Ordem judicial ilegal deve ser cumprida?

Instaurei uma discussão no Grupo Registradores do LinkedIn com o objetivo de buscar uma saída jurídica para o impasse paradoxal consistente na admissão de títulos de origem judicial eivados de nulidade.

É certo que em nosso sistema uma ordem judicial deve ser cumprida; certo, ainda, que a determinação judicial presume-se conforme a ordem legal e jurídica.

Mas isto não tem acontecido.

Mesmo a superação dos óbices levantados pelos cartórios, para a admissão de títulos como o que se vê abaixo, nunca se dá com a apreciação do óbice oposto pelo registrador com a sua superação com base e fundamento legal.

Simplesmente a questão se encerra no exercício da potestas, descuidada, desde algum tempo, da correlata autorictas. 

Os termos da discussão postos em debate são estes:

Ordem judicial manifestamente ilegal, por infringir expressa determinação legal, deve ser cumprida?

O fato que assim tem decidido o STJ. Os registros feitos nessas condições deixarão de ser nulos de pleno direito? Serão anuláveis por iniciativa do atingido? E os terceiros que adquirirem o imóvel? Ou, para liquidar a questão: toda nulidade será absolvida por uma decisão judicial, ainda que manifestamente ilegal?

Penhora – continuidade. Título judicial – qualificação registral – desobediência – crime. Continuidade.

EMENTA NÃO OFICIAL. 1 – A origem judicial do título não o livra da qualificação registral. 2) – Embora eivada de nulidade, por ferir preceitos legais, a ordem judicial deve ser cumprida.

Processo nº. 0023397-02.2011 Pedido de Providências Requerente:15º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca da Capital. CP 167 (D.J.E. de 27.06.2011)

VISTOS.

Cuida-se de representação formulada pelo 15º Oficial Registro de Imóveis, que informa ter averbado, por determinação do MM. Juízo da 69ª Vara do Trabalho, sob pena de crime de desobediência, penhora no imóvel objeto da matrícula nº 97.886 com violação ao princípio da continuidade registral.

O Ministério Público manifestou-se no sentido de que eventual prejuízo ao proprietário deverá ser solucionado perante o MM. Juízo do Trabalho (fl. 19).

É O RELATÓRIO.

FUNDAMENTO E DECIDO.

Observe-se, de início, consoante reiterado posicionamento do E. Conselho Superior da Magistratura, que a origem judicial do título não o isenta de qualificação. Nesse sentido:

“Apesar de se tratar de título judicial, está ele sujeito à qualificação registrária. O fato de tratar-se o título de mandado judicial não o torna imune à qualificação registrária, sob o estrito ângulo da regularidade formal, O exame da legalidade não promove incursão sobre o mérito da decisão judicial, mas à apreciação das formalidades extrínsecas da ordem e à conexão de seus dados com o registro e a sua formalização instrumental”.

O Egrégio Conselho Superior da Magistratura tem decidido, inclusive, que a qualificação negativa não caracteriza desobediência ou descumprimento de decisão judicial (Apelação cível n.413-6/7).

Quanto ao mais, a recusa do Oficial de Registro de Imóveis mostra-se correta porque violado o princípio da antiguidade que, de acordo com a doutrina de Afrânio de Carvalho, quer dizer que:

“em relação a cada imóvel, adequadamente individuado, deve existir uma cadeia de titularidade à vista da qual só se fará a inscrição de um direito se o outorgante dele aparecer no registro como seu titular. Assim, as sucessivas transmissões, que derivam umas das outras, asseguram a preexistência do imóvel no patrimônio do transferente” (Registro de Imóveis, Editora Forense, 4ª Ed., p. 254).

Na mesma senda, Narciso Orlandi Neto, in Retificação do Registro de Imóveis, Juarez de Oliveira, pág. 55/56, observa que:

“No sistema que adota o princípio da continuidade, os registros têm de observar um encadeamento subjetivo. Os atos têm de ter, numa das partes, a pessoa cujo nome já consta do registro. A pessoa que transmite um direito tem de constar do registro como titular desse direito, valendo para o registro o que vale para validade dos negócios: nemo dat quod non habet”.

O princípio da continuidade é tratado pela Lei nº 6015/73 em seus arts. 195 e 237, in verbis:

“Art. 195 – Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro.”; e

“Art. 237 – Ainda que o imóvel esteja matriculado, não se fará registro que dependa da apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a continuidade do registro.”

No caso em exame, a penhora recaiu sobre imóvel que se encontra registrado em nome de pessoas diversas dos executados na reclamação trabalhista, resultando em patente quebra da continuidade.

A despeito do acerto do Oficial e de sua louvável cautela, que deve ser mantida em casos análogos para que sobre si não recaia qualquer tipo de responsabilidade, recentemente o E. STJ, no conflito de competência nº 106.446, relator Min. Sidnei Beneti, entendeu ser o juízo do Trabalho o único competente para decidir sobre o registro da carta de arrematação, incumbindo-lhe zelar pelo fiel cumprimento da Lei dos Registros Públicos.

Diante desta nova orientação, malgrado o posicionamento deste juízo, que vinha sistematicamente cancelando os registros eivados de nulidade de pleno direito como o presente, o registro não pode ser cancelado.

Posto isso, INDEFIRO a representação do 15º Oficial de Registro de Imóveis.

Oportunamente, ao arquivo.

P.R.I.C.

São Paulo, 9 de junho de 2011.

Gustavo Henrique Bretas Marzagão – Juiz de Direito.

3 comentários sobre “Ordem judicial ilegal deve ser cumprida?

  1. A inusitada decisão importou na supressão dos direitos do verdadeiro proprietário, que terá que arcar com uma ação contra o “registro” que o Registrador não deveria ter feito sem antes declarar ao Juizo mandatário o “ÓBICE” que encontrou ao cumprir a ordem judicial, ao proceder à sua qualificação registral. A decisao acarretará em prejuizo muito maior a quem nem participou da lide que o apareente benefício concedido ao autor. O julgado do STJ, no conflito de competencia 104.446, merece, SMJ, ser reexaminado.
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  2. Prezado Dr. Sérgio e colegas: a decisão em comento, numa análise inicial, parece gerar grande insegurança jurídica. Porém, lendo o julgado, se percebe que o STJ tão somente pontuou que a competência para rever ato jurisdicional emanado da Justiça do Trabalho, ainda que intrinsecamente ligado a uma atividade do registrador, só pode ser revisto pela mesmíssima Justiça especializada, no caso a do Trabalho, por meio do TRT e, quiçá, do TST. Por essa razão, acho que o que mais causa insegurança jurídica é a decisão do Juiz do Trabalho, não a do STJ. Tendo em vista que o ato jurisdicional aqui debatido implica na realização de um ato registral em plena afronta à LRP, percebo que a decisão do STJ gerou uma espécie de deslocamento de competência, tendo em vista que, normalmente, o princípio da continuidade seria debatido na esfera administrativa, por meio do Juiz Corregedor e, se o caso, do Conselho Superior respectivo. Ou seja, penso que a decisão do STJ cause estranheza em um primeiro momento, mas a verdadeira culpa pela efetivação de uma averbação incorreta do ponto de vista registral, no caso de penhora que ofenda o princípio da continuidade, não é do registrador, tampouco do STJ, mas da Justiça do Trabalho, visto que o Juiz, antes de mandar que a penhora seja averbada, somando ao comando a ameaça de prisão por desobediência, deveria ser mais cuidadoso em verificar se o imóvel é mesmo da parte executada. Não se pode admitir que um representante da Justiça seja tão descuidado a ponto de emanar ato jurisdicional em hialina ilegalidade, afetando bens de terceiros ou, no mínimo, em inobservância do exposto nos artigos 195 e 237 da LRP. E não é só a LRP que foi descumprida no caso, mas também o já tão conhecido artigo 1245, parágrafo 1º, do Código Civil. Ao invés de perseguir uma suposta e efêmera segurança jurídica para o exequente, o Juiz do Trabalho precisa atentar à segurança jurídica de terceiros. Se a partir de agora qualquer título, seja escritura não levada a registro, seja um contrato qualquer, for apto a ensejar uma penhora em matrícula em que nunca se viu o nome do executado, estaremos diante do descalabro da ordem jurídica. No caso em comento, tudo isso não só pode como deve ser levado ao TRT por meio de recurso que reforme a decisão do Juiz do Trabalho e resolva o problema causado no registro imobiliário. Salvo melhor juízo, creio que atribuir a culpa dessa celeuma ao registrador, por ter cumprido a ordem, seria um tanto injusto. E nenhum registrador, por mais zeloso que seja, deve pensar que seu legado é proteger o fólio real a qualquer custo. Decisões ilegais surgirão. Cabe à parte prejudicada buscar seus direitos. Se eu fosse o registrador lamentaria o fato, mas cumpriria a ordem judicial. Isso não é aplicar a lei do menor esforço. É apenas deixar que o assunto seja resolvido na seara correta. Quanto ao STJ, apesar de já ter lamentado muitas de suas decisões, penso que neste caso o problema descansa mais no seio da Justiça do Trabalho, quando emana penhoras a toque de caixa e sem o menor cuidado com um pequeno detalhe chamado direito de propriedade.
    Cordialmente, Jonas Felipe Silva. Advogado e Consultor.

  3. Essa é a nossa Justiça, cada vez mais desacreditada…Mais uma decisão anacrónica, que viola todos os principios do nosso direito, inclusive o direito de propriedade, além do direito de defesa, pois oneram bem de quem nem sequer fez parte da relação processual…

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