Indisponibilidade de Bens: entre o Direito, a Política e a Economia

Celso Fernandes Campilongo*

O número de escândalos, golpes e desvios de recursos públicos praticados por políticos – de todas as esferas administrativas e partidos – é mais do que conhecido. As soluções supostamente redentoras também: “Operação Mãos Limpas”, “Lava Jato” e congêneres mundo afora. Nem as ilicitudes atreladas às bandalheiras dão tréguas, nem as ferramentas do Direito parecem detê-las. Parafraseando Mário de Andrade, no país de Macunaíma, dentre tantas mazelas, “Pouca Justiça e muita corrupção, os males do Brasil são”!

Na busca por instrumentos mais eficientes no enfrentamento dos problemas, a ordem jurídica constrói mecanismos que preservem o patrimônio público, inibam a bandidagem e restaurem a confiança nas instituições. Dentre eles, sem dúvida alguma, a decretação de “indisponibilidade de bens” avulta de importância. Aparentemente célere, liminar e poderosa, satisfaz a sede por mais Justiça e menos corrupção. Também é “vingativa”: regenera e revigora, tempestivamente, a sociedade dos “bons” diante dos “malfeitores”. Tudo muito maniqueísta e simplório para funcionar sem abusos, distorções e perversidades.

A força do Direito não reside no uso indiscriminado dos meios coercitivos. É antes o inverso: deve ter dosagem adequada e ser fruto da prudência, ponderação e técnica do aplicador do Direito, sob pena de desencadear efeitos perversos, não previstos e contrários aos objetivos do sistema jurídico.

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A MP 992 e o “compartilhamento” da alienação fiduciária

Veio a lume a MP 992, de 16 de julho de 2020 que entre outros temas dispôs sobre “o compartilhamento de alienação fiduciária”, alterando a Lei 13.476, de/8/2017, a Lei 13.097, de 19/1/2015 e a Lei 6.015, de 31/12/1973.

A conversão em lei aparentemente vai preservar e sancionar os elementos que despontam como representativos dos interesses do mercado financeiro e do crédito imobiliário – além da repercussão no processo de registro –, razão pela qual lanço alguns tópicos para debates e discussões.

Resolvi fazer pequenas resenhas a partir de alguns dispositivos que interessam aos registradores. No dia em que escrevo, encerrado o prazo para apresentação de emendas, verifico que foram 116 apresentadas. Não tive tempo de me dedicar a cada uma delas, o que fica para os comentários que mais à frente se farão se e quando a medida provisória for convertida em lei. Até lá ficam registradas aqui as primeiras impressões.

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Prenotação sucessiva procrastinatória

Uma recente decisão da Primeira Vara de Registros Públicos de São Paulo enfrentou uma questão recorrente: a prenotação sucessiva realizada para o fim ilusório de promover o “bloqueio” do registro para o acesso de títulos contraditórios.

A decisão foi exarada pela Dra. Tânia Mara Ahualli no Processo 0005231-04.2020.8.26.0100 de cujo teor se extrai: A prioridade de registro caracteriza-se pela preferência dos títulos na ordem de sua prenotação, de modo que, apresentados títulos contraditórios, aquele com número de protocolo anterior será registrado. Caso esgotado o prazo da prenotação de 30 dias, sem que tenham sido cumpridas as exigências, o título seguinte na ordem de prenotações será qualificado e, não havendo exigências, registrado”. 

A decisão lembra um antigo artigo redigido pelo meu amigo JOSÉ ROBERTO FERREIRA GOUVÊA, quando ainda atuava como Promotor de Justiça na mesma Vara, lá pelos idos de 1992. O texto, tanto quanto saiba, é o primeiro a enfrentar o tema. Posteriormente, outros seguiram na mesma senda.

Posteriormente, na edição do Boletim do IRIB n. 268, de setembro de 1999, o Dr. Marcelo Terra enfrentaria o tema polêmico da discricionariedade do registrador na admissão (ou não) de títulos que padecem de insuperáveis imperfeições. Segundo ele, “o Oficial, nesses casos, tem dever de devolver o título sem o prenotar”. Remeto o leitor ao artigo referido nas nótulas que registrei aqui mesmo, neste Observatório: A prenotação e a discricionariedade do Registrador.

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Estudos de Direitos Reais e Registo Predial

Aula Magna proferida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
(11/6/2018. Foto: Carlos Alberto Petelinkar).

Mónica Jardim é uma jurista conhecida de todos nós. Alicerçou, na senda do Prof. Dr. Manuel Henrique Mesquita, uma sólida ponte que nos liga à nossa Universidade Mater de Coimbra e sua Faculdade de Direito.

Ao longo de muitos anos realizamos assiduamente encontros acadêmicos, em Portugal e Brasil, aprofundando temas de nossa interesse comum.

No começo do ano de 2018, Mónica solicitou-me que redigisse a apresentação do seu mais novo livro, composto por uma alentada coletânea (Estudos sobre Direitos Reais e Registo Predial – ISBN 978-989-54076-5-1) que foram produzidos entre os anos de 2007 e 2017.

Professora Auxiliar da Faculdade de Direito de Coimbra, onde é regente da disciplina de Direito dos Registros e do Notariado (desde o ano letivo de 2007/2008) e uma das responsáveis pelas aulas práticas de Direitos Reais (desde o ano letivo de 1996). É membro, por reconhecido mérito científico, do Conselho do Notariado de Portugal e Presidente do Centro de Estudos Notariais e Registais (CENoR). É ainda membro do Conselho Editorial dos Cadernos do CENoR e do Conselho Editorial da nossa RDI – Revista de Direito Imobiliário.

A apresentação, à parte proporcionar-me uma imensa alegria, deu-me a chance de registrar a importância da nossa professora no desenvolvimento da doutrina registral e do direito civil.

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A segurança hermenêutica nos cartórios extrajudiciais – repercussões da Lei 13.655/2018

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Gostaria de compartilhar o excelente estudo do prof. Carlos Eduardo Elias de Oliveira sobre a LINDB.

Chama a atenção a análise que faz de conceitos como o de “princípio da motivação concreta”, da “invalidade referencial”, o de “declaração de irregularidade sem pronúncia de nulidade”. Está em causa a segurança hermenêutica.

Leia aqui o texto: A segurança hermenêutica nos vários ramos do direito e nos cartórios extrajudiciais: repercussões da Lei 13.655/2018. Brasília: Senado Federal, 2018. OLIVEIRA. Carlos Eduardo Elias.

Servidão legal ou passagem forçada?

ConjuntosNo STJ encontramos a renovação da jurisprudência brasileira. Muitos acórdãos inovam, outros confirmam a doutrina. Há, contudo, alguns arestos que podem ser objeto de boas discussões.

É o caso do REsp 1.268.998-RS, da relatoria do min. Luís Felipe Salomão.

Discutia-se a possibilidade de penhora incidir sobre imóvel encravado. O executado havia oposto embargos sustentando que os imóveis de sua propriedade seriam impenhoráveis, pois “o primeiro deles é sua residência e o segundo está encravado no imóvel residencial”.

O tribunal entendeu perfeitamente possível a penhora com base no fato de que os imóveis têm matrícula própria no Registro de Imóveis competente. Nos termos do inc. I, § 1º, do art. 176 da LRP, com base no “princípio da unitariedade matricial”, o imóvel encravado, “por ter matrícula própria, constitui um segundo bem imóvel do executado”, sendo, portanto, perfeitamente possível a penhora.

Para superação do óbice à inscrição da constrição judicial, o ministro relator acenou para a possibilidade de se instituir uma “servidão legal em caráter precário, isto é, de direito de vizinhança, e não de servidão (predial), da qual distingue-se, em inúmeros pontos, visto que aqueles direitos são limitações impostas por lei ao direito de propriedade, restrições estas que prescindem de registro”. Decidiu, ainda, que, previamente à expropriação judicial, caberia ao juízo executivo delimitar judicialmente a passagem.

Vamos analisar os vários aspectos que este aresto suscita. Continuar lendo

Alienação fiduciária de bem imóvel

Questões relativas à consolidação da propriedade na hipótese de múltiplos imóveis em garantia de negócio jurídico único. Mauro Antônio Rocha [1]

  1. Introdução

É cada vez mais frequente que, no fornecimento de bens ou serviços para pagamento futuro, na concessão de empréstimos ou no financiamento para a aquisição dos referidos bens e serviços, o credor exija a constituição de garantia real da dívida, notadamente por alienação fiduciária, muitas vezes demandando a oneração concomitante de diversos imóveis de propriedade do devedor ou de terceiros garantidores.

Parece-nos já não existir entrave ou dúvida quanto à legalidade da constituição de propriedade fiduciária sobre múltiplos imóveis em garantia de negócio jurídico único.

Entretanto, persiste a negativa de alguns registradores de imóveis quanto a aceitar a determinação prévia do percentual de garantia atribuído a cada um dos imóveis em relação à dívida total – juntamente com algumas outras questões decorrentes de equívocos doutrinários e interpretação incorreta da lei, em detrimento da celeridade na recuperação dos créditos a emperrar o fluxo dos negócios financeiros e comerciais. Continuar lendo

Alienação fiduciária em debate

AF

Mauro Antônio Rocha é conhecido de todos os que se devotam ao estudo do direito real imobiliário. Advogado graduado pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-graduado em Direito Imobiliário e Direito Registral e Notarial é o Coordenador Jurídico de Contratos Imobiliários da Caixa Econômica Federal.

Mauro Rocha alia sua boa formação teórica com uma valiosa prática que decorre de sua atividade de coordenação jurídica dos contratos imobiliários da Caixa Econômica Federal. Como advogado, vivencia, na prática, os problemas que vão surgindo no mundo do crédito imobiliário. Vivemos uma etapa importante de concretização plena da Lei 9.514/1997 no enfrentamento dos problemas que surgem com a execução extrajudicial do crédito inadimplido.

Mauro Rocha no oferece um decálogo de conclusões que o Observatório do Registro submete à discussão dos leitores deste blogue.

Dê sua opinião. Participe das discussões. As contribuições serão levadas a debate nas sessões que se realizam na Sala Elvino Silva Filho. Continuar lendo

Alienação fiduciária e locação de imóveis

Alienação fiduciária de bem imóvel. Repercussões da constituição da propriedade fiduciária na locação do imóvel perante o Registro de Imóveis.
Mauro Antônio Rocha [1]

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Do contrato de alienação fiduciária decorre a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel da coisa imóvel (art.22, da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997) e a consequência primeira e fundamental resultante da constituição da propriedade fiduciária é o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel (art. 23, § único).

Dessa forma, com o registro da alienação fiduciária no competente Ofício de Registro, a propriedade é transferida ao fiduciário, com o escopo de garantia, juntamente com a posse indireta do imóvel, permanecendo o fiduciante, na posse direta, assegurada, enquanto adimplente, a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da alienação fiduciária (art. 24, V).  Continuar lendo

Alienação fiduciária de bem imóvel – quitação mútua obrigatória

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL. Considerações sobre a quitação mútua obrigatória nas operações realizadas fora do âmbito do financiamento imobiliário
Mauro Antônio Rocha [1]

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  1. Da alienação fiduciária em geral.

A alienação fiduciária em garantia é um instituto jurídico conhecido desde o período clássico do Direito Romano, na figura da fidúcia cum creditore, que foi resgatado pelo Direito Brasileiro em meados do século passado e adaptado para atender às necessidades de uma sociedade de massas ainda incipiente, desordenada e necessitada de agilidade e dinamismo jurídico para seu desenvolvimento.

Apesar de ignorada pelo código civil de 1916 e ainda sem se afigurar como negócio jurídico contratual típico, a fidúcia sempre esteve presente no direito brasileiro, tendo sido regularmente utilizada como meio de concretização de negócios e garantias.

Nesse sentido, afirma Silva que deixando de ser negócio jurídico contratual típico, nem por isso ficou entre nós repudiado inteiramente. Filho órfão, e mesmo enjeitado, encontrou todavia abrigo em uma que outra manifestação esporádica. A doutrina o não desconhecia de todo, e os tribunais embora com certa relutância e alguma vacilação entenderam que não seria uma figura contratual contraria ao nosso sistema[2]

Não por acaso, a garantia fiduciária surgiu no direito positivo brasileiro em 1965 – coincidentemente e ao mesmo tempo no projeto civilista do Código de Obrigações elaborado por Caio Mário Pereira da Silva e na Lei nº 4.728, proposta de uma nova ordem política para disciplinar os mercados financeiro e de capitais – num contexto de grande desenvolvimento econômico e de garantias reais (hipoteca, penhor e anticrese) insuficientes para a proteção dos recursos alocados para o financiamento da produção de bens de capital e da aquisição de bens de consumo.

Dispunha o derrogado artigo 66 da referida lei, que nas obrigações garantidas por alienação fiduciária de bem móvel, o credor tem o domínio da coisa alienada, até a liquidação da dívida garantida. E, concluía, no parágrafo segundo do mesmo artigo, que o instrumento de alienação fiduciária transfere o domínio da coisa alienada, independentemente da sua tradição, continuando o devedor a possuí-la em nome do adquirente, segundo as condições do contrato, e com as responsabilidades de depositário. Continuar lendo