O peso da irrelevância

O café sempre lhe é servido na biblioteca – Biblioteca Medicina Animæ – onde o Velho Ermitânio Prado se encontra enfurnado todas as manhãs quando a empregada chega para arrumação da casa. Ele sempre se acha ali, dobrado sobre algum livro desencravado das entranhas ensombradas de sua coleção de livros e de velhos vinis.

O quadro nunca se modifica. Cofia a barba, inclina-se sobre o texto, passa o polegar lentamente sobre a folha aberta – como se o dedo o guiasse seguro por paisagens longínquas e exóticas. Olha para o alto, toma um trago e queda-se extático como se sorvesse um precioso elixir. Inclina-se com reverência sobre o livro e uma nova cena se inaugura diante de seus olhos cansados. São como cortinas que se abrem e fecham, num espetáculo cujo enredo somente ele é capaz de apreender. Penso que ninguém mais transita por aquelas alameda labirínticas e acidentadas.

Ultimamente, vejo-o abichornado. Implica com detalhes, se aborrece com besteiras, irrita-se por somenos, diz que “anda à matroca, sem rei, nem roque”. Agora deu para reclamar dos gonzos da porta, “rangem de modo pavoroso – trítono é diabolus in musica…”, ranzinza.

O que mais o perturba, entretanto, é o fato de que as letras parecem se apagar dos velhos alfarrábios. “Esfumam-se, confundem os meus olhos. O vigoroso almagre de iluminuras empalidece em ocres desmaiados; derrui-se o cólofon sobre si mesmo, o cedilha manqueja, os travessões se interditam, os tipos fundem-se e enleiam as serifas aos borrões…”.

Na última quinta-feira eu o encontrei empunhando uma velha lupa toda adornada de madrepérola e prata. Esventrava o trato de um robusto clássico de Direito Privado. Ao me ver, diz com gáudio: “Autêntica Fabergé, pertenceu ao Grande Visconde de Porto Seguro”, referindo-se ao óculo. E logo emenda num resmungo: “as letras se arredam dos fólios, escriba, abrem-se avenidas de alvuras onde pululam fragmentos de pó e cinza de estrelas mortas. Eis que as gloriosas colunas da civilização se precipitam e jazem no abismo informacional. Dataísmo, escriba, fragmentos de sentido, jogam dados no ar, mas Deus não joga dados!”.

Os livros são para ele “os lindes extremos à barbárie que avança como o deserto e liquida o pensamento”. Pergunto-me, o Velho investiga o quê? Quedo-me perplexo, em silêncio, observando a veneração devotada aos velhos livros gentios. O que busca nesta altura da vida? O que anela a boa alma que outrora fora conhecido nos círculos intelectuais da Paulicéia como o Leão do Jockey?

Foram-se os belos restaurantes da cidade, deitaram-se os bulevares aformoseados de resedás, jacarandás, tipuanas, perderam-se na memória paulistana as casas de chá, as sapatarias e chapelarias da Quintino, os pãezinhos da Santa Teresa… Remanesce a Igreja das Almas, onde os velhos paulistanos depositam piedosamente sua memória em oferenda aos bons santos.

Parece que finalmente a modernidade o apaga – ao Velho e aos seus livros. Ele próprio se esboroa em estilhas de sentido. Pinça aqui e acolá um provérbio, um brocardo latino (que já ninguém atina), empunha-os e se lança invectivando a choldra alienada. Entretanto, eis uma luta inglória, sem sentido, fadada ao fracasso.

Dr. Ermitânio Prado, o velho Leão do Jockey, pobre ancião letrado; eis o lente que sucumbe sob cãs, suporta o opróbrio de seus pares, sustenta o peso da irrelevância.

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