A conhecida palavra portuguesa cartório finca raízes em boa fonte greco-latina. O núcleo da palavra é CHARTÆ, CHARTA, carta, chartula. Na idade média, os importantes documentos notariais, alguns apógrafos [1], outros originais, eram conglomerados em coleções denominadas cartulários – donde cartários, do baixo latim chartulatium, de chartula, que vem de nos dar a belíssima cartório. De pequenas coleções depositadas em igrejas, mitras, mosteiros, arquivos reais etc., muitas vezes em pequenos arquivos ou escritórios, a palavra sofre mutações e chega, em plena maturidade, à denominação da complexa instituição encarregada do registro público, garantindo a publicidade, eficácia, autenticidade, segurança dos atos e negócios jurídicos. Essas coleções serviram também para conservar os documentos lavrados pelos tabeliães medievais, evitando-se, assim, a dispersão e é justamente a existência de cartórios que se tem permitido, ao longo dos séculos, que se possam conhecer e recompor eventualmente os documentos originais que se perderam.
Outra acepção nos dá João Pedro Ribeiro, que registra em suas clássicas Dissertações que se dá “o nome de Chartularios, ou Cartularios (em vulgar Cartairos, ou Cartarios, que às vezes é sinônimo de Cartórios) aos Códices em que se acham transcritos os títulos e documentos de algumas Corporações”.[2]
Os cartórios serviram desde sempre para o robustecimento da prova.
Diz Marcello Caetano que a razão de se terem salvado tantos documentos tabeliônicos repousa na necessidade que tinham os proprietários de conservar os títulos justificativos de seu domínio. Diz que “os cartulários, cartários ou cartórios (de Charta) pertencem sobretudo às grandes corporações monásticas ou às mitras, que possuíam avultados patrimônios, constituídos às vezes por centenas de prédios, fosse em plena propriedade, fosse em senhorio direto (prédios foreiros)”.[3]
Vê-se que, ao lado do registro notarial sempre houve uma tendência natural de constituição de fólios ou de arquivos que serviam para se evitar o extravio de documentos volantes e que serviram, principalmente, à perpetuação dos títulos para a prova e justificação de direitos.
Os cartórios, que então se constituíam nessas corporações monásticas – também nos arquivos reais, relações (até na Universidade de Coimbra) – prefiguravam já, nitidamente, a feição que mais tarde os ofícios de registro teriam no futuro: territorialidade, concentração, segurança, perpetuidade, indelebilidade, autenticidade, eficácia probatória etc. Eram inúmeros os cartórios que se foram constituindo nessas instituições. São bastante conhecidas dos diplomatistas e paleógrafos portugueses, fontes preciosas de pesquisas. Citam-se, amiúde, Cartório de Santo Thyrso, Cartório do Mosteiro de São João de Tarouca, Cartório de Pombeiro, Cartório da Sé de Viseu, Cartório de Lorvão, Cartório da Câmara da Torre de Moncorvo, Cartório do Convento de Tomar, Cartório de Alcobaça, Cartório de Pendorada, Cartório de S. Simão da Junqueira, etc.
O nosso Joaquim de Oliveira Machado nos dá algumas lições sobre a origem da palavra cartório, ligando-a diretamente a paço:
“A tolerancia ao abuso ou difficuldade de locomoção abriram, a pouco e pouco, ensanchas a que os tabelliães fossem estabelecendo suas officinas em diversos pontos das cidades ora em suas proprias residencias ora em casas separadas. Essas casas perderam o nome de paço e o substituiram pelo de cartorio. D’onde veio este vocabulo? Porque para o tabellião ou escrivão ainda subsiste o nome legal de cartorio ao passo que para o official de registro foi elle substituido pelo de escriptorio? Vamos explicar: Cartorio vem de carta como escriptorio vem de escrever. A carta é versão literal do substantivo latino charta, chartae, equivalente a papel que, para a escripta incipiente, era fabricado da fibra do junco papyro. Este papel foi tomando diversos sentidos, segundo o fim ou segundo a forma para que era utilisado. D’ahi vem que carta significa o livro, o diploma, a patente, o titulo ou acto de lei, de citação, de partilhas, de liberdade, de conselho, etc. O cartorio, pois, não era sinão lugar em que eram guardados os livros e os papeis pertencentes ao officio do tabellião. Era o archivo ou deposito onde são recolhidos os livros de notas, de audiencia, eleitoraes, os autos, os processos, as ordens do juiz, emfim todos os papeis. A officina do tabellião, do escrivão, e dos officiaes do juizo conservam o titulo peculiar de cartorio quer elle esteja em edificio separado quer n’um compartimento da propria morada do serventuário”.[4]
O paço dos tabeliães e a casa deputada
Como se vê, a palavra cartório, a bela palavra cartório, liga-se aos antigos paços dos tabeliães medievais, cujas origens podem ser seguramente percebidas desde a primeira idade da monarquia portuguesa.
Assim, verificamos a ocorrência da palavra paço no famoso regulamento sobre a atividade tabelioa de 15 de janeiro de 1305, baixado por D. Dinis, cuja íntegra pode ser consultada em Vésperas do notariado brasileiro: um passeio às fontes medievais.[5] Permito-me destacar aqui o artigo 21:
“xxiº artigo / Todolos tabelliões em nos logares hu morarem deuem a tẽer casa ou paaço ssabudo en que escreuam as escripturas de que deuem a dar fe a que os uaam buscar aqueles que perdante eles quiserem fazer os contractos Ca he çerto que os mais dos tabelliões o nom fazem assy nem querem tẽer casas en que escreuam E per esta Razom perdem as gentes mujto do seu dereyto porque nom podem auer as scripturas quando lhis conpre Esto sse entende tẽer casa na vila hu som muytos tabelliões ou de dous açima.”
O Elucidário registra que paço é qualquer casa mais que ordinária.[6] Era a residência de reis ou príncipes, prelados eclesiásticos e universitários.[7] O mesmo elucidário registra o verbete paço dos tabelliaens. Vê-se que antigamente havia uma grande casa onde escreviam notários públicos e todos os escrivães que fazem escrituras ou quaisquer outros instrumentos de compra, venda, contratos etc. E continua Viterbo:
“com o lapso do tempo se foram recolhendo os tabeliães com os respectivos cartórios às suas casas, e os poucos que ficaram, conseguiram d´el-rei D. João V (1706 – 1750) para servirem em suas casas os seus ofícios, com o que, ficando devoluto o tal domicílio, o mesmo senhor rei fez dele mercê no ano de 1749”.[8]
Nas vilas onde morassem mais de dois tabeliães, deveriam ter casa ou paço conhecido onde seriam encontrados sempre que de seus serviços necessitassem os povos. Os tabeliães não queriam esse escritório comum. Como se vê do extrato acima, acabaram, já no reinado de D. João V, por conseguir que desempenhassem suas atividades em suas casas.
De paço dos tabeliães nos primórdios vamos para casa deputada [9] já nas ordenações Manuelinas, Livro 1, tit. 59, item 6:
“6 Item em qualquer Cidade , Villa , ou Luguar onde ouuer cafa deputada pera os Tabaliaẽs de Notas , os ditos Tabaliaẽs eftaram pola menhaã e aa tarde na dita cafa , por tal , que as partes que os mefter ouuerem , pera fazerem algũa efcriptura , os poffam mais preftes achar em a dita cafa , que lhes affi for ordenada”.
A mesma denominação vamos encontrar nas Ordenações Filipinas (Título LXXVIII) até que chegamos à costumeira cartório.
No próprio Regulamento Hipotecário de 1846 (Decreto 482, de 1846) vamos encontrar a palavra cartório no art. 2.º, rezando que as hipotecas deveriam ser registradas no “Cartório do Registro Geral da comarca onde forem situados os bens hipotecados” e ainda nos artigos 4º, 22, 26.
A palavra cartório é uma bela expressão da língua portuguesa. De boas fontes greco-latinas, sobreviveu e se transformou ao longo dos tempos, servindo a múltiplas atividades forenses, chegando até nós como um expressão da tradição jurídica lusitana até que, por preconceito e certa ignorância ativa, a expressão foi expurgada da Lei dos Notários e Registradores – Lei 8.935, de 1994.
De fato, na Lei dos Notários e Registradores não se observa a ocorrência da expressão cartório, substituída que foi por Serviços de Notas e de Registros Públicos.
Tal fato é de se lamentar.
Uma tendência que se insinuaria na Constituição Federal [10] e seria consagrada na Lei dos Notários e dos Registradores, hoje experimenta um retrocesso, com a valorização da expressão por representar, com fidelidade, uma instituição multissecular.
NOTAS
[1] Apógrafo = cópia de um escrito original. (lat. apogrӑphum, gr. apógraphos, copiado).
[2] Ribeiro, João Pedro. Dissertações chronologicas e criticas. 2a ed. Lisboa: Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1896, t. V, dissertação XIX, p. 3
[3] Caetano, Marcelo. História do direito português. 4a ed. Lisboa: Verbo, 2000, p. 243.
[4] Machado, Joaquim de Oliveira. Manual do official de registro geral e das hypothecas. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1888, p. 111.
[5] Jacomino, Sérgio. Fontes do notariado brasileiro: um passeio às fontes medievais, in Revista de Direito Imobiliário 53, São Paulo: RT/Irib, jul./dez. 2002, p. 184.
[6] Elucidário, verbete paço.
[7] Figueiredo. Cândido de. Dicionário da língua portuguesa. 11a ed. Lisboa: Bertrand, s.d, verbete paço.
[8] Elucidário, verbete paço dos tabelliaens.
[9] A expressão deputar aponta para sentido de encarregar, destinar, colocar em ofício. Casa deputada era aquela encarregada de um determinado ofício.
[10] Uma das únicas passagens em que se encontra a expressão cartório é o art. 64 da Carta de 1988, dispondo sobre a edição popular do texto integral da Constituição, “que será posta à disposição das escolas e dos cartórios, dos sindicatos, dos quartéis, das igrejas e de outras instituições representativas da comunidade”. Esta disposição encontra, igualmente, precedentes na alta idade média portuguesa, onde havia a prescrição de depósito e registro nas notas dos tabeliães do reino das leis e outros atos reais.
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