Morte aos carimbos!

Morte aos carimbos!
Reconhecimento de firmas e autenticações notariais

Sérgio Jacomino*

Em reportagem assinada por EDSON LUIZ, do Estado de São Paulo (14/12/00), o projeto do novo Código Civil, em remansosa tramitação no Congresso Nacional, prevê a “extinção” da autenticação de documentos e reconhecimento de firmas.

A reportagem acaba mostrando dois aspectos importantes do mesmo tema. De um lado, a visão preconceituosa e afetada ideologicamente daqueles que não enxergam (e não querem enxergar) o valor social de mecanismos preventivos de conflitos. De outro, os usuários comuns dos serviços notariais, reles mortais que depositam sua inteira confiança num serviço que foi provado pela história como eficiente e seguro.

Logicamente, a ênfase é posta no que se chama de burocracia documental brasileira – mal contra o qual lutou quixotescamente o Ministro Beltrão.

Mas será que os argumentos levantados pelos detratores desses serviços são verdadeiramente sérios? Resistem a uma visão crítica e desimpedida ideologicamente?

O rei está morto, viva o rei!

A reportagem busca o reforço de uma idéia que parece já entranhar-se no inconsciente coletivo: a que associa cartório a longas filas e burocracia desnecessária, cujas práticas são verdadeiros arcaísmo. Transnominação solerte, a designação de serviços notariais por burocracia é uma falsidade cômoda e oportuna para os interesses que se avultam para exploração de serviços que são uma verdadeira necessidade social.

A estratégia parece ser: morte aos carimbos, vivam os carimbos! Depois de derrotar a autenticação notarial, deprimindo a importância desses serviços, não restará muito tempo até que alguma empresa privada possa oferecer seus prestimosos serviços de autenticação eletrônica para os contratos que hão de ser celebrados rotineiramente. Empresas privadas, logicamente, pois o importante em tempos bicudos de globalização é não ser enlaçado pelas peias burocráticas e paralizantes do interesse público…

O epíteto de anacrônico pespegado aos serviços notariais denuncia um preconceito e um vezo ideológico verdadeiramente idiota. Descartar a experiência provada dos notários na prevenção de litígios e remeter, pura e simplesmente, ao Judiciário a solução para possíveis conflitos decorrentes da falta de singelas providências acautelatórias, chega a ser uma proposta desconcertante, considerando-se a inteligência e o brilho dos seus propositores.

Como todo argumento simplista, este parece assentar-se em falsas premissas: em primeiro lugar, em desprezar o potencial litigioso das relações jurídicas. Em meio inseguro para a contratação em massa, requer-se, para garantia dos contratantes e higidez dos contratos, rotinas acautelatórias que sejam a um só tempo rápidas, simples, seguras e econômicas. Peca-se, depois, em desconsiderar o custo econômico de uma demanda judicial. O custo social envolvido para a determinação judicial de uma dada relação jurídica e de seus atores é desmesurada em comparação àquela que a fé pública cristaliza como verdade oficial, robustecida pela presunção relativa de veracidade. Assim, remeter os interessados à via judicial é condená-los a uma rotina custosa, morosa e de resultado imprevisível. O Poder Judiciário deve ser poupado para atuar em suas clássicas e necessárias atribuições de resolução de conflitos e reparação da ordem jurídica malferida.

Erro comum nas práticas políticas e sociais brasileiras é hipersaturar os custosos mecanismos curativos das patologias jurídicas e não investir na sua prevenção acautelatória.

O dono da voz ou “O que é bom para o dono é bom para a voz”

Repercutindo a notícias, o Estadão de hoje ouviu o Advogado Carlos Miguel Aidar, presidente eleito da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seção São Paulo, que afirmou não ser tão raros os casos de firmas falsas reconhecidas em cartório como autênticas e mesmo que há quem tenha conseguido registrar [sic] uma assinatura fraudulenta.

Gostaria de ouvir do Estadão, pela autorizada fala do Sr. Presidente da OAB de São Paulo, qual a porcentagem de casos de firmas falsas e fraudulentamente reconhecidas em relação àquelas que produziram seus regulares efeitos, garantindo aos interessados a segurança que todos perseguem. Também seria curioso verificar como uma simples providência de reconhecimento de firmas ou autenticação de documentos preveniu e evitou custosas demandas judiciais e problemas vários para as partes contratantes. Quem poderá mensurar os milhões de reais poupados por providências tão simples, eficientes e comezinhas? Quanto se perdeu com a falsificação e reconhecimento notarial fraudelunto de firmas? Acaso essas distorções e esses prejuízos não foram corrigidos e ressarcidos?

Somente demonstrando, de forma cabal e inequívoca, que os serviços notariais representam um grave prejuízo às relações jurídicas, só assim poderíamos considerar esse serviço disfuncional e portanto dispensável para a sociedade brasileira. Até lá, esses argumentos são estropiados e não ousam dizer o nome de seus verdadeiros interesses.

O sábio vê a lua, o ignaro o dedo

vox populi, vox Dei.

Devolvendo o mesmo argumento desenvolvido pela reportagem, poderíamos, ad absurdum, considerar a multissecular atividade advocatícia dispensável, tão-só porque há maus profissionais atuando e lesando o interesse de seus representados. Poderíamos decretar também o fim da aviação civil – respeitado o devido processo legislativo – pois a queda de alguns aviões pode pôr em risco a vida dos bilhões de passageiros transportados seguramente… Por esta lógica, com razão alguém que já propôs projeto de lei para revogação da tal lei de mercado…

O que não vêem (nem querem ver) os críticos ingênuos é que a chamada classe formadora de opinião não representa a opinião do povo brasileiro. A reportagem de SIMONE BIEHLER MATEOS, quase a contra-gosto, reproduz as vozes dissonantes dos usuários dos serviços notariais. São testemunhos importantes. Confirmam a extraordinária reputação que os cartórios têm para a população brasileira e sinalizam o acerto da pesquisa levada a cabo pelo Instuto Gerp e publicada no Jornal do Brasil em sua edição de 3.8.1997, p. 39. Por ela, 59% dos entrevistados confiam plenamente nos serviços de cartórios e lhes atribuíram a nota de 3,61, num total de 5, no quesito confiança – o que lhes rendeu a honrosa segunda posição na preferência e confiança da população, logo após o serviço de correios (4,18).

A que se deve esse descolamento entre o sentir da população brasileira e o da chamada elite bem-pensante e pretensamente formadora de opinião?

Arrisco a insinuar que os serviços notariais, pela sua rapidez, eficiência, segurança e principalmente economicidade, é um serviço do cidadão comum. Através do reconhecimento de firma e autenticação dos documentos, o usuário logo percebe que tem um título a seu favor, cujo procedimento pode mitigar os efeitos danosos da contratação fraudulenta e dissuadir os que agem de má fé, buscando lograr a confiança das partes.

Já os poderosos dispõem de eficientes mecanismos de resolução de conflitos privados. Nos EEUU a American Arbitration Association, entidade privada, conta com mais de 57 mil árbitros inscritos (Modernização dos sistemas jurídicos, in Gazeta Mercantil de 12/3/1996). Aparentemente, caminha-se a largos passos à superação dos tradicionais paradigmas de monopólio estatal de resolução de conflitos e de segurança jurídica preventiva, substituindo-os por arbitragem e por seguros.

Enfim, os depoimentos dos usuários jogam num contraponto interessante. O que fazer com os fatos? Ora, como Ronald Reagan, os nossos representantes legislativos podem simplesmente dizer facts are stupid things!

* Sérgio Jacomino, Registrador Imobiliário em São Paulo. Artigo publicado no Boletim Cartorário, 1º decêndio, fev. 2001, n. 4, p. 4/3

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