Carta Aberta de Civilistas sobre MP 1.162/2023

A carta aberta de juristas publicada em São Paulo e divulgada pelo site CONJUR (vide final) é emblemática e muito expressiva na crítica que lança sobre o processo que culminou com a Lei 14.382/2022. Vale a pena conhecer o argumento dos juristas que a subscreveram (SJ).

São Paulo, 19 de maio de 2023.

Ao
Excelentíssimo Deputado Federal Sr. Fernando Marangoni
Ref.: Carta Aberta de Civilistas sobre trecho da Medida Provisória n. 1162, de 14 de fevereiro de 2023 (Programa Minha Casa, Minha Vida)

Excelentíssimo Senhor Deputado,

Vimos, pela presente, até Vossa Excelência, manifestar-nos sobre o texto da Emenda 231 à Medida Provisória n. 1162, de 2023 (Programa Minha Casa, Minha Vida), de sua autoria, mais especificamente, quanto à seção da emenda supracitada que propõe a exclusão dos extratos eletrônicos da lista de documentos hábeis a promover o registro e a averbação de fatos, atos e de negócios jurídicos.

Até a edição da Medida Provisória n. 1.085, de 27 de dezembro de 2021, convertida posteriormente na Lei Federal n. 14.382, de 27 de junho de 2022, que dispôs, dentre outros temas, sobre o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (Serp), não havia, em nosso ordenamento, previsão legal que permitisse a utilização de extratos eletrônicos como título apto para registro ou averbação de fatos, atos e de negócios jurídicos.

Todavia, após a edição das referidas normas, sobrevieram questões de altíssima relevância legal, relacionadas à insegurança jurídica causada pela manutenção dos seguintes dispositivos de lei, quais sejam, in verbis:

Seção III

Dos Extratos Eletrônicos para Registro ou Averbação

Art. 6º Os oficiais dos registros públicos, quando cabível, receberão dos interessados, por meio do Serp, os extratos eletrônicos para registro ou averbação de fatos, de atos e de negócios jurídicos, nos termos do inciso VIII do caput do art. 7º desta Lei.

§ 1º Na hipótese de que trata o caput deste artigo:

I – o oficial:

a) qualificará o título pelos elementos, pelas cláusulas e pelas condições constantes do extrato eletrônico;

b) disponibilizará ao requerente as informações relativas à certificação do registro em formato eletrônico;

II – o requerente poderá, a seu critério, solicitar o arquivamento da íntegra do instrumento contratual que deu origem ao extrato eletrônico relativo a bens móveis;

III – (VETADO).

III – os extratos eletrônicos relativos a bens imóveis deverão, obrigatoriamente, ser acompanhados do arquivamento da íntegra do instrumento contratual, em cópia simples, exceto se apresentados por tabelião de notas, hipótese em que este arquivará o instrumento contratual em pasta própria. (Promulgação partes vetadas)

IV – os extratos eletrônicos relativos a bens imóveis produzidos pelas instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública poderão ser apresentados ao registro eletrônico de imóveis e as referidas instituições financeiras arquivarão o instrumento contratual em pasta própria. (Incluído pela Medida Provisória nº 1.162, de 2023)

§ 2º No caso de extratos eletrônicos para registro ou averbação de atos e negócios jurídicos relativos a bens imóveis, ficará dispensada a atualização prévia da matrícula quanto aos dados objetivos ou subjetivos previstos no art. 176 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), exceto dos dados imprescindíveis para comprovar a subsunção do objeto e das partes aos dados constantes do título apresentado, ressalvado o seguinte:

I – não poderá ser criada nova unidade imobiliária por fusão ou desmembramento sem observância da especialidade;

II – subordinar-se-á a dispensa de atualização à correspondência dos dados descritivos do imóvel e dos titulares entre o título e a matrícula.

§ 3º Será dispensada, no âmbito do registro de imóveis, a apresentação da escritura de pacto antenupcial, desde que os dados de seu registro e o regime de bens sejam indicados no extrato eletrônico de que trata o caput deste artigo, com a informação sobre a existência ou não de cláusulas especiais.

§ 4º O instrumento contratual a que se referem os incisos II e III do § 1º deste artigo será apresentado por meio de documento eletrônico ou digitalizado, nos termos do inciso VIII do caput do art. 3º desta Lei, acompanhado de declaração, assinada eletronicamente, de que seu conteúdo corresponde ao original firmado pelas partes.

Diante disso, em razão desse cenário de incerteza jurídica, propiciado pelos dispositivos legais reproduzidos acima, e em atenção à redação da Emenda 231, cujo objetivo é a sua modificação, apresentamos nossas considerações preliminares, registrando, desde já, nossa disponibilidade para aprofundamento das questões suscitadas.

Já foi dito que, até a edição da MP 1085, de 2021, resumos e extratos jamais constituíram títulos hábeis para ingressos nos registros públicos, ainda que estivesse acompanhados de cópia do instrumento contratual subjacente.

Os Registros de Títulos e Documentos datam de 1603 e os Registros de Imóveis têm como seu embrião o Registro Geral de Hipotecas de 1843.

Desde o Decreto 4.857, de 9 de novembro de 1939, vige no Brasil a regra geral de que o registro é promovido independentemente da apresentação de extratos ou resumos, sendo imprescindível, no entanto, o registro e a averbação dos títulos ou atos constitutivos, declaratórios, translativos e extintos de direitos reais sobre imóveis reconhecidos em lei, “inter vivos” ou “mortis causa”, para que sua constituição, transferência e extinção, quer para sua validade em relação a terceiros, quer para sua disponibilidade.

Trata-se, portanto, de medida de rigor, consubstanciada na averbação de fatos jurídicos, bem como registro da vontade do declarante emanada do negócio jurídico subjacente, vindo a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica, em virtude de uma regulamentação juridicamente vinculante aos sujeitos que se qualificam como partes.

É sabido que, no ordenamento jurídico brasileiro, adota-se uma eficácia meramente obrigacional dos negócios jurídicos, não os bastando para a constituição, modificação e/ou extinção de direitos reais. Desde que seja válido e eficaz, o negócio jurídico opera como título hábil para a constituição, modificação e/ou extinção de direitos reais, razão pela qual, ao se juntar ao registro, como modo de aquisição de direitos reais sobre coisas imóveis, permite a transferência do direito subjetivo em questão.

Isso se explica porque, no negócio jurídico obrigacional, é a declaração negocial, emanada do titular do direito real, que apresenta a vontade de transmitir esse mesmo direito. Por isso mesmo, o registro, no Registro de Imóveis, prescinde da celebração de um novo negócio jurídico. Diferentemente do que se vê em outros ordenamentos, notadamente o alemão, em que o negócio jurídico obrigacional se encontra completamente desvinculado do negócio jurídico de eficácia translativa, no Brasil, basta que o negócio jurídico obrigacional seja levado a registro para a transferência do direito real.

Todavia, precisamente por essa cumulação de declarações negociais, encontrada no negócio jurídico obrigacional, é mister levá-lo a registro, pois o ato de registro, por si só, não representa negócio jurídico translativo, vez que não contém, em si, declaração negocial emanada do titular do direito real.

Por essa razão, o extrato, por sua vez, ainda que acompanhado de cópia simples do negócio jurídico – e sabe-se que há movimento para extirpar a obrigação de que o instrumento contratual acompanhe o extrato1 – não contém, em si, a declaração negocial do titular do direito subjetivo real, único sujeito competente para realizar a transferência. A mera cópia do documento já retira um importante filtro para aferição da legitimidade do outorgante, o que, sem dúvida, constitui uma porta aberta a fraudes.

Assim se vê que a Medida Provisória n. 1.085 e a Lei Federal n. 14.382, de 27 de junho de 2022, que lhe sucedeu, modificaram regras centenárias de segurança jurídica sem qualquer justificativa racional ou jurídica.

Até então, todas as modificações legislativas sobre direito de propriedade e seu registro, lideradas por luminares do Direito Civil nacional, como Miguel Reale, Clóvis Bevilácqua, Rui Barbosa, Francisco Campos ou Conselheiro Furtado, jamais mencionaram o extrato como instrumento jurídico apto a ingressar em registro público. Muito provavelmente porque, como referenciado, o extrato não apresenta, em si, a declaração negocial necessária para expressar a vontade do titular do direito real de transferi-lo ou modificá-lo.

Cf. documento denominado “Sugestões para a regulamentação da Lei 14.382/22: registro por extrato e assinatura eletrônica”, elaborado pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias – ABRAINC – em 15 de janeiro de 2022. Ver nota 21 (pág. 8): 21. De outro modo, sugere-se sejam expressamente previstos casos comuns de dispensa de documentos de suporte, de modo a padronizar o entendimento dos Oficiais de Registro, evitando-se a proliferação de notas de exigências requerendo comprovações e informações adicionais àquelas constantes dos extratos eletrônicos. Ver Sugestão 6 (pág. 13): [1] O Oficial de Registro competente qualificará o título e realizará o registro exclusivamente a partir dos elementos constantes do extrato, sendo vedado o exame da íntegra contratual, ainda que apresentada para fins de conservação, seja em relação a aspectos de forma, de assinatura ou de conteúdo.

No mesmo sentido, trazemos à tona parte da sua explicação que justifica o teor da emenda apresentada por Vossa Excelência, in verbis:

“Extratos, ou simples resumos de títulos são incompatíveis com a segurança jurídica do Registro de Imóveis especialmente quando a Lei n. 14.063 de 2020 regula as assinaturas eletrônicas qualificadas e avançadas.

Os extratos podem acompanhar mas não podem substituir o título, sob pena de deixar o consumidor vulnerável a fraudes.

Se o cartório não analisar o contrato mas somente um resumo digital desse contrato, elaborado por um terceiro, é evidente que o Registro de Imóveis passa a deixar as portas abertas para todo o tipo de fraude.

Substituir o original por um resumo digital é insegurança jurídica. As maiores vítimas serão os mais vulneráveis, que não tem dinheiro para pagar advogados.

Todo o sistema brasileiro passa a conviver com enorme risco sistêmico de confiança”.

Além do aspecto puramente registral e do modelo de aquisição derivada de direitos reais adotado pelo ordenamento jurídico pátrio, vê-se que a utilização de extratos, como título hábil para registro, também apresenta inconvenientes em outras áreas.

Para o Direito do Consumidor, citamos o artigo “A raposa e o galinheiro: a MP 1085 e os riscos ao consumidor”i, em que os Professores Claudia Lima Marques e Bruno Miragem apontam que os extratos descaracterizam o registro público como meio de garantia de direitos. Segundo eles, os extratos restringem o conhecimento e exame integral dos negócios jurídicos, objeto do registro, pelos registradores e consumidores. Assim, sem o exame e registro do contrato, potencializam-se riscos de sua alteração, dificultando que abusos sejam identificados e combatidos.

No âmbito do Direito de Família e Sucessões, que, por sua vez, vem adotando cada vez mais o contratualismo para regular as relações conjugais, a dispensa da apresentação da escritura de pacto antenupcial, ainda que sob reservas, também pode gerar insegurança jurídica.

Os especialistas de Direito Comercial igualmente se manifestaram sobre a impertinência do extrato. A exemplo disso, citamos o artigo “Risco de insegurança jurídica no crédito”ii, de autoria do Professor Armando Rovai, que foi, aliás, citado por Vossa Excelência na justificativa da Emenda 231. O texto aponta a insegurança decorrente da irresponsabilidade dos registradores sobre registros dos extratos e dos danos causados por estes, com a abertura do sistema para todo o tipo de fraudes. Em destaque do texto citado, encontra-se o seguinte alerta: “O Brasil será o paraíso para aqueles interessados em sumir com os próprios bens do alcance de credores ou dos estelionatários, interessados em vender os bens alheiros”.

No âmbito do Direito Digital, já se manifestou o Professor Ricardo Campos, da Goehte Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha), que escreveu no artigo “Extratos eletrônicos, microssistemas e o Poder Judiciário”iii. Segundo ele, os extratos implicam em clara perda de poder e de competência fiscalizatória das Corregedorias, aumento de fraudes registrais, judicialização de extratos fraudulentos que não passaram pelo crivo e atuação preventiva dos oficiais de registro e degeneração do sistema de direitos reais.

A magistratura do Estado de São Paulo concorda com as conclusões acima resumidas, tendo sido elaborado um parecer que corrobora a meritória e necessária Emenda 231, pois destaca que a utilização dos extratos altera a natureza e o cerne da função registral no Brasil. Ainda, o parecer aponta que a introdução do extrato em nosso sistema jurídico é um desatino jurídico, econômico e político, e sugere cautela ao tratar deste tema. Caso tenha interesse em conhecer seu inteiro teor, uma cópia do parecer citado está acompanhando a presente Carta.

O mesmo documento discute, ainda, os dois modelos existentes de registros de imóveis no mundo, argumentando que o Brasil tinha o melhor modelo antes da introdução do extrato. O modelo brasileiro, conhecido como registro de direitos, possui menores custos de transação, porquanto o esforço de examinar os títulos é realizado apenas uma vez por um agente munido de fé pública.

Em contraste, o modelo de registro de títulos tem custos de transação mais elevados, pois a análise dos títulos deve ser feita sempre que alguém se interessa por uma propriedade. Essa análise, feita por agentes privados, não gera nenhuma presunção jurídica sobre a existência e extensão do direito. O parecer acaba por concluir que o extrato cria um registro de segunda classe, ameaçando o modelo brasileiro de registro de direitos.

Em suma, sempre com a devida vênia, parece-nos que a implementação do extrato pode levar à perda de direitos dos proprietários e credores, pois não há a verificação, por agente munido de fé pública, do consentimento firmado entre as partes, consentimento esse contido, apenas e tão somente, no negócio jurídico, mediante as declarações negociais necessárias.

Destacamos, ainda, que, em nenhuma economia desenvolvida, direitos de propriedade sobre imóveis são transferidos por mero extrato apresentado por um interessado, ainda que acompanhado de cópia simples do referido documento.

Demais disso, parece-nos que a comunidade jurídica, envolvendo nomes do direito civil, imobiliário, registral, consumerista, digital e de família, também não foi consultada sobre a implementação do extrato por Medida Provisória do governo anterior, ainda que referida Medida se tenha convertido em lei.

Assim, em nome da segurança jurídica do ato registral, da preservação das prerrogativas e faculdades concedidas ao titular do direito real sobre bem imóvel, bem como da primazia do negócio jurídico como exercício da autonomia privada, apoiamos a iniciativa adotada por Vossa Excelência, por meio da propositura da Emenda n. 231, pois a eficiência do sistema registral brasileiro e a propriedade, garantia constitucional, dependem do rigor na observância dos requisitos impostos pela legislação em vigor. Não se pretende, com esta carta, infirmar qualquer salutar iniciativa ao incremento de medidas de burocratização do procedimento registral, mas, a nosso ver, qualquer alteração substancial demanda aquilatada e aprofundada discussão prévia sobre o tema, sob pena de vilipêndio ao arcabouço civil e registral do nosso País.

Atenciosamente,

Judith Martins-Costa Livre-Docente USPCarlos Dabus Maluf Titular USPRogério Donnini Livre-Docente PUC/SPJosé Fernando Simão Associado USP
Viviane Limongi Doutora USPFrederico Viegas Titular UNBEroulths Cortiano Jr. Pós Doutor TorinoMauricio Bunazar Doutor USP
Débora Caús Brandão Titular FDSBCRoberta Medina Maia Doutora UERJPablo Cunha Costa Doutor UFPRGustavo Haical Doutor USP
Thiago Rodovalho Titular PUC/CampinasOswaldo Peregrina Doutor PUC/SPMarcel Simões Doutor USPViviane Girardi Doutora UFPR
Rodrigo Xavier Associado UFPRMarcelo Chiavassa Doutor USPThalles Valim Chefe Depto UEMGDaniela Mucilo Mestre PUC/SP
Fernando Eick Mestre USPFernando Sartori Mestre PUC/SPVinícius Zwarg Mestre PUC/SPRaphael Abs Lemos Doutor PUC/SP
Adriano E. Oliveira Mestre PUC/SPMarco Ant. Delfino Mestre UFGDMaurício Lacerda Doutor USPLígia Moreira Mestre PUC/SP
Ruy Rebello Pinho Mestre PUC/SP   

(Assinaturas em ordem cronológica).

i Artigo na coluna de Fausto Macedo, no Estado de São Paulo, disponível em https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/a-raposa-e-o-galinheiro-a-mp-1-085-2021-e-os-riscos- ao-consumidor/

ii O professor Rovai, ex-Senacom e por quatro vezes presidente da JUCESP, publicou artigo disponível em https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2021/11/10/risco-de-inseguranca-juridica-no-credito.ghtml

iii Artigo disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/383616/extratos-eletronicos-microssistemas-e-o- poder-judiciario

Nota do editor do Observatório do Registro. O texto acima foi publicado no site CONJUR no endereço: https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/carta-civilistas-extrato.pdf

Parecer elaborado pelos professores CLÁUDIA LIMA MARQUES e BRUNO MIRAGEM a pedido do Colégio Notarial Brasileiro – Conselho Federal e o Conselho Notarial Brasileiro – Seção São Paulo acerca das repercussões da MP 1.085/2021 nos direitos do consumidor.

Vide o extrato:

Medida Provisória n. 1.085, de 27 de dezembro de 2021. implantação do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP). Faculdade de averbação e registro mediante envio de extrato eletrônico pelo requerente (art. 6º da MP 1.085/2021). Dispensa de apresentação da íntegra do instrumento contratual. Limitação da função de qualificação registral nos atos e negócios jurídicos envolvendo direitos sobre imóveis, especialmente quando vinculados a financiamento imobiliário que prejudica e diminui a proteção de interesses e direitos dos consumidores. Redução do âmbito de exame de legalidade e legitimidade do título pelo Oficial do Registro em relação a violações legais e abusividades.

Restrições à efetividade do direito de acesso ao contrato, quando houver violação do dever pelo fornecedor (arts. 46, 54-d, III, e 54-G, §2º, do Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Riscos de erro e fraude no registro. Dispersão dos bancos de dados para verificação de identidade das partes. Dispensa do sistema de assinatura qualificada, com certificação digital prevista na Lei 14.063 de 23 de setembro de 2020.

Redução do exercício da função de qualificação registral e fragmentação do procedimento que dá causa à dispersão da responsabilidade por erros e fraudes, até então concentrado no regime da Lei n. 8.935, de 18 de novembro de 1994, com fundamento constitucional (art. 236, §1º, da Constituição da República). Prejuízo ao direito básico do consumidor à efetiva prevenção e reparação de danos (art. 6º, VI, do CDC).

Assinaturas Eletrônicas e a Lei 14.382/2022 – parte III

Provimento CNJ 94/2020

Dando seguimento à série Assinaturas Eletrônicas e a Lei 14.382/2022, hoje encerramos o ciclo enfrentando o disposto nos §2º do art. 4º e art. 9º, ambos do Provimento CN-CNJ 94/2020. As questões aqui agitadas guardam estreita relação com o tema central dos artigos anteriores: autenticidade e integridade dos títulos apresentados a registro. Os ditos dispositivos do Provimento 94/2020, baixado no auge da pandemia, em circunstâncias excepcionais – o que de certo modo justificava a solução ali alvitrada –, poderão ser reapreciados pela Corregedoria Nacional de Justiça, razão pela qual apresentamos as breves linhas que se seguem, feitas com o objetivo de colaborar com os debates públicos[1].

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Assinaturas Eletrônicas e a Lei 14.382/2022 – parte II

Assinatura avançada no Registro de Imóveis

Dando seguimento ao artigo anterior (Assinaturas Eletrônicas e a Lei 14.382/2022 – parte I)[1], agora vamos ajustar o foco na adoção das assinaturas avançadas no Registro de Imóveis.

Primeiramente, há de se distinguir muito bem as hipóteses que nos interessam. De um lado a regra geral, estalão reitor que torna obrigatória a utilização da assinatura eletrônica qualificada nos “atos de transferência e de registro de bens imóveis” (inc. IV, § 2º, do art. 5º da Lei 14.063/2020)[2]; de outro, as hipóteses excepcionais em que a assinatura avançada poderá eventualmente ser utilizada. Entretanto, e de um modo geral, a reforma não discrimina expressamente em que casos cada qual poderá ser admitida, deixando a cargo da Corregedoria Nacional de Justiça regulamentar a utilização nos casos concretos.

Veremos que no Registro de Imóveis as assinaturas avançadas poderão ser utilizadas excepcionalmente, ou seja, nos casos que não envolvam atos de alienação ou oneração de bens imóveis. Nem mesmo a reforma da reforma da reforma (MP 1.162/2023) conseguiu consagrar, livre de dúvidas, a sua utilização no Registro de Imóveis[3]. Por esta razão, as hipóteses exceptivas deverão ser objeto de prudente regulamentação pela CN-CNJ (§§ 1º e 2º do art. 17 e art. 38 da Lei 11.977/2009, todos alterados pela Lei 14.382/2022). Em outras palavras, o abrandamento de rigores e de exigências formais será possível, contudo, sempre em casos residuais, levando-se em conta os princípios que iluminam o conjunto normativo que dispõe sobre a matéria.

Assim, atos meramente administrativos, como averbação de construção, mudança de numeração predial, de denominação de logradouros, mutações de estado civil, demolição, reconstrução, reforma e de tantas outras situações congêneres – que não representam mutações jurídico-reais e que calham no âmbito conceitual do que se entende por mera averbação , poderão ser firmados com assinaturas eletrônicas avançadas. Elas podem, ainda, ser utilizadas nos casos de acesso ou de “envio de informações aos registros públicos, quando realizados por meio da internet”, nos termos do § 1º do art. 17 da LRP, alterada pela Lei 14.382/2022. Uma vez mais, a lei endereça a regulamentação à CN-CNJ (§ 2º). Nestes casos exceptivos, calham os pedidos postados pelo SERP (inc. IV do art. 3º da Lei 14.382/2022), além da expedição de certidões com base em autenticação pela plataforma do SERP, ONR ou da própria Serventia (§ 2º do art. 5º da Lei 14.382/2022).

Já os atos e negócios que impliquem mutações jurídico-reais, como os que transfiram, modifiquem, declarem, confirmem ou extingam direitos reais, nestes casos parece-nos indispensável o uso de assinatura eletrônica qualificada, visto que somente esta modalidade pode garantir a confiabilidade, integridade e autoria na relação jurídica consagrada no instrumento registrável (título). Afinal, trata-se de garantir a validade e eficácia dos atos que acedem ao Registro de Imóveis e que produzem os potentes efeitos de constituição de direitos reais e de sua oponibilidade erga omnes.

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MP 1.085/2021 – O vinho e a água chilra

Introdução

Tente imaginar, caro leitor, que um belo dia você se depara com vários eventos aleatórios e extraordinários e se põe a pensar que absurdo seria se suspendêssemos as presunções no direito civil, tornando regra as hipóteses de exceção e vice-versa.

Neste estranho mundo você testemunharia, por exemplo, a queda de um raio no seu terreno e daí concluiria que naquele ponto não deveria construir porque outro corisco poderia precipitar-se no mesmo local.

Imagine, por hipótese, que você tivesse recebido um mandado judicial para promover o registro de determinado título e logo outro mandado ingressasse, ao mesmo tempo, determinando, sob pena de prisão, que se não promovesse o registro daquele título. Ou ainda que recebesse duas escrituras de hipoteca lavradas na mesma data, apresentadas no mesmo dia, que determinassem, taxativamente, a hora da sua lavratura, nos termos do art. 192 da LRP.

A você ocorreria alterar todo o processo de registro em razão destas exceções e em prejuízo das regras ordinárias hauridas da praxe registral?

Pois bem. Foi isso que aconteceu com o SERP – Sistema Eletrônico de Registros Públicos.

Sob o pífio argumento de que um ponto único na internet, com atribuições subdelegadas de protocolo (RTD, RCPJ e RI – inc. V do art. 3º da MP 1.085/2021), se evitaria o risco de conflito e contraditoriedade na constituição de garantias móveis e imóveis no mesmo título e com registros em especialidades diversas. A “prenotação” dos títulos, feita concomitantemente na plataforma eletrônica do SERP, evitaria o risco de que um raio pudesse fulminar a eficácia jurídica do negócio[1].

Nunca entendi muito bem este argumento que me soava simples subversão da ordinariedade dos processos registrais em favor de hipóteses excepcionais, francamente cerebrinas. A simples regulação uniforme, a cargo da Corregedoria Nacional de Justiça, seria mais do que suficiente.

As teses que se multiplicam são engendradas em razão da histórica ineficiência sistêmica dos registros públicos, que não se modernizaram a tempo – malgrado o fato de, há mais de uma década, termos apresentado à comunidade jurídica um modelo elegante de Registro de Imóveis eletrônico[2].

De outra banda, como compreender que se encaminhe a um escaninho único demandas cuja natureza e interesses são essencialmente diversos? Quem necessita de uma certidão de casamento, não vai bater às portas eletrônicas do Registro de Imóveis, assim como quem busca registrar a sua propriedade imobiliária não direciona seu pleito ao Registro Civil. E assim sucessivamente. Se a ideia fosse levar o RTD para o âmbito dos modelos sugeridos por organismos internacionais (OEA, UNCITRAL etc.)[3], por qual razão buscou-se tracionar nesta aventura temerária registros tão diversos como o Registro Civil de Pessoas Naturais, de Pessoas Jurídicas e de Imóveis?

Este melting pot registral é regressivo e disfuncional; nos reconduz a modelos organizativos já superados pela nova ordem constitucional, como procurei demonstrar em outro artigo[4]. A menos que se pretenda não exatamente um retorno, mas simplesmente a ultrapassagem dos modelos tradicionais de registração, confiando o mister registral a entidades privadas.

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MP 1.085/2021 – breves comentários – parte III

Certidão da situação jurídica atualizada do imóvel

O quadro relativo à expedição de certidões na MP 1.085/2021 é prolixo e confuso, e a cada um dos seus dispositivos pode-se endereçar uns quantos pontos críticos. É o que pretendemos fazer nos limites de nossas forças.

Decidimos, juntamente com a editoria do MIGALHAS Notariais e Registrais, a cargo do Prof. Dr. CARLOS EDUARDO ELIAS DE OLIVEIRA, fatiar as reflexões, tornando-as mais claras e acessíveis aos nossos queridos leitores.

Vai, aqui, a Parte III dos comentários que tratará, especificamente, da certidão da situação jurídica atualizada do imóvel e lançará de passagem alguns comentários sobre outras modalidades de certidão.

Vamos nos deter, com especial atenção, nesta “novidade” revelada pela MP 1.085/2021 na alteração da LRP com a inserção do § 9º do art. 19. Veremos que ela reside no fato de se ter apropriado de uma ideia sem compreendê-la perfeitamente e nem de a ter localizado em seu exato contexto original. Será mais uma ideia fora do lugar, como se procurará demonstrar logo abaixo.

Por outro lado, visto de uma certa perspectiva, podemos ter vislumbres acerca do que terá sido uma vetusta tradição já esquecida pela nouvelle vague registral. De modo inconsciente, talvez se tenha repristinado uma antiga praxe formal dos cartórios – a expedição da certidão de propriedade com negativa de ônus e alienações – algo que os mais experientes se lembrarão perfeitamente. Segundo a máxima hegeliana, a história se repete, sempre, pelo menos duas vezes – ao que o nefasto averbaria: a segunda como farsa

Seja como for, não há nada de novo no front. Vamos indicar, desde logo, o quadro que será objeto de nosso estudo: 

“Art. 19. […]

§ 9º  A certidão da situação jurídica atualizada do imóvel compreende as informações vigentes de sua descrição, número de contribuinte, proprietário, direitos, ônus e restrições judiciais e administrativas, incidentes sobre o imóvel e o respectivo titular, além das demais informações necessárias à comprovação da propriedade e à transmissão e à constituição de outros direitos reais.

§ 10 As certidões do registro de imóveis, inclusive aquelas de que trata o § 6º, serão emitidas nos seguintes prazos máximos, contados a partir do pagamento dos emolumentos: […]

II – um dia, para a certidão da situação jurídica atualizada do imóvel; e

§ 11  No âmbito do registro de imóveis, a certidão de inteiro teor da matrícula contém a reprodução de todo seu conteúdo e é suficiente para fins de comprovação de propriedade, direitos, ônus reais e restrições sobre o imóvel, independentemente de certificação específica pelo oficial.

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MP 1.085 e o Monstro de Horácio

Introdução

Dobro-me à tarefa de interpretar e conjugar as disposições contidas na Medida Provisória 1.085/2021, baixada no lusco-fusco do ano findo, cotejando-as com a legislação do sistema registral brasileiro, buscando uma interpretação coerente e aproveitando o que de bom a medida provisória possa nos revelar.

Apresento à reflexão dos leitores alguns aspectos que poderiam ter sido objeto de debates e estudos antes que se consumasse a publicação da dita MP. São ideias e reflexões que julgo ainda válidas e que podem ser úteis, a fim de contribuir com o transcurso do processo legislativo ou de posterior regulamentação pela Corregedoria Nacional de Justiça.

Grande parte do texto já havia sido objeto de debates marginais travados no âmbito do IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, entidade que tive a honra de presidir à época em que as discussões se iniciaram e tomavam corpo. Foi, então, produzida e apresentada a Nota Técnica 2/2020, de 6 de agosto de 2020, em que se concluía que as disposições legais e normativas já existentes seriam mais do que suficientes para que os cartórios de registro de imóveis pudessem operar o Registro de Imóveis Eletrônico, de forma totalmente digital[1].

No entanto, as discussões transcorreram num circuito estrito que envolveu agentes do governo federal, interlocutores do mercado e setores da própria categoria profissional. Ainda assim, como quem aparece de surpresa na festa sem ser convidado, oferecemos críticas bem fundamentadas ao projeto, quando, ainda no ano de 2020, as ideias germinavam e eram agitadas interna corporis entre alguns poucos registradores[2].

Lamenta-se que não tenha havido uma discussão pública travada diretamente com as lideranças mais qualificadas da corporação registral, nem com a comunidade jurídica. Não se ouviu, tampouco, a Academia, nem se auscultou os registradores que congregam em organismos internacionais como o IBEROREG – Rede Registral Ibero americana e IPRA-Cinder – International Property Registries Association, entidades com as quais o IRIB mantém estreitos laços de cooperação técnica, científica e doutrinária de onde se poderia haurir bons exemplos a inspirar iniciativas de modernização dos registros prediais brasileiros.

Uma proposta de reforma legal, de tamanha magnitude, deveria ter sido posta em audiência pública, quando não enviada como projeto de lei ao Congresso Nacional, o que deveria ter sido feito. Ainda agora tomamos conhecimento de que o PL 4.188/2021, que tramitava em regime de urgência, o rito especial foi suprimido pela Mensagem de Cancelamento de Urgência n. 67/2022, do Executivo Federal. Foi retirada a urgência do texto com o fim de ser “inserido na MP (medida provisória) 1.085 e o tema continua sendo prioritário”, segundo noticiou o Portal R7[3].

Tenho absoluta certeza de que os técnicos do governo, instados por registradores e imbuídos da melhor boa-fé, estabeleceram uma interlocução que se revelou, afinal, ruinosa. Faltou aos interlocutores a experiência provada na diuturnidade do mister registral vivida nas pequenas, médias e grandes serventias do Brasil, além da minguada representação institucional. Perdeu-se uma rara oportunidade de atualizar o marco legal do Registro Imobiliário e reformar, com zelo e prudência, a conhecida Lei 6.015/1973, contribuindo com o impulso de modernização do sistema, fato reclamado pela sociedade, pelo mercado e pela própria administração.

A iniciativa do Ministério da Economia ainda assim é louvável. Ela deveria ter passado pelos canais de representação institucional da categoria, vale dizer, pelo IRIB, entidade que indiscutivelmente representa todos os registradores imobiliários brasileiros e que foi a responsável pelas boas iniciativas que frutificaram ao longo dos últimos 50 anos.

O texto revela algumas boas ideias que, a seu tempo, serão destacadas e valorizadas no labor a que me dedico de anotar e comentar esta MP passo a passo. Não desconsidero os imensos riscos de comentar uma norma inçada de reconhecidas dificuldades, potencializadas pela atecnia na redação de seus dispositivos, mas é o que nos cabe agora.

Enfim, temos a missão de enfrentar a iniciativa e tentar, da melhor maneira possível, contribuir para o sucesso das reformas, escoimando do texto suas imperfeições – desde sempre percebidas e explicitadas –, destacando outras que são virtuosas e sobre as quais voltaremos oportunamente, na série de textos que se seguirão nos comentários aos artigos e dispositivos da referida Medida Provisória 1.085/2021.

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Serpentina registral. No caminho do Registro tinha uma pedra

No caminho do registro tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho…

Como diria Oswald de Andrade, somo tudo, incorporo – e como! Mas não digeri como deveria, amiga.

O Bispo Sardinha era um gajo velho e sarado.

A senda dos sistemas de informação é rica e especializada. Acha-se além da capacidade deste escriba esforçado. Fiz o que pude, mas deixei uma alameda como pista que pode nos levar a uma vasta planície. Hoje posto no Migalhas.

Alguém poderá se aventurar e escrever sobre os sistemas tradicionais e os modernos sistemas de informação que a serpentina registral inaugura como soluço de má-digerida modernidade.

Intuo que os sistemas registrais tenham outra natureza ontológica e uma etiologia distintas. Distingui-los da SERPE é muito tentador e pode ser revelador. E instrutivo.

A isso me dedico, querida amiga.

A SERPENTINA REGISTRAL (aka Reforma Curupira)

As bolhas da modernidade

Estive no domingo na Avenida São Luís, no espaçoso apartamento do Edifício Louvre, e eis que encontro o Dr. Ermitânio Prado inesperadamente tranquilo. Abriu a porta, e foi logo dizendo “…salut! Bonjour! Ça va?“.

Quando cumprimenta em francês (e não resmunga algo num alemão ininteligível) é sinal de que está de bom humor e disposto a conversar.

Disse-me que tem passado os seus dias de pandemia ouvindo a série de Trouvere Medieval Ministries. Tem podido sair de casa e caminhar pelas redondezas, como faz pelas manhãs, evitando os “miasmas do Baixo Augusta, infestado de ratos, putas e miseráveis tragados pela droga”, como diz quando está enfurecido.

Serve uma dose de Camus Cognac Cuvée e se põe a ouvir atentamente o que lhe digo. Depois de um tempo, cruza as pernas tranquilamente, lança um olhar cansado pela janela e fala como se encarnasse um personagem de O Rei da Vela:

– “O rosto impávido mira um futuro certo, escriba; mas, pasme!, os pés apontam para trás. A geleia-geral dessa modernidade curupira inaugura o monumento no Planalto Central do país. [cantarola] Viva a Bossa, sa, sa / Viva a Palhoça, ça, ça, ça, ça…”. E ri… “Querido Cartaphilus! O chato-boy crê no único que pode ver e, que incrível! vê tudo moderno. [Cantarola] o monumento é bem moderno. É de papel crepom e prata.

Rimos da representação afetada e algo ridícula, imitando o homúnculo do Le Grand Magic Circus de Jérôme Savary. Toma um trago e resmunga: “Tristes Trópicos, Registrador, tristes tropicalistas.”

Ficamos os dois em silêncio. Penso que compreendo a canseira imensa em face das intentonas modernosas da nouvelle vague registral que se desveste da tradição, sem lenço nem documento

Ele sabe, eu sei, alguns já sabem: rondam grandes aflições no quintal. Porém, a Europa ensaia uma guerra, a sociedade acha-se metida de patas numa realidade mais distópica do que aquela que se vê nos cenários do Neuromancer, de Gibson, ou na ficção de P. K. Dick… Sexo, drogas, tecnologia, hipermaterialismo, transumanismo…

– “Huxley anteviu, H. G. Wells relatou”, disse, lançando um olhar melancólico ao pardo céu paulistano.

Novo silêncio. Quando ele se voltou, disse-lhe que estava estudando a teoria dos sistemas de informação e cotejando – se é que isso é possível – os dois “sistemas” que disputam as atenções neste exato momento – o SREI e o SERP.

O sistema centralizado de gestão e trânsito de dados registrais (SERP) revela seus objetivos claramente no art. 3º da MP 1.085/2021. Disse-lhe que este sistema parece-me, em essência, mais do que um simples hub, pois promove não só o trânsito de dados, mas produz, combina e irradia informação juridicamente transcendente à sociedade.

Disse-lhe que dados não são informação e que esta não é proclamação jurídica de situações jurídicas com transcendência real. A publicidade registral é inovadora da ordem jurídica estática… O trato sucessivo que se produz…

Ele me interrompe. Dispara, provavelmente se referindo à blockchain:

– Posta nos escaninhos etéricos, essa outra serpe, que se precipita em redes rizomáticas de elétrons, há de aninhar cada bloco feito ovo viperino no uterus de silício! Eis a recidiva da conhecida sedução preternatural.

Não entendo o que diz. Tento retomar. “A publicidade decorre de uma atividade pessoal, Dr. Prado, expressão de um jurista especializado”, enfatizo. “Ele proclama uma jurisdição voluntária. Um humano, Dr. Ermitânio! um ser humano dinamiza o trato e dá vida aos negócios”, digo quase em desespero.

Nova pausa. Novo trago. A mim causa perplexidade que se possa atribuir a um “sistema” faculdades, poderes e atribuições que são próprias, singulares, especializadas e trespassadas, pela via constitucional da delegação, a registradores singulares. O mister jurídico próprio do oficial não se compagina com as atividades desempenhadas por um “sistema” eletrônico de informações centralizadas.

Os instrumentos e ferramentas tecnológicos que são postos a serviço de juristas, em apoio às suas atividades de registração, não podem chegar a substituir esses profissionais do direito e transcender o seu mister registral.

Não sou ludita, nem ingênuo, disse. Esta mutação paradigmática que se avizinha há de ser bem compreendida e debatida por nossa comunidade de juristas – antes que avancemos nesta twilight zone das novas tecnologias aplicadas a atividades eminentemente jurídicas…

Ele me interrompe, pigarreando:

– “Serp, a velha serpe, serpente do pensamento que mente”. E cita alguma passagem obscura: “o diabólico chicote de víboras das ideias”…

Fecha lentamente os olhos e se deixa levar e lavar por dentro.

Quando me dou conta, ele já está com os olhos postos em mim, observando minha reação. E volta a recitar:

“SERPENT: PENSER
PRESENT: SERPENT” (A.C).

Achei linda a declamação, mas não a compreendi de imediato. Vim a saber depois que citava Augusto de Campos a propósito de sua tradução de Paul Valéry.

Disse AUGUSTO DE CAMPOS, na introdução da sua belíssima tradução: ao “mirar para a própria cauda em direção ao passado, dentro de uma curva de movimento contrário; logo abaixo, o desenho de uma serpente que olha para trás, para a sua cauda, com a seguinte legenda: ‘Como? Isto também sou eu?’ Não seria lícito vê-la – à palavra present -, em tal contexto, como um anagrama de serpent?”. Daí a construção do lindo ideograma reproduzido logo acima.

Saí do apartamento estranhamente aliviado. De alguma forma, se insinuou em minha mente a ideia de que a serpente, de repente, faz-se tempo presente quando se depara com a própria cauda. Então, pensei: “bem, é hora de conter o que me contém”. E deixei-me estar em silêncio, respirando tranquila e pausadamente.

(Madrugada de 8/3/2022, Flavum Domus).

A MP 1.085/2021 e os prazos no Registro de Imóveis – parte II

Sérgio Jacomino, Registrador Imobiliário

1. Introdução

A MP 1.085/2021 é fonte de controvérsias. A redação não primou pelo apuro técnico e o intérprete se vê muitas vezes confrontado com questões que somente a jurisprudência haverá de solver. Até lá, divisam-se algumas turbulências e a tarefa do intérprete (e do operador do registro) é conciliar o que se revela confuso e contraditório e buscar um entendimento razoável para que a Medida possa ser cumprida e frutifique como pretendido.

Empreender uma análise de um texto legal tão complexo, nos alvores de sua vigência, já foi objeto de prudente advertência[1]. Todavia, como escapar desse desafio quando sabemos que a medida entrou em vigor já na data de sua publicação e os registradores devem, de imediato, extrair uma diretriz segura para sua aplicação na diuturnidade de seu mister?

Um dos pontos delicados da MP 1.085/2021 é o relativo aos prazos – seja para efetivação do registro ou para a expedição de certidões. Já apontei, em texto anterior, a aparente incongruência verificada entre os dispositivos que tratam da protocolização dos títulos e dos efeitos que daí possam decorrer, a depender da interpretação que se lhes dê[2].

Além disso, há dezenas de leis e normas que preveem prazos distintos para algumas espécies de títulos – com ênfase para os títulos qualificados como “eletrônicos”. Além disso, com as alterações havidas, criou-se um escalonamento de prazos, como estabelecido no artigo 188 da Lei 6.015/1973. Vamos nos achegar às hipóteses indicadas, enfrentando-as de modo realista.

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