Certidão da situação jurídica atualizada do imóvel
O quadro relativo à expedição de certidões na MP 1.085/2021 é prolixo e confuso, e a cada um dos seus dispositivos pode-se endereçar uns quantos pontos críticos. É o que pretendemos fazer nos limites de nossas forças.
Decidimos, juntamente com a editoria do MIGALHAS Notariais e Registrais, a cargo do Prof. Dr. CARLOS EDUARDO ELIAS DE OLIVEIRA, fatiar as reflexões, tornando-as mais claras e acessíveis aos nossos queridos leitores.
Vai, aqui, a Parte III dos comentários que tratará, especificamente, da certidão da situação jurídica atualizada do imóvel e lançará de passagem alguns comentários sobre outras modalidades de certidão.
Vamos nos deter, com especial atenção, nesta “novidade” revelada pela MP 1.085/2021 na alteração da LRP com a inserção do § 9º do art. 19. Veremos que ela reside no fato de se ter apropriado de uma ideia sem compreendê-la perfeitamente e nem de a ter localizado em seu exato contexto original. Será mais uma ideia fora do lugar, como se procurará demonstrar logo abaixo.
Por outro lado, visto de uma certa perspectiva, podemos ter vislumbres acerca do que terá sido uma vetusta tradição já esquecida pela nouvelle vague registral. De modo inconsciente, talvez se tenha repristinado uma antiga praxe formal dos cartórios – a expedição da certidão de propriedade com negativa de ônus e alienações – algo que os mais experientes se lembrarão perfeitamente. Segundo a máxima hegeliana, a história se repete, sempre, pelo menos duas vezes – ao que o nefasto averbaria: a segunda como farsa…
Seja como for, não há nada de novo no front. Vamos indicar, desde logo, o quadro que será objeto de nosso estudo:
“Art. 19. […]
§ 9º A certidão da situação jurídica atualizada do imóvel compreende as informações vigentes de sua descrição, número de contribuinte, proprietário, direitos, ônus e restrições judiciais e administrativas, incidentes sobre o imóvel e o respectivo titular, além das demais informações necessárias à comprovação da propriedade e à transmissão e à constituição de outros direitos reais.
§ 10 As certidões do registro de imóveis, inclusive aquelas de que trata o § 6º, serão emitidas nos seguintes prazos máximos, contados a partir do pagamento dos emolumentos: […]
II – um dia, para a certidão da situação jurídica atualizada do imóvel; e
§ 11 No âmbito do registro de imóveis, a certidão de inteiro teor da matrícula contém a reprodução de todo seu conteúdo e é suficiente para fins de comprovação de propriedade, direitos, ônus reais e restrições sobre o imóvel, independentemente de certificação específica pelo oficial.
A curiosa tradição que se colhe do futuro
Vamos compreender o contexto em que essa disposição se formou e pôde consubstanciar a proposta de reforma legislativa que se lê no documento intitulado Dinamização do Crédito e de Fomento ao Home Equity, encaminhado para debates internos do IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, entidade que presidi à época das formulações originais:
“Introdução da certidão de situação jurídica atualizada na realidade registral imobiliária, com a exposição de seu conteúdo, qual seja, informações sobre a situação jurídica corrente do imóvel, excluindo-se eventuais cancelamentos e dados desatualizados, facilitando a interpretação da informação pelo usuário e, portanto, a redução de custos transacionais”[1].
Seus autores especificariam melhor a ideia dizendo que a depuração das informações registrais permitiria expungir da certidão “eventuais cancelamentos e dados desatualizados, facilitando a interpretação da informação pelo usuário”, revelando, assim, “toda a situação jurídica do imóvel”[2].
Difundida como uma grande novidade, tal certidão era percebida e saudada pelo mercado imobiliário como resposta adequada e efetiva às demandas por agilidade, certeza e segurança, favorecendo os intercâmbios econômicos e dinamizando o crédito imobiliário.
Entretanto, os autores não se detiveram na avaliação realista do fato de que não houve, ainda, a reconformação dos meios e conteúdos do próprio Registro de Imóveis, um pré-requisito insuperável para colocar em marcha as peças dessa nova maquinaria registral de nome detestável (SERP)[3].
Como o conhecemos hoje, o Registro de Imóveis é um labirinto narrativo que sempre deve ser percorrido a cada tempo para que dele se possa extrair um mapa seguro do caminho antes de se praticar qualquer ato ou expedir uma certidão, como a prevista nesta medida.
Lançando-se a uma empresa como esta, à qual faltam os insumos básicos para a ereção de uma nova arquitetura do sistema registral brasileiro, as chances de ficarmos aquém dos objetivos é imensa. Qualificamos, com ligeireza, o registro – como “eletrônico” – antes mesmo que completássemos as etapas da reforma do próprio sistema, que segue analógico e seus meios radicalmente tradicionais.
A reforma do sistema registral, com a concretização do Projeto SREI – Sistema de Registro Eletrônico, estava em pleno desenvolvimento quando fomos colhidos pela MP 1.085/2021, o que é profundamente lamentável. Ficamos perplexos quando explodiu um rebento serôdio, SERP, fruto de um contubérnio semântico que ao pobre Dr. ERMITÂNIO PRADO soou como mero slogan – “trata-se da curiosa cópula das expressões sistema + eletrônico, conotando modernidade e eficiência, palavras que são belas flores, mas que não dão bons frutos”[4].
O resultado é decepcionante e muitos passaram a reconhecer no SERP, por efeito de antonomásia, os atributos de novidade, modernidade e efetividade do próprio Registro de Imóveis eletrônico, o que, por si só, justificaria que se pusesse a MP 1.085/2021 em vigor na data de sua publicação e se expectasse que seus dispositivos pudessem ser, desde logo, implementados como que num passe de mágica.
As ideias que embasaram a reforma são idealizações, não guardando correspondência com a dura realidade dos meios hoje utilizados pelo Registro de Imóveis brasileiro para execução de seu mister. A substância registral não é a espuma de concepções bem-intencionadas e justificadas de modo higiênico e redentor. Dr. PRADO diria que se buscou “haurir uma experiência bem provada no futuro, construindo-a a partir de seus alicerces fundeados no ar”[5].
Mecanização do registro – a certidão reprográfica
O desenvolvimento do Registro de Imóveis do Brasil cumpre um largo processo histórico percorrido em mais de um século e meio. O advento da Lei 6.015/1973 representou uma etapa de mudança de paradigmas no curso de um trajeto de modernização do sistema registral pátrio.
O século XX testemunhou o advento de máquinas datilográficas, mimeógrafos, canetas-tinteiros, esferográficas, carimbos, copiadoras, dispositivos reprográficos, hectógrafos e micrográficos, computadores etc. As mudanças deram azo às fichas avulsas mecanizadas das matrículas, o que se revelaria determinante nas mudanças dos processos internos das serventias brasileiras[6]. Os ares da modernidade do século chegavam às serventias prediais em ondas de idealismo e boa dose de pragmatismo.
Pouco após o advento da atual Lei 6.015/1973, MARIA HELENA LEONEL GANDOLFO, comentando a expedição de certidões de matrículas por meio de reprografia, disse que nada mais se fez do que “introduzir uma forma de publicidade adequada e compatível com outras relevantes inovações implantadas pelo mesmo diploma legal”, aludindo à mecanização do sistema registral, por ela percebida como avanço modernizador.
As máquinas passariam a desempenhar um papel cada vez mais importante nos processos internos dos cartórios, entre outras coisas por representar uma forma rápida e prática de expedir certidões[7].
Assim é que, às vésperas da vigência da LRP, as Varas de Registros Públicos de São Paulo baixariam provimentos conjuntos para guiar os registradores paulistanos na aplicação do novo diploma legal que entraria em vigor depois de um longo período de vacatio. Havia um certo temor prudencial em sancionar o uso de certos dispositivos modernizantes da lei e, especificamente, no que, aqui, nos interessa, o Provimento Conjunto 2/1975 dificultaria a expedição de certidões por meio reprográfico. O § 1º do art. 35 cravava a seguinte disposição:
“Nos casos do parágrafo 3º do artigo 19 da Lei de Registros Públicos é vedada, salvo os casos de requisição judicial ou requerimento do interessado, expedição de certidões por meio reprográfico”[8].
Esse entendimento, firmado nos alvores da nova lei, causou uma reação no corpo de registradores. A expedição da certidão por meio reprográfico – logo se percebeu –, representava um fator de economia interna das serventias, pois não se exigia mais do que uma máquina copiadora e um carimbo de autenticação aposto na finalização de cada certidão. Transferia-se ao interessado a dura tarefa de escrutinizar os atos lançados na matrícula e, com isso, apurar e definir, por si próprio, a situação jurídica dos bens e direitos de seu interesse.
Contudo, essa orientação não se manteria. No transcurso do XIV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, realizado em 1987, na cidade de Foz do Iguaçu, Paraná, RICARDO DIP enfrentaria o problema e justificaria a expedição da certidão por cópia reprográfica da matrícula por livre eleição dos meios pelo Oficial do Registro. O que se agravara com a nota de exceção – a teor do Provimento em vigor em São Paulo – se convolaria em uma nova regra, rapidamente assimilada e posta em prática pelos Oficiais de Registro de todo o país.
Refutando (corretamente) a interpretação original que se fez corrente em São Paulo, DIP dirá que, em relação às tais “certificações, não se põe a questão gnoseológica de eleição do conteúdo do instrumento certificante, ao reverso do que ocorre com as certidões em resumo ou em relatório, conforme quesitos (art. 19, Lei de Registros Públicos) que exigem do certificador a aferição noética das informações indispensáveis à validade das mesmas certidões”.
A expedição da certidão em modo reprográfico, de fato, revelava um caráter objetivo ou imediato, porque a ela “não concorre a intervenção do pensamento como fonte de representação de um fato”. Concluiria que “tanto melhor será a certificação integral, quanto mais amanuense, então, se comportar o certificador”.
Reduzia-se, assim, a um grau mínimo, a atividade gnoseológica do registrador para expedição das certidões integrais do registro, que passariam, então, a ser produzidas pelas máquinas reprográficas[9]. Dali para os meios eletrônicos, e depois à internet, foi um pulo.
Digesto registral
Lancemos um olhar à boa tradição do registro imobiliário brasileiro. Ao longo de mais de uma centúria, valorizava-se, sobremaneira, a consagração da publicidade registral que se perfazia por meio de uma atividade recognitiva do registrador. Conjugando e interpretando as inscrições lançadas em seus vários livros de registro e indicadores, o Oficial produziria o digesto registral e daria publicidade da situação jurídica dos bens, por meio das chamadas “certidões atualizadas de propriedade e negativas de ônus e alienações” (arts. 229 e 230 da LRP). A dita certidão, evidentemente, incorporava a “certidão de ações reais e pessoais reipersecutórias, relativas ao imóvel, e a de ônus reais, expedidas pelo Registro de Imóveis competente” exigida para a lavratura de escrituras públicas (inc. IV do art. 1º, Decreto 93.240/1986). Os ônus, gravames, constrições e demais vicissitudes que gravavam a propriedade deveriam ser igualmente relatadas[10]. A expedição da certidão de propriedade representava, portanto, o resultado de um labor técnico confiado a juristas práticos, tudo sob sua estrita e pessoal responsabilidade.
Todavia, a adoção de tal processo técnico-jurídico acabava representando custos apreciáveis na economia interna das serventias. Os setores de certidão eram tão complexos quanto os da qualificação e a proclamação dos direitos inscritos, por meio da expedição da certidão de propriedade, era um modo de se qualificar, escrupulosamente, o output do sistema – assim como se procede na entrada, com o exame percuciente de todos os títulos que ingressam, ordinariamente, no Registro de Imóveis. O processo representava custos humanos e materiais evidentes, além de gerar uma responsabilidade adjeta que sempre acicatava os oficiais e seus ditosos amanuenses.
Pouco a pouco, a latere do princípio da segurança jurídica, revelou-se um novo: o da “economia de tempo, esforços e gastos”, conforme notou DIP. De fato, os processos jurídicos não podem apartar-se da racionalidade econômica e dos influxos tecnológicos que reconformam, progressivamente, o sistema.
Concluindo, sabemos que o fator determinante que permitiu a redução drástica dos prazos para expedição da certidão da matrícula foi o fato de que esse processo amanuense de expedição das certidões foi automatizado, dando agilidade aos processos internos, sacrificando, porém, a clareza, precisão e certeza na prestação final da informação juridicamente transcendente.
Sabemos, hoje, que os resultados dessa opção se revelariam problemáticos por vários motivos. Vamos nos deter em apenas alguns deles e oferecer elementos para reflexão e debate ulteriores.
A pororoca matricial e a galáxia registral brasileira
Os cartórios acham-se assolados por oceanos narrativos. Sucedem-se cadeias constitutivas (ou declarativas, enunciativas, de mera notícia), seja positiva ou negativamente, inovando a situação dominial do bem a cada ato lançado.
Os elementos vão se decantando diuturnamente no fundo de matrículas espalhadas por todo o país, formando a galáxia registral brasileira. Cada unidade é parte integrante de um todo que se reconstrói, dia após dia, minuto a minuto, segundo a segundo.
Na nova era dos dados, cada matrícula tem um número próprio (chave primária) que é o Código Nacional de Matrícula (CNM) “que corresponde à numeração única de matrículas imobiliárias em âmbito nacional” (art. 235-A da LRP).
Os leitores sabem, mas não custa repetir, o todo não deve ser centralizado, mas distribuído na galáxia registral, compartilhando recursos e meios entre os oficiais com vistas a proporcionar o acesso universalizado, molecuralizar o sistema, e colimar os objetivos do Registro de Imóveis brasileiro na era de informação e comunicação. Como disse na despedida do IRIB:
“Todos sabem que penso ser factível, como resposta aos desafios postos, conceber uma infraestrutura em que se possa entrar e sair de todos os nós que compõem o grafo registral pela reafirmação coordenada e arquetípica dessa maravilhosa máquina de descentralidades representada pelo Registro Imobiliário brasileiro.
Não é necessário esvaziar a importância ou suprimir cada nó dessa imensa rede, eis que a rede somos nós! Isto nos dá identidade, fortaleza, e nos singulariza. Para este velho registrador, a busca do Graal registral consiste, basicamente, em reencontrar e reconhecer os caminhos que nos conectam com nossa essencialidade, formada do conjunto de seus vários vértices (nós) que compõem o grande círculo registral […]”[11].
A matriz registral está sendo urdida dia e noite, interna e externamente, desenvolvendo-se em forma de teia inferencial que envolve, progressivamente, os vários núcleos significativos do sistema (cartórios, livros do Registro, protocolos, indisponibilidade de bens, penhoras online, ofícios online, indicadores etc.), além da implicação lógica que progressivamente se dá entre os vários atos praticados no próprio Livro de Matrícula (fichas auxiliares, remissões recíprocas etc.).
Essa teia informacional se expande sob uma base comum – os meios eletrônicos. A panóplia dinâmica de atos, fatos, direitos – além das sinaléticas internas –, reclama a instauração de novos paradigmas para o tratamento da base. A gestão eletrônica do Registro de Imóveis (ainda) não é possível com suporte nos meios e ferramentas de que dispõem, atualmente, os cartórios brasileiros.
Esse fenômeno disruptivo é também destrutivo, representa oportunidades e riscos, e inexoravelmente nos conduzirá ao abandono progressivo da taxonomia ontológica tradicional, criada como expressão da administração da informação dos livros de registro dos últimos 150 anos, fazendo-nos avançar, celeremente, para a formação de uma nova plataforma digital[12].
Estamos diante dos portais de um admirável mundo novo, mas alguém se esqueceu de que deveria portar as chaves…
Foi pensando num bom sistema de governança, gestão e administração, a assegurar a proteção de dados pessoais e reforçar e garantir o modelo de distribuição (delegação) de competências do sistema notarial e registral brasileiro, que o ONR – Operador Nacional do SREI foi criado. Seu pleno desenvolvimento ainda não se consumou, mas é expectável que seu modelo, muito mais sofisticado e elegante, quando implementado dará as respostas que a sociedade, o mercado e a administração reclamam. Sem falar na economia de escala como fator de desenvolvimento e modernização das pequenas, médias e grandes serventias.
Sabemos que a assimilação e utilização de recursos tecnológicos pelas serventias se deu de forma inadequada, desprezando-se a riqueza dos meios em favor da construção de simulacros registrais, representados pelos sistemas internos e por ramais chamados de “centrais” estaduais.
As transformações da sociedade digital representam para os cartórios muitas dificuldades, expressas em demandas cuja natureza e singularidade a tecnologia disponível nos cartórios simplesmente não é capaz de suportar – tanto internamente, como nas capas exógenas compartilhadas, “palafitas digitais, estruturas ablaqueadas, sem amarração e alicerces conceituais e jurídicos firmes e estáveis”, na mordaz observação de PRADO[13].
Nada se fez, efetivamente, para promover uma efetiva mudança de paradigma na organização dos meios – livros e repositórios eletrônicos – nem, tampouco, nos processos de registração. Repito o que venho apregoando na série de artigos a que me dedico: o Brasil, simplesmente, não conta com um bom sistema de registro de imóveis eletrônico, no sentido próprio da palavra; conta, apenas, com arcabouços e infraestruturas ineficientes, custosos e disfuncionais. O SERP não é uma solução, mas um problema adicional, como já indicado em artigo anterior[14]. Vale rematar: não temos o SREI ainda. Penso que nos resta um pequeno tempo para promover um desvio na trajetória e evitar que afundemos em idealizações descoladas da tradição do bom Registro de Imóveis nacional. O risco é que não saiamos do lugar.
Voltando à vaca fria, o modelo de expedição de certidão, por meio “reprográfico”, enuncia e veicula nas redes eletrônicas circunstâncias e vicissitudes relativas a atos e fatos jurídicos já cancelados, extintos, retificados, anulados – total e parcialmente –, o que me levou a qualificar o restolho informacional como cemitério registral, campo santo de situações jurídicas finadas que só interessariam aos próprios interessados (protegidos pela LGPD) ou àqueles que se dedicam a uma legítima e justificada análise retrospectiva do historial tabular[15].
Nunca se objetou que o acesso ao historial tabular fosse franqueado aos que demonstrassem (não provassem!) legitimidade rogatória. Este é um tema de direito, cujo aprofundamento específico não calha aqui, mas que vale sempre a indicação para posterior debates e reflexões.
Sutor ultra crepidam!
Abro aqui um parêntese para enfrentar um argumento que, inesperadamente, se insinuou no transcurso das discussões de reforma da LRP. Muitos profissionais – e mesmo empresas de informação, despachantes, corretores, birôs, centrais estaduais – passaram a reclamar, para si, a tarefa de interpretar e revelar a situação jurídica dos bens inscritos. Muitas ideias congêneres surgiram no transcurso das discussões – como o trespasse de atividades próprias de registradores a entes personalizados (o art. 3º da MP 1.085/2021 é um mau agouro).
Como sacerdotes de uma nova ordem jurídico-econômica, alguns arrimam-se como doutores das tábulas, promovendo o que de modo afetado se chama agora de due diligence of law revelando, aos profanos, a situação jurídica atualizada do imóvel. A ideia expressa uma indisfarçável visão sestrosa dos cartorários. É como se estivesse subentendido: “amanuense, não vá além das suas tábuas!”.
Entretanto, é preciso reconduzir a discussão a um novo patamar. Em primeiro lugar, o homem comum do povo, o mercado e o crédito imobiliário não necessitam mais do que a revelação da propriedade e de seus ônus, de modo seguro, rápido e eficaz. A matrícula imobiliária é um ente dinâmico, já a filiação revela, somente para interessados legitimados, a cadeia estática de atos inscritos (trato sucessivo) que remanesce na penumbra por já não projetar efeitos diretamente sobre o tráfico jurídico-imobiliário.
No direito inglês, temos o mecanismo do Curtain Principle ou Mirror Principle. Para GRAY & GRAY, o objetivo do registro imobiliário é que “any prospective purchaser of registered land should always be able to verify, by simple examination of the register, the exact nature of all interests existing in or over the land which he proposes to buy”[16].
Isto não é nada mais, nada menos, do que a nossa tradicionalíssima certidão de propriedade com negativa de ônus e alienações de antanho.
Além disso, jamais se buscou interditar o caminho da expedição da certidão integral da matrícula a rogo dos interessados, ou de certidões expedidas por meio de relatórios, ou em atenção a quesitos formulados (art. 19 da LRP).
Curiosamente, vimos a ressurreição da certidão reprográfica dos velhos amanuenses registrais – a “certidão de inteiro teor da matrícula”, com a reprodução de todo seu conteúdo. Diz a lei que ela é “suficiente para fins de comprovação de propriedade, direitos, ônus reais e restrições sobre o imóvel” (§ 11 do art. 19, LRP).
Ora, rezando a MP que ela vale sem “certificação específica pelo oficial”, a construção do dispositivo é uma pérola. Buscou-se, na verdade, institucionalizar a “visualização da matrícula”, prática decalcada da experiência espanhola, que faria sucesso aqui e acolá. A tosca inovação se deu em decorrência da frouxidão conceitual da prática tal e como adotada entre nós. Se não podemos o mais, contentemo-nos com o menos, ainda quando sabemos que o menos não é suficiente – i.e., se estivermos tratando do mesmo tema, ou seja, Registro Eletrônico de Imóveis.
Seja como for, agora temos (ao menos nominalmente) uma certidão, mas uma certidão sem certificação específica, um ato jurídico adéspota que a máquina materializa nas redes, a fim de comprovar a propriedade, ônus e restrições sem o dizer, especificamente, e sem a firmeza da fé pública. Ou seja: uma certidão expedida por um incógnito deus ex machina[17].
Esta nova disposição apresenta, afinal, um nítido caráter acomodatício de interesses. Havia uma grita geral na comunidade especializada acerca da supressão da chamada “visualização da matrícula”. Temiam que voltaríamos às velhas certidões datilografadas (nos teclados digitais) que seriam expedidas no prazo de cinco dias, o que sempre se procurou objetar[18]. O SREI é o futuro, não o passado, cara-pálida!
Enfim, a Corregedoria Nacional de Justiça há de sopesar os valores e interesses que guardam esta delicada questão de exposição de dados e elementos de caráter pessoal que, embora cancelados, extintos, anulados ou reservados, mantêm-se esventrados na pólis pelas cópias digitais de matrículas espalhadas sem controle pela terra incógnita da internet. Hic abundant leones!
Tempo real versus tempo do processo
Quando se fala em real time, pensamos, imediatamente, no lapso instantâneo de tempo durante o qual algo acontece – sem atrasos perceptíveis entre o input e seu efeito (ou consequência – output). É, justamente, em tempo real, quando pensamos que um bom sistema de computação aplicado ao Registro de Imóveis deve realizar as operações de modo mais rápido e eficiente do que o fariam os humanos com suas ferramentas analógicas.
Falamos, igualmente, em dados estruturados, quando estes estão dispostos em um formato padronizado, com estrutura definida, especificação e modelagem bem estabelecidas etc. Essas estruturas devem conservar uma ordem persistente para que as informações possam ser acessadas por humanos ou por máquinas e revelar informação útil. Geralmente, esses elementos compõem os chamados bancos de dados.
Pois bem, compreendidos e assimilados estes conceitos básicos, é possível nos aproximarmos da ideia da certidão da situação jurídica e de sua contraparte essencial e indispensável, que é o Registro Eletrônico de Imóveis. Só, assim, poderemos compreender a adequação dos tempos fixados na lei para expedição da certidão.
Antes, porém, e olhando com maior detrimento, calha a pergunta: afinal, o que vem a ser esta certidão da situação jurídica do bem imóvel?
O que é certidão da situação jurídica do bem imóvel?
Na MP 1.085/2021 ela é uma ideia fora do lugar, como tantas outras coisas desta norma. Pode-se encontrar a origem imediata desta figura na especificação do SREI, levada a cabo pelo CNJ, em parceria com a LSITEC, entre os anos de 2011 e 2012.
Quando registradores, magistrados e cientistas pensaram na reestruturação de todo o processo de registro, no bojo do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico, a situação jurídica da matrícula despontava como resultado do processo registral, um novo processo registral. Vejamos como a definição da situação jurídica foi então concebida:
“A anotação explícita na matrícula eletrônica da situação jurídica atual do imóvel (descrição do imóvel, direitos reais sobre o imóvel e restrições existentes sobre o imóvel) após cada registro e averbação.
Atualmente, esta informação está implícita na sequência histórica dos registros e averbações da ficha de matrícula. No SREI, a cada averbação realizada, é necessário avaliar e consolidar a nova situação jurídica do imóvel. As certidões emitidas utilizam, diretamente, a situação jurídica do imóvel consolidada presente na matrícula eletrônica”[19].
A definição da situação jurídica da matrícula se daria ex ante, na formação do próprio registro eletrônico. Substituiu-se a sucessão, mecânica e sequencial de atos filiados, pela simultaneidade eletrônica da informação; a cadeia descritiva (continuidade) pela síntese, a horizontalidade pela verticalidade. O sistema ganha escala, cadência e padrão.
As inovações tecnológicas nos reconduzem à antevisão de RUI BARBOSA que, nos finais do século XIX, propunha o registro via telégrafo (registro por impulsos elétricos), modernizando o sistema e promovendo a supressão da “andaimaria do velho formalismo romano” que deveria desabar aos golpes das reformas simplicadoras inerentes à civilização industrial de nossos dias”[20].
A elegante especificação do SREI, em seus rasgos gerais, migrou para o Provimento CNJ 89/2019. Partiu-se do pressuposto de que o registro eletrônico somente se viabilizaria com a criação deste novo ente – a “matrícula eletrônica da situação jurídica atualizada do imóvel (descrição do imóvel, direitos reais sobre o imóvel e restrições existentes)” que se formaria “após cada registro e averbação” (inc. IV do art. 10º).
A norma nos revela, com clareza lapidar, que “a matrícula eletrônica deve conter dados estruturados que podem ser extraídos de forma automatizada, contendo seções relativas aos controles, atos e situação jurídica do imóvel, constituindo-se em um documento natodigital de conteúdo estruturado” (inc. VII do mesmo artigo).
O sistema atualiza-se in itinere, favorecendo a extração de dados transcendentes para efeitos de expedição da certidão.
Na verdade, a certidão da situação jurídica atualizada da matrícula é o próprio ato de registro consolidado em si mesmo, dinamicamente. Não é um epifenômeno estático do ato de registro, nem uma metainformação dele decalcada, nem a colagem de narrativas desarticuladas. É como se o sistema se revelasse na sua intimidade mesma. Mas note: não é uma reprodução a cargo de um amanuense, nem um processo automático a cargo de uma máquina. A qualificação rigorosa que se faz no input repercutirá no output, com outras medidas de verificação e controle (não se pode esquecer das múltiplas fontes concorrentes de informação, como a CNIB, plataformas digitais etc.).
Eis que a serpente mira a própria cauda e se pergunta: como? Isto também sou eu?[21].
É fácil concluir que a expedição da certidão da situação jurídica pressupõe, necessariamente, a instituição, implementação e funcionamento do SREI – Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, não de qualquer plataforma paliativa que se possa erigir como simulacros eletrônicos anacrônicos e disfuncionais, tenham, ou não, nomes e adjetivos retumbantes ou sedutores.
O prazo da lei é exequível?
É evidente que o prazo estabelecido na dita MP se mostra inexequível. Causa espécie que ocorra a alguns a construção desta peça pela junção artificiosa de partes pinçadas de tratos narrativos espalhados pela trama registral, compondo uma mixórdia discursiva composta pela colagem disforme e assíncrona, espécie de Frankenstein da publicidade formal[22].
Para a esmagadora maioria dos cartórios brasileiros, a regra representará um duro problema operacional, especialmente, nesta fase de implementação do SERP[23].
Em conclusão, a expedição da certidão da situação jurídica atualizada do imóvel pressupõe, necessariamente, a existência do Registro Eletrônico de Imóveis em pleno funcionamento, o que sabemos não ocorrer hoje na prática. Já disse e reitero: não há registro eletrônico no país, apenas uma mixórdia babélica sem coordenação e sistema.
Lamenta-se, profundamente, que o estado da arte do SREI tenha sido abalado por uma iniciativa disfuncional. Demos um gigantesco passo para trás ao atrair figuras extravagantes, buscando a comistão de matérias de distinta constituição.
Espaço-tempo registral
O tema do tempo e do espaço na atividade registral não tem sido bem ponderado. Vimos nos artigos, a que tenho me dedicado, que eles se referem ao tema do espaço-tempo do registro na perspectiva do balanço dos direitos prenotados.
Os fenômenos de transformação dos meios digitais introduziram variáveis nas atividades como tempo real, não-localidade, descentralização de processos, simultaneidade, escalabilidade etc.
No Registro de Imóveis é possível perceber esse fenômeno nitidamente. Desde a fixação do tempo que deveria ser consumido para a prática de um ato de inscrição hipotecária, em 1846, levando-se em consideração as distâncias a serem percorridas no lombo de uma mula, até as reformas recentes, a percepção da dimensão espaço-temporal muda pari passu com as mudanças dos meios.
Tanto na sociedade de um modo geral, como no próprio Registro, a nova realidade nos apresenta problemas concretos que a cada tempo convocam os juristas a oferecer respostas e soluções adequadas e consistentes[24].
Nos dias que correm, perguntamo-nos: como coordenar as várias inscrições vestibulares (protocolo analógico e digital) que acedem ao sistema, a partir de múltiplas plataformas? Como sincronizá-las, coarctando e garantindo, com segurança, os direitos materiais que delas decorrem? Penhora online, indisponibilidades, e-mails com teor mandamental, interação pelo Sistema do Malote Digital (Hermes), homologações online, correição digital etc. Tudo ocorre em tempo real. Como coordenar o fluxo de informações sem um poderoso hub digital?
O tempo e o espaço escorrem pelas malhas da cartolina da matrícula e se projetam na rede, criando figuras complexas. Dou-lhes um simples exemplo: quando o imóvel se destinar ao regime jurídico da multipropriedade, diz a lei que, “além da matrícula do imóvel, haverá uma matrícula para cada fração de tempo, na qual se registrarão e averbarão os atos referentes à respectiva fração de tempo” (§ 10º do art. 176, LRP).
Note-se que o objeto da matrícula já não é um bem imóvel, mas o tempo. Matricula-se o espaço-tempo, não somete o imóvel, já que esta modalidade de direito de propriedade pressupõe a concomitância de dois elementos – situação e tempo. O princípio da unitariedade, que já não se sustentava, agora faz ainda muito menos sentido… A própria MP 1.085/2021 alude ao “tempo útil” da prenotação (inc. II, § 2º do art. 9º, LRP).
Os novos direitos relativos ao terribile diritto se desdobram em direitos multifários de acesso à propriedade, representações on-chain de bens imóveis que se acham off-chain, NFTs, cessões de direitos instrumentalizadas por cédulas eletrônicas, constituição de garantias sobre ativos imobiliários, fiduciarização de bens e créditos com suas multifárias sub-rogações, cessões etc. Tudo isso representa um plexo de demandas, cuja natureza não encontra meios e ferramentas adequados para as acolher no seio do Registro de Imóveis.
Abusando da metáfora de ZYGMUNT BAUMAN, divisamos o surgimento de uma propriedade líquida, expressa em direitos fluidos que se formam e transitam, velozmente, pelos escaninhos eletrônicos das redes digitais.
Dosimetria fatal
O remédio buscado pelo mercado se revelou, afinal, mais gravoso que a própria doença. Já disse, anteriormente, que a rapidez, sob certas circunstâncias, não é sinônimo de eficiência[25].
Em tempos do SERP, estima-se que a feitura de dita certidão da situação jurídica atualizada do imóvel consumirá um tempo ainda maior que a expedição da certidão de transcrições que, segundo a lei, deve ser emitida em até cinco dias úteis (inc. III, § 10º, do art. 19, LRP). Não digo que se não a expedirá; digo, apenas, que se consumirá mais tempo para fazê-lo.
Por incrível que possa parecer, os antigos livros de transcrição já organizavam a informação em forma estruturada, distribuída em colunas e blocos de informação qualificada que eram, facilmente, identificáveis. O trato sucessivo se desenrolava em transcrições que se sucediam ao longo do tempo, formando a cauda longa da filiação dominial.
A ocorrência de mutações jurídicas acarretava novas transcrições ou inscrições que eram ligadas (links) por um conjunto de sinaléticas internas muito eficientes e que instruía o escrevente na definição da situação jurídica do imóvel. Tínhamos o mapa do caminho perfeitamente traçado. Havia uma entrada e uma saída.
O Registro de Schrödinger
Na sistemática adotada pela Lei 6.015/1973 – e lamentavelmente este aspecto não foi modificado pela MP 1.085/2021 – ocorre uma espécie de recidiva descritiva, no sentido de que se reorganizou a informação tabular dos livros anteriores em nacos narrativos e acumulativos que se depositam e sedimentam no fundo continental das matrículas em forma de atos sucessivos (artigos 231 e 232, LRP).
Os atos lançados na matrícula e que tenham sido cancelados, total ou parcialmente, direta ou indiretamente, representam um entulho informacional que os meios tradicionais já não são capazes de discriminar e administrar com segurança e rapidez, tudo de molde a expedir celeremente a certidão aqui comentada. Temos um imenso receptáculo de mass of data compartilhado sem autocontrole e estrutura bem balanceados, como seria o caso se o SREI estivesse implantado e em pleno funcionamento.
A necessidade de joeira desse ruidoso campo informacional, já era percebido pelos melhores comentadores. O nosso ELVINO SILVA FILHO, por exemplo, já intuía a formação de sedimentos estratificados com o passar do tempo. Diz que, sendo o cancelamento materialmente semelhante a uma averbação, “o seu lançamento é feito em uma ordem sequencial numérica e cronológica (arts. 231 e 232, LRP); consequentemente, o registro cancelado não desaparecerá dos lançamentos registrais, principalmente nas certidões expedidas sob a forma reprográfica (art. 25, LRP). Deixa, apenas, de produzir efeitos”[26].
Pensemos num simples exemplo: nos casos de cancelamentos indiretos. Vamos ver o que nos diz AFRÂNIO DE CARVALHO sobre as modalidades de cancelamento de registro:
“Assim como a constituição de direitos reais por atos entre vivos se dá pela inscrição, a extinção desses direitos se opera pelo cancelamento, que é a inscrição negativa. A não ser por esse modo direto, a extinção dos direitos reais imobiliários dá-se, também, por modo indireto, isto é, por transferência desses direitos a outra pessoa, quando, então, aparece como a face negativa da aquisição desta. Nesse modo indireto, a inscrição subsequente é naturalmente extintiva da antecedente, desempenhado, assim, o papel do cancelamento.
O cancelamento não é a destruição ou truncamento material da inscrição. Não há desfazimento material, mas apenas jurídico, da inscrição, pois apenas se opõe ao assento positivo dela o assento negativo do cancelamento. Assim como a inscrição declara que o direto inscrito existe, o cancelamento declara que deixou de existir. A declaração positiva da inscrição, constante de um assento, é anulada pela declaração negativa do cancelamento, constante de outro”[27].
Não só em relação aos efeitos constitutivos negativos projetados pela novel inscrição em face da antiga. À exceção do cancelamento direto das hipotecas e de outros direitos (arts. 250 e 251, LRP, dentre outros), há o cancelamento indireto de penhoras, indisponibilidades de bens e gravames desse mesmo gênero. No caso de cancelamento indireto, é despicienda, em regra, a elaboração de assento negativo, salvo, por exemplo, quanto à hipoteca, em vista da necessidade de qualificar-se pelo registrador a ocorrência – que não é automática – da causa extintiva[28].
Nos casos corriqueiros de arrematação ou adjudicação, firmou-se o entendimento de ser indireto o cancelamento de penhoras, arrestos e sequestros antecedentemente inscritos, independentemente de as constrições referirem-se à própria execução consumada no iter da expropriação judicial[29].
Retomo, aqui, a promessa feita ao mercado e que deu partida ao sarampão reformista: a depuração das informações registrais permitirá expungir da certidão “eventuais cancelamentos e dados desatualizados, facilitando a interpretação da informação pelo usuário”, revelando, assim, “toda a situação jurídica do imóvel”[30].
Pois bem, pergunta-se: Quem declarará, de forma rápida e segura, se um determinado ato de registro está a produzir, ou não, seus regulares efeitos? Quem fará a classificação de centenas de páginas que compõem uma matrícula complexa? As constrições judiciais podem ser consideradas canceladas indiretamente? Dar-se-á uma negativa? Em quais circunstâncias? Quem pode afirmar se as inscrições (registros, averbações, anotações) estão vivas ou peremptas? Afinal, quem dirá se o registro está morto ou vivo?
Senhoras e Senhores, eis o Registro de Schrödinger!
Podemos concluir dizendo que com a matrícula, com a reintrodução da forma narrativa e abandonando o sistema colunar das transcrições (1865~1975), a expedição da certidão tornar-se-á, em muitos casos, uma tour de force em decorrência das grandes dificuldades para a rápida apuração e definição da situação jurídica do imóvel.
O CNJ e o retorno à racionalidade
As nossas esperanças se voltam, agora, ao Poder Judiciário. A atividade registral, de cariz eminentemente jurídico (jurisdição voluntária), é mais bem compreendida por magistrados do que por simples agentes do Executivo ou do mercado. Do pão, entende o padeiro, da mole o moleiro, do registro imobiliário o registrador.
Por sorte, o art. 7º desta Medida Provisória prevê que a Corregedoria Nacional de Justiça deverá regulamentar e disciplinar os dispositivos da Lei 11.977/2009, especialmente no que concerne ao fornecimento de informações e certidões em meio eletrônico (§1º do art. 38).
A MP 1.085/2021 realçou, por outro lado, que o órgão do Poder Judiciário deverá disciplinar, em especial, o cronograma “de implantação do SERP e do registro público eletrônico dos atos jurídicos em todo o País, que poderá considerar as diferenças regionais e as características de cada registro público” (inc. II do art. 7º).
Levando-se em consideração as assimetrias verificadas nas unidades de registro de imóveis de todo o país, que ainda não contam com os recursos tecnológicos que lhes permitam adequar seus processos internos, racionalizando, modernizando e alcançando padrões de eficiência no uso de novas ferramentas digitais, é necessário temperar a regra com bom senso e racionalidade.
Esperemos que as erronias cometidas na formulação desta medida provisória aziaga possam ser, a tempo, corrigidas no Congresso Nacional e, depois, pela via de regulamentação pela Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ.
Estamos nas entranhas de um labirinto. O fio de Ariadne que nos salvará da pavorosa serpe burocrática é o SREI – Sistema de Registro eletrônico de Imóveis, já especificado, testado e em franca fase de desenvolvimento, sob a cura do ONR e de seu agente regulador.
Que venham dias melhores.
Casa Amarela, 12 de março de 2022.
Notas
[1] As propostas foram encaminhadas ao IRIB, em 22/7/2020, para que fossem “instaurados os devidos debates internos no bojo da Diretoria e do Conselho Deliberativo do IRIB e as sugestões pudessem ser assimiladas, aprimoradas e iluminadas pelos registradores integrantes da entidade”. Vide dossiê aqui: https://wp.me/p6rdW-2ur.
[2] Vide os comentários laterais lançados à margem das Propostas de dinamização da economia – texto final. 20/7/2020. CORI/ARISP. Acesso: https://bit.ly/35L42s0.
[3] É da mesma origem a expressão CURG – Consulta Unificada de Restrições e Garantias, abandonada por razões óbvias. Já SERP, sua raiz liga-se a uma palavra de origem remota (protoindo-europeu) que nos revelaria serpe, serpente, serpentina e outras. Dr. ERMITÂNIO PRADO cogitou acerca dessa construção no encontro referido em A Serpentina Registral (aka Reforma Curupira), acesso: https://cartorios.org/2022/03/08/serpent/.
[4] PRADO, Ermitânio. Realidade e Idealismo – o contubérnio da pós-modernidade. São Paulo: Anotações desvairadas de bolso, 2022.
[5] Op. cit. loc. cit.
[6] Tentei traçar um paralelo entre as mudanças dos meios e a reconformação do Registro de Imóveis em JACOMINO, Sérgio. Sistema de Registro de Imóveis eletrônico. 4/11/2018. Acesso: https://www.academia.edu/37700224/.
[7] GANDOLFO, Maria Helena Leonel. Reflexões sobre a Matrícula 17 anos depois. Revista de Direito Imobiliário, n. 33, jan./jun. 1994, p. 122.
[8] Provimento 1/1975, de 6/11/1975, Drs. GILBERTO VALENTE DA SILVA e EGAS DIRSON GALBIATTI. Acesso: http://kollsys.org/glp. Posteriormente, as mesmas disposições seriam consolidadas no Provimento 3/1976, de 17/2/1976, dos mesmos magistrados. Acesso: http://kollsys.org/gmo.
[9] DIP, Ricardo. Certidões integrais do Registro Imobiliário: Da Prevalência do Meio Reprográfico. Revista de Direito Imobiliário, n. 21, jan./jun. de 1988, p. 37 et seq. Os grifos são nossos. Posteriormente, por meio do Provimento 1/1988, de 25/2/1988, da 1VRPSP, por JOSÉ RENATO NALINI, será consagrada a regra de que a certidão de matrícula ou de registro do Livro n. 3 “expedir-se-á, preferentemente, por meio reprográfico”. Acesso: http://kollsys.org/8bj.
[10] Nos trabalhos de especificação do SREI, deparamo-nos com expressões plurívocas – ônus, gravames, restrições, condições etc. – tornando-se necessário fixar um conceito-chave para demarcar e expressar as vicissitudes que se conjugam com as inscrições. Consulte: JACOMINO, Sérgio; CRUZ, Nataly. SREI – Ontologia titular – Ônus, gravames, encargos, restrições e limitações. 2021. Acesso: https://www.academia.edu/73593276/.
[11] JACOMINO, Sérgio. IRIB – até aqui viemos e daqui outros haverão de partir. São Paulo: Observatório do Registro, 2020, acesso: https://cartorios.org/2021/06/05/irib-carta/.
[12] Em 2008, dizia a uma plateia perplexa da ANOREG-SP que os livros de registro (e os próprios cartórios) seriam desestruturados e substituídos no âmbito de um novo ecossistema digital integrado. Vide: Registro de imóveis eletrônico – ANOREG-SP – Jornadas Institucionais – 2008. Acesso no Youtube: https://youtu.be/h3TU3K1M42s.
[13] Op. cit. loc. cit. nota 4.
[14] JACOMINO, Sérgio. MP 1.085 e o Monstro de Horácio. São Paulo: Migalhas, 2020. Acesso: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/361041/mp-1-085-e-o-monstro-de-horacio.
[15] JACOMINO, Sérgio. Publicidade registral. São Paulo: Observatório do Registro. 19/9/2020. Acesso: https://wp.me/p6rdW-2vq.
[16] GRAY, Kevin & GRAY, Susan Francis. Elements of Land Law. 5. ed. London: OUP, 2008, p. 190.
[17] Não nos passou despercebida a expressão – “certificação específica”. Será, portanto, uma certificação inespecífica-específica. Não se específica nada, mas revela-se tudo, sem pudores. A experiência espanhola consagrou a nota simple que parece ter sido a referência para esta figura. Ela serve para que se conheça o conteúdo básico do registro, mas não revela o historial tabular. Acesse: https://bit.ly/3pYrOaY.
[18] Numa importante reunião realizada em 12/11/2020 entre a CBIC e o IRIB, tive ocasião de declarar que deveria imperar “a razoabilidade, a prudência, o bom-senso. Jamais se impedirá o acesso a todas as informações que sejam rogadas ou postuladas pelos utentes, especialmente por advogados ou incorporadores” e “que os cartórios não devem se converter em um grande mercadão de dados, em que se compram lotes de dados sem qualquer conexão com as finalidades essenciais do Registro. O que se deve relevar é o uso regular das informações, não o abuso”. Acesso: https://bit.ly/3tSphjx.
[19] BERNAL, Volnys; UNGER, Adriana J. SREI – Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário. Parte 1 – Introdução ao Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário. São Paulo: LSITEC/CNJ, 2012, p. 32.
[20] O Registro Torrens era defendido apaixonadamente por RUI BARBOSA por vários interesses. Ele dirá que nesse sistema poderiam ser transmitidos aos Registros “pelo telégrafo ou pelo correio, as petições. as informações, os títulos concernentes à inscrição e às mutações da propriedade remetidos de rodos os pontos da colônia pelos interessados e devolvidos a estes depois de consumado o registro na capital”. A colônia era a Austrália. RUI defendia um modelo de entrega do mister registral a empresas privadas, que o organizariam no modelo de centralização, daí suas críticas contundentes ao “formalismo romano”. Hoje vivemos algo parecido com as centrais em contubérnio com empresas. BARBOSA. Rui. A Execução da Lei Torrens na Capital Federal. Informação ao Chefe do Governo Provisório in UFLACKER. Augusto. Systema Torrens – Formulário Completo. Pelotas: Livraria Americana, 1899, p. 248. A citação da andaimaria na p. 250.
[21] A citação aponta aos manuscritos de PAUL VALÉRY. JACOMINO. Sérgio. A Serpentina Registral (aka Reforma Curupira). São Paulo: Observatório do Registro, 2022. Acesso: https://cartorios.org/2022/03/08/serpent/.
[22] Vê-se de tudo, desde composição da certidão da situação jurídica por meio das ferramentas de copy & paste do Windows, até “visualização de matrículas” desfalcadas de atos de permeio. Não se nega a possibilidade de criação de reports seletivos, como referiu DIP (op. cit. p. 38), mas, aí, encontramos os mesmos obstáculos que decorrem da forçosa combinação de elementos de natureza dissimile. Não se põe vinho novo em odres velhos.
[23] No TJRS, de modo bastante realista, decidiu-se que “nas fiscalizações que determinada serventia não está integralmente adequada à MP 1085, a sugestão é de que não haja encaminhamento automático para medida disciplinar do responsável pelo serviço, desde que seja apurado que estão sendo adotadas as medidas possíveis e de boa-fé para adequação do serviço”. Ou seja, não se sabe como se vai cumprir as regras estabelecidas. Processo SEI 3493839 – SEI/TJRS, j. 20/1/2022, DJ 20/1/2022, Des. VANDERLEI TERESINHA TREMEIA KUBIAK.
[24] As grandes distâncias que mediavam os municípios e as comarcas do Império e o “tempo que se levava para transpô-las em lombo de mulas, representavam um alto risco para a segurança dos negócios jurídicos”; assim, “os registros em comarcas limítrofes não tardariam mais do que o tempo necessário, contando-se a distância à razão de duas léguas por dia, ou o equivalente a 12 quilômetros (art. 3º). JACOMINO, Sérgio. Apresentação: Decreto 482, de 14 de novembro de 1846. Revista de Direito Imobiliário, n. 49, jul./dez. 2000, p. 7
[25] JACOMINO, Sérgio. A MP 1.085/2021 e os prazos no Registro de Imóveis – parte II. São Paulo: Observatório do Registro, 2022, acesso: https://cartorios.org/2022/03/02/a-mp-1-085-2021-e-os-prazos-no-registro-de-imoveis-parte-ii/.
[26] SILVA FILHO, Elvino. Do Cancelamento no Registro de Imóveis. Revista de Direito Imobiliário, n. 27, jan./jun. 1991, p. 8.
[27] CARVALHO, Afrânio. Registro de Imóveis. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 184.
[28] Ap. Civ. 13.838-0/4, Araçatuba, j. 24/2/1992, DJ de 104/1992, Rel. Des. DÍNIO DE SANTIS GARCIA. Acesso: http://kollsys.org/6na.
[29] Processo CG 11.394/2006, São Paulo, decisão de 26/6/2006, DJ 20/7/2006, Des. GILBERTO PASSOS DE FREITAS. Acesso: http://kollsys.org/91l. A partir deste precedente, a jurisprudência se orientou no mesmo sentido. Uma excelente coleção de precedentes que podem servir aos interessados em aprofundar o tema pode ser consultado no r. voto divergente do Des. JOSÉ RENATO NALINI na Ap. Civ. 3001116-49.2013.8.26.0223, Guarujá, j. 18/11/2014, DJ 9/2/2015, Rel. ELLIOT AKEL. Acesso: http://kollsys.org/hl2.
[30] Vide documento citado na nota 2, supra.