Alienação fiduciária de bem imóvel

Questões relativas à consolidação da propriedade na hipótese de múltiplos imóveis em garantia de negócio jurídico único. Mauro Antônio Rocha [1]

  1. Introdução

É cada vez mais frequente que, no fornecimento de bens ou serviços para pagamento futuro, na concessão de empréstimos ou no financiamento para a aquisição dos referidos bens e serviços, o credor exija a constituição de garantia real da dívida, notadamente por alienação fiduciária, muitas vezes demandando a oneração concomitante de diversos imóveis de propriedade do devedor ou de terceiros garantidores.

Parece-nos já não existir entrave ou dúvida quanto à legalidade da constituição de propriedade fiduciária sobre múltiplos imóveis em garantia de negócio jurídico único.

Entretanto, persiste a negativa de alguns registradores de imóveis quanto a aceitar a determinação prévia do percentual de garantia atribuído a cada um dos imóveis em relação à dívida total – juntamente com algumas outras questões decorrentes de equívocos doutrinários e interpretação incorreta da lei, em detrimento da celeridade na recuperação dos créditos a emperrar o fluxo dos negócios financeiros e comerciais.

  1. Garantia proporcional de cada imóvel

Tratemos, inicialmente, da garantia proporcional de cada imóvel em relação ao montante da dívida contratada.

Neste ponto, cabe ressaltar que ao contrário do que se costuma aceitar, por conta de cláusulas contratuais mal formuladas, a dívida não é garantida pelo conjunto de bens constituídos em propriedade fiduciária e, sim, por cada um desses bens individualmente considerados, respondendo, cada um deles por percentual previamente determinado da dívida total contraída.

Tomemos, para exemplo, um empréstimo financeiro concedido a pessoa jurídica, com garantia de alienação fiduciária a ser instituída sobre cinco imóveis, pertencentes, cada imóvel, a um dos cinco sócios da tomadora.

A rigor – e para melhor compreensão, poder-se-ia desmembrar a operação de crédito para que os empréstimos tivessem garantia fiduciária específica, da seguinte forma:

Instr. de mútuo Valor do Empréstimo % Instr. de garantia Valor da Garantia Fiduciária %
1 30 100 1 30 100
2 25 100 2 25 100
3 20 100 3 20 100
4 15 100 4 15 100
5 10 100 5 10 100

Na forma acima proposta, seriam firmados cinco contratos (principais) de mútuo e os correspondentes contratos (acessórios) de constituição de garantia fiduciária, multiplicando os custos e despesas de originação e manutenção contratual e contrariando os objetivos de simplificação dos negócios jurídicos e celeridade na recuperação dos créditos exigidos e necessários ao desenvolvimento de mercados massivos.

Evidentemente, a operação financeira acima exposta pode ser realizada a partir de um único instrumento contratual de mútuo, pelo valor total do crédito concedido à pessoa jurídica tomadora.

A garantia fiduciária, por seu turno, deve ser constituída sobre imóvel certo, determinado, identificado e perfeitamente descrito, com a indicação do título e modo de aquisição[1], exigindo, por conta disso, contrato específico para cada imóvel.

De fato, esses contratos acessórios estarão expressos em um só instrumento, que incluirá – ou não – também o contrato de mútuo e, independentes entre si, compartilharão das mesmas cláusulas, termos e condições, permanecendo vinculados ao contrato principal sem que haja, porém, qualquer vínculo jurídico entre eles, da seguinte forma:

Instr. de mútuo Valor do Empréstimo % Instr. de garantia Valor da Garantia Fiduciária %
1 100 100 1 30 30
      2 25 25
      3 20 20
      4 15 15
      5 10 10

Para além da simplificação instrumental e da redução de custos e despesas, a forma acima proporcionará melhor aproveitamento econômico desses contratos, tais como, o registro de apenas uma ou outra alienação fiduciária (o que resolveria, em parte, a questão do crédito rotativo, isto é, os registros seriam efetuados na medida em que os créditos fossem utilizados ou requisitados), a negociação individual dos direitos creditórios no mercado secundário, a execução de apenas um ou outro contrato de alienação fiduciária (conforme o saldo devedor da dívida), bem como, a eventual amortização antecipada ou liberação da garantia constituída em um dos contratos de alienação fiduciária, sem que isso provoque nenhuma outra alteração ou modificação nos demais contratos fiduciários.

O registro dessas alienações fiduciárias será feito nos Registros de Imóveis das circunscrições competentes, nas respectivas matrículas, fundado em vias próprias do instrumento de contrato ou, alternativamente, em via única, sucessivamente apresentada ao Oficial Registrador competente para cada imóvel.

A negativa de registro dessas garantias se fundamenta, na maioria dos casos, em suposta – e inexistente – dificuldade no ajustamento de contas nos leilões eventualmente necessários para a realização dos bens e não encontra respaldo na Lei nº 9.514/97, que cuida da alienação fiduciária de bem imóvel, nem na Lei nº 6.015/1973 que regula os registros públicos.

  1. Múltiplas alienações fiduciárias – consolidação da propriedade

A segunda questão se refere à consolidação da propriedade nos casos de múltiplas alienações fiduciárias quando, regularmente constituído em mora, o fiduciante deixa transcorrer o prazo legal sem a purgação.

Dispõe o § 1º do artigo 26, da Lei nº 9.514/1997 que cabe ao Oficial do competente Registro de Imóveis proceder à intimação do fiduciante, seu representante legal ou procurador constituído, para satisfazer, no prazo legal, a prestação vencida e as que se vencerem até a data do pagamento, com custas e demais encargos.

O § 3º do mesmo artigo autoriza que o Oficial de Registro proceda à intimação do devedor pelo correio, com aviso de recebimento ou, por meio de Oficial de Registro de Títulos e Documentos da comarca da situação do imóvel ou do domicílio de quem deva recebe-la.

Na hipótese aqui tratada, de múltiplas alienações fiduciárias em garantia do mesmo débito, o requerimento de intimação será dirigido, evidentemente, ao registrador competente da circunscrição de cada um dos imóveis, o que, de certa forma, poderá dificultar a consecução da execução.

Entretanto, a autorização legal de intimação pelo ofício de títulos e documentos permite que, a requerimento e de acordo com logística estabelecida pelo credor, as intimações sejam dirigidas ao RTD do domicílio do devedor para que sejam procedidas em ato único, proporcionando prazo comum de purgação e, se necessário, a realização de leilão do conjunto de bens, sem prejuízo da possibilidade de arrematação individual dos imóveis.

Não há impedimento legal ou de qualquer ordem que justifique eventual desacordo do Oficial de Registro quanto ao encaminhamento da intimação a Registro de Títulos e Documentos único, em atendimento ao interesse do credor. Nos casos em que os fiduciantes sejam diversos, a intimação se fará na forma ordinária determinada na lei.

Para alguns registradores de imóveis a averbação da consolidação da propriedade em nome do credor somente será possível e finalizada após a confirmação da efetiva intimação e decurso de prazo para pagamento em todos os demais contratos, independentemente do decurso de prazo para pagamento da dívida no procedimento de execução por ele presidido.

Esse entendimento – potencialmente prejudicial ao objetivo de celeridade na recuperação do crédito – também não encontra amparo jurídico, uma vez que, embora estejam os contratos de alienação fiduciária vinculados ao mesmo contrato principal, não há vínculo jurídico de qualquer espécie entre eles.

Da mesma forma, é também recorrente que o credor fiduciário pretenda, por razões administrativas ou de outra ordem, protelar o procedimento e proceder à consolidação da propriedade de todos os imóveis ao mesmo tempo, ainda que excedendo o prazo de 120 dias estipulado pelo item 256.1 das Normas de Serviço da E. Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo[2].

Cabe, aqui, esclarecer que a Lei nº 9.514/1997 não estipula prazo para que o credor requeira a consolidação da propriedade após a certificação do decurso do prazo para a purgação da mora, decorrendo daí o entendimento de que não há prazo exigível para a providência, ficando a cargo e conforme os interesses do credor.

Ocorre que a Lei nº 6.015/1973 estabeleceu, no artigo 205, que cessarão automaticamente os efeitos da prenotação se, decorridos 30 (trinta) dias do seu lançamento no Protocolo, o título não tiver sido registrado por omissão do interessado em atender às exigências legais.

Ao disciplinar os procedimentos da intimação e consolidação da propriedade na alienação fiduciária, a Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, determinou, nos itens 244 e 246.1, que prenotado e encontrando-se em ordem, o requerimento (de intimação) deverá ser autuado com as peças que o acompanham, formando um processo para cada execução extrajudicial e que o prazo de vigência da prenotação ficará prorrogado até a finalização do procedimento.

Resta claro que a finalização do procedimento, no caso em comento, se dá com o atendimento da exigência legal de recolhimento dos tributos devidos e a averbação da consolidação da propriedade em nome do credor.

Portanto, a rigor, e de acordo com a lei dos registros públicos, o credor fiduciário tem o prazo de 30 dias, a contar da certificação do decurso de prazo para a purgação da mora, para cumprir a exigência legal – isto é, recolher os tributos incidentes e requerer a consolidação da propriedade em seu nome, prazo esse que foi estendido pela norma administrativa para 120 dias, sob pena de a consolidação da propriedade exigir novo procedimento de execução extrajudicial.

Ora, da mesma forma que não se encontra amparo jurídico para a negativa do registrador a proceder a consolidação, contrariando interesse do credor, não se encontrará justificativa legal que autorize o fiduciário a manter a prenotação pendente, após o prazo administrativo, aguardando cumprimento e finalização de intimação em procedimento diverso apenas para realizar leilão conjunto dos bens que, como vimos, não é exigível pela legislação de regência.

Aqui, entretanto, há precedente jurisprudencial decorrente de sentença prolatada nos autos do processo 115322-57-2014.8.26.0100, da 1ª Vara dos Registros Públicos da Capital[3], onde se considerou que a pendência de intimação judicial de fiduciante relativamente a imóvel inscrito em Registro de Imóveis diverso “caracteriza exceção à regra geral, diante da impossibilidade do requerente realizar o leilão de todos imóveis dados em garantia, sendo que não haverá prejuízo ao devedor, existindo parecer favorável da douta Promotora e Justiça”, razão suficiente para conceder “prorrogação do prazo para a efetivação da consolidação dos imóveis (…) por 60 (sessenta) dias”. 

  1. Conclusões

Pelo que acima foi exposto, forçoso entender que não existem vedações legais de qualquer natureza que impeçam a determinação do percentual da garantia da dívida correspondente a cada um dos imóveis alienados fiduciariamente, assim como nada impede que tais imóveis sejam vendidos em leilões realizados individualmente, inexistente disposição legal que obrigue a venda conjunta desses bens.

Da mesma forma, entendemos que não há justificativa legal para a negativa pelos Oficiais de Registro de averbação da consolidação da propriedade de imóveis recebidos em garantia, na medida em que forem decorridos os prazos de purgação da mora, independentemente da pendência em relação a outros imóveis.

Por outro lado, nas mesmas condições, também não há amparo legal para a pretensão de prorrogação do prazo administrativo para o requerimento da consolidação para atender aos interesses do credor fiduciário, implicando o não atendimento da norma legal na sua caducidade, exigindo novo procedimento de execução extrajudicial para a consolidação da propriedade fiduciária.

[1] Inc. IV do art. Art. 24 Lei nº 9.514/1997: IV – a cláusula de constituição da propriedade fiduciária, com a descrição do imóvel objeto da alienação fiduciária e a indicação do título e modo de aquisição.

[2] 256.1. Decorrido o prazo de 120 (centro e vinte) dias sem as providências elencadas no item anterior, os autos serão arquivados. Ultrapassado esse prazo, a consolidação da propriedade fiduciária exigirá novo procedimento de execução extrajudicial.

[3] Processo 1115322-57.2014.8.26.0100, São Paulo – 4 SRI, j. 9/1/2015, DJe 20/1/2015, Dra. Tânia Mara Ahualli.

[1] O autor é advogado graduado pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduado em Direito Imobiliário e Direito Registral e Notarial. Coordenador Jurídico de Contratos Imobiliários da Caixa Econômica Federal.

5 comentários sobre “Alienação fiduciária de bem imóvel

  1. Bom dia,

    Tomo a liberdade de pedir-lhe uma orientação a respeito do seguinte caso: À margem da matrícula de um imóvel rural encontra-se averbada a caução sobre 50% do imóvel a favor do IBAMA, para garantia de dívida decorrente de penalidade de multa administrativa aplicada em um processo judicial (grifei “averbada”, pois algumas correntes entendem que tal cação seria objeto de registro).

    Agora o proprietário do imóvel pretende gravar uma hipoteca sobre o total do imóvel para garantir empréstimo contraído junto a uma instituição financeira. Pergunto: é possível essa nova oneração, sem a anuência de quem se encontra averbada a caução, nesse caso, o IBAMA? Ou seria possível onerar somente 50% do imóvel, ou seja, a parte que encontra-se disponível, uma vez que a outra parte está onerada?

    Atenciosamente,

    Orlando Mascarenhas Garcia – Tabelião.

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