o fim do GatoNet e da esbórnia que levava às frágeis chabolas o ar condicionado que falta aos hospitais da periferia.

– “Inclusão social!”, diz o Leão. “Inserção tecnológica!” , brada inconformado. “Ação afirmativa é TV a plasma, pagode, Orkut e fogão elétrico!”, conclui, azedo.

O fim da violência no Santa Marta e nas comunidades adjacentes tem lá os seus limites. Segundo Dr. Ermitânio, a higienização propalada pelas agências internacionais de financiamento só não bate às portas das imobiliárias e ONGs, que desovam seus títulos de regularização (pra lá de tortuosa e interessada), porque a dita é “promovida com vistas a um pacto político e social cerzido pela Administração, que a todos benze, satisfaz e compraz”.

“Contrato social é escambo eleitoral”, conclui.

Dr. Ermitânio sempre termina o colóquio irritado. Diz que não se importa se a mula é manca. “Afinal”, remata rancoroso, “liberdade e propriedade privada são conceitos plásticos, como os bairros de Notting Hill ou Paddington”

Nada mais lacônico, Dr. Ermitânio, nada mais lacônico!

Um comentário sobre “O gato de notas – ou a eficácia jurídica nas franjas

  1. Bem interessante esse texto, só tenho um comentário a fazer, concordo plenamente, não há injustiça maior nesse Estado de Direito em que vivemos, do que o acesso a propriedade privada (produtos eletro-eletrônicos) por meio de pagamento mensal e sem atraso, e a regularização da propriedade imobiliária, ou seja, o seu registro imobiliário ser gerado sem qualquer ônus ao interessado. Bravo, bravo, nobre registrador, deixo aqui o meu incorformismo e a minha revolta com tal situação.

    TFA

    Guilherme Trivelato Centella .’.

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