
Cheguei em casa tarde, cansado, depois de vencido o tramo caótico da cidade. Deitei uma rápida olhadela nos e-mails e me deparei com um belo texto. Recolhi-me em silêncio. No quarto, às escuras, finas teias de luz penetravam as frestas da janela e me conduziam suavemente no colo da memória. Fiquei a meditar na minha trajetória pessoal, no itinerário percorrido, na dura faina de escrever, escrever, escrever…
Os velhos cartórios eram feitos à imagem e semelhança dos escritórios de mosteiros medievais. Dobrados sobre escrivaninhas de jacarandá dispostas numa grande sala, nós deitávamos os pesados livros de registro e nele transcrevíamos pacientemente os títulos apresentados.
O tempo corria lentamente, como o pôr do sol sob as persianas da serventia. Diante de nossos olhos atentos passavam inventários, partilhas, penhoras, arrestos, arrematações… Quantos dramas humanos nos revelavam, quantas alegrias e tristezas, chegadas e partidas… lances da vida representados em rios de símbolos e de sentidos.
Cabia-nos recolher e coligir escrupulosamente os elementos de transcendência real para plasmar os atos de registro. Não se enganem: o registro era um ato de criação. Não se pense que os antigos livros eram de mera transcrição, cópia literal, verbo ad verbum, dos títulos. Nunca fomos meros amanuenses; realizávamos transcrições das transmissões, não toscas reproduções literais de títulos e documentos. “A liberdade é consentimento numa ordem”, dizia o velho lente. Os escreventes lavraram os atos de modo pessoal e eu sou capaz, ainda hoje, de identificar o estilo de cada qual. Nesse sentido, éramos livres.
Às vezes nos distraíamos junto à pia do scriptorium, desmontando e lavando a caneta tinteiro. A tinta se esvaía na água corrente e levava consigo nossas angústias e pensamentos. Outras, trocávamos a pena cansada e viciada, deixando-nos tingir os dedos do profundo azul-royal da tinta Quink. Depois, era preciso desbastá-la, buscando o exato eixo para que deslizasse suavemente sobre o papel. As penas, como os escreventes, se tornam melhores com a experiência provada sobre os livros. A caneta reconhece o bom escriba e a ele se dobra, docilmente. Aprendi num velho cartório que a caligrafia nos torna homens muito melhores.
Outras vezes nos dedicávamos à árdua tarefa de decifrar a escrita irregular e insegura de um velho escrevente alcoólatra. Era preciso adivinhar-lhe a intenção oculta nos garranchos que se tornavam tanto mais esotéricos quanto mais avançada era a hora do expediente. Pelas manhãs, sua letrinha serifada era nítida e elegante; porém, no começo da tarde, com o raciocínio já enturvado pelo álcool, o velho escriba derrapava, transbordava as margens das linhas e colunas e avançava sobre os vastos domínios que se acham à margem – as averbações. Hic sunt leones! O velho escrevente, ainda no meio da tarde, já não se sustentava e desabava feito um meteoro torpe sobre o livro.
Ingressei no nobile officium ainda muito jovem. Inscrevi, transcrevi, averbei… lavrei a verba elegante da praxe cartorária em livros de registros manuscritos.
Tenho dito aos meus colegas de ofício: “vivemos uma espécie de crepúsculo registral”. Isto dizemos para nós mesmos, velhos escribas, e rimos, rimos feito crianças. “Tudo o que no mundo existe começa e acaba num livro”, todos sabemos – especialmente nós outros, os escribas, que lavramos a nota inaugural e final da sinfonia inacabada dos homens.
Experimentei a mecanização dos processos registrais nos 90 e agora vivo para testemunhar o derruimento do vetusto edifício da fides publica pela vaza da novilíngua computacional. Pesado vagalhão que suplanta a segurança jurídica, consubstanciada na verba perita, pela tecnológica e econômica.
Quem nos lê, quem ainda nos lerá? Haverá quem nos compreenda essencialmente? Ou seremos tragados e traduzidos por uma máquina? A lavra que encarna o espírito do tempo (e de certo modo o traduz) é varrida pelo vento, como as folhas secas no quintal. É tão lindo e triste o ocaso — pensei antes de fechar os olhos.