MP 1.085 e o Monstro de Horácio

Introdução

Dobro-me à tarefa de interpretar e conjugar as disposições contidas na Medida Provisória 1.085/2021, baixada no lusco-fusco do ano findo, cotejando-as com a legislação do sistema registral brasileiro, buscando uma interpretação coerente e aproveitando o que de bom a medida provisória possa nos revelar.

Apresento à reflexão dos leitores alguns aspectos que poderiam ter sido objeto de debates e estudos antes que se consumasse a publicação da dita MP. São ideias e reflexões que julgo ainda válidas e que podem ser úteis, a fim de contribuir com o transcurso do processo legislativo ou de posterior regulamentação pela Corregedoria Nacional de Justiça.

Grande parte do texto já havia sido objeto de debates marginais travados no âmbito do IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, entidade que tive a honra de presidir à época em que as discussões se iniciaram e tomavam corpo. Foi, então, produzida e apresentada a Nota Técnica 2/2020, de 6 de agosto de 2020, em que se concluía que as disposições legais e normativas já existentes seriam mais do que suficientes para que os cartórios de registro de imóveis pudessem operar o Registro de Imóveis Eletrônico, de forma totalmente digital[1].

No entanto, as discussões transcorreram num circuito estrito que envolveu agentes do governo federal, interlocutores do mercado e setores da própria categoria profissional. Ainda assim, como quem aparece de surpresa na festa sem ser convidado, oferecemos críticas bem fundamentadas ao projeto, quando, ainda no ano de 2020, as ideias germinavam e eram agitadas interna corporis entre alguns poucos registradores[2].

Lamenta-se que não tenha havido uma discussão pública travada diretamente com as lideranças mais qualificadas da corporação registral, nem com a comunidade jurídica. Não se ouviu, tampouco, a Academia, nem se auscultou os registradores que congregam em organismos internacionais como o IBEROREG – Rede Registral Ibero americana e IPRA-Cinder – International Property Registries Association, entidades com as quais o IRIB mantém estreitos laços de cooperação técnica, científica e doutrinária de onde se poderia haurir bons exemplos a inspirar iniciativas de modernização dos registros prediais brasileiros.

Uma proposta de reforma legal, de tamanha magnitude, deveria ter sido posta em audiência pública, quando não enviada como projeto de lei ao Congresso Nacional, o que deveria ter sido feito. Ainda agora tomamos conhecimento de que o PL 4.188/2021, que tramitava em regime de urgência, o rito especial foi suprimido pela Mensagem de Cancelamento de Urgência n. 67/2022, do Executivo Federal. Foi retirada a urgência do texto com o fim de ser “inserido na MP (medida provisória) 1.085 e o tema continua sendo prioritário”, segundo noticiou o Portal R7[3].

Tenho absoluta certeza de que os técnicos do governo, instados por registradores e imbuídos da melhor boa-fé, estabeleceram uma interlocução que se revelou, afinal, ruinosa. Faltou aos interlocutores a experiência provada na diuturnidade do mister registral vivida nas pequenas, médias e grandes serventias do Brasil, além da minguada representação institucional. Perdeu-se uma rara oportunidade de atualizar o marco legal do Registro Imobiliário e reformar, com zelo e prudência, a conhecida Lei 6.015/1973, contribuindo com o impulso de modernização do sistema, fato reclamado pela sociedade, pelo mercado e pela própria administração.

A iniciativa do Ministério da Economia ainda assim é louvável. Ela deveria ter passado pelos canais de representação institucional da categoria, vale dizer, pelo IRIB, entidade que indiscutivelmente representa todos os registradores imobiliários brasileiros e que foi a responsável pelas boas iniciativas que frutificaram ao longo dos últimos 50 anos.

O texto revela algumas boas ideias que, a seu tempo, serão destacadas e valorizadas no labor a que me dedico de anotar e comentar esta MP passo a passo. Não desconsidero os imensos riscos de comentar uma norma inçada de reconhecidas dificuldades, potencializadas pela atecnia na redação de seus dispositivos, mas é o que nos cabe agora.

Enfim, temos a missão de enfrentar a iniciativa e tentar, da melhor maneira possível, contribuir para o sucesso das reformas, escoimando do texto suas imperfeições – desde sempre percebidas e explicitadas –, destacando outras que são virtuosas e sobre as quais voltaremos oportunamente, na série de textos que se seguirão nos comentários aos artigos e dispositivos da referida Medida Provisória 1.085/2021.

Continuar lendo

A MP 1.085/2021 e os prazos no Registro de Imóveis – parte II

Sérgio Jacomino, Registrador Imobiliário

1. Introdução

A MP 1.085/2021 é fonte de controvérsias. A redação não primou pelo apuro técnico e o intérprete se vê muitas vezes confrontado com questões que somente a jurisprudência haverá de solver. Até lá, divisam-se algumas turbulências e a tarefa do intérprete (e do operador do registro) é conciliar o que se revela confuso e contraditório e buscar um entendimento razoável para que a Medida possa ser cumprida e frutifique como pretendido.

Empreender uma análise de um texto legal tão complexo, nos alvores de sua vigência, já foi objeto de prudente advertência[1]. Todavia, como escapar desse desafio quando sabemos que a medida entrou em vigor já na data de sua publicação e os registradores devem, de imediato, extrair uma diretriz segura para sua aplicação na diuturnidade de seu mister?

Um dos pontos delicados da MP 1.085/2021 é o relativo aos prazos – seja para efetivação do registro ou para a expedição de certidões. Já apontei, em texto anterior, a aparente incongruência verificada entre os dispositivos que tratam da protocolização dos títulos e dos efeitos que daí possam decorrer, a depender da interpretação que se lhes dê[2].

Além disso, há dezenas de leis e normas que preveem prazos distintos para algumas espécies de títulos – com ênfase para os títulos qualificados como “eletrônicos”. Além disso, com as alterações havidas, criou-se um escalonamento de prazos, como estabelecido no artigo 188 da Lei 6.015/1973. Vamos nos achegar às hipóteses indicadas, enfrentando-as de modo realista.

Continuar lendo

Publicidade Registral Imobiliária e a LGPD

1. Pressupostos

  • Regras formais e a publicidade material do Registro. As regras formais de expressão da publicidade material do registro imobiliário devem guardar estreita correspondência com os conteúdos das inscrições – especialmente no sistema brasileiro em que se dá a constitutividade dos direitos reais pela inscrição. As certidões e informações do registro – regra de caráter processual ou formal – devem guardar estrita relação com as inscrições e os direitos materiais que delas decorrem, devendo tê-las como objeto[2].
  • Teleologia do sistema. O conjunto que disciplina o processo da publicidade registral imobiliária busca consumar de modo eficiente a finalidade do sistema registral imobiliário. Não é possível dar eficácia plena à publicidade material sem as ferramentas que permitam a cognoscibilidade das situações jurídicas-reais por meios idôneos, reconhecidos legalmente e certificados.
  • Certidão é DO registro. O artigo 17 da LRP reza que “qualquer pessoa pode requerer certidão do registro sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse do pedido”. A certidão, em regra, não abrange vários registros de maneira indiscriminada, nem a combinação de vários elementos que, associados, formam blocos de interesse informativo que transcendem as finalidades do registro de imóveis.
  • Princípio da finalidade. A finalidade da publicidade registral é dúplice: defesa do titular inscrito e segurança do tráfico imobiliário. Esse binômio representa a segurança jurídica estática e dinâmica do registro. Para revelar aos interessados a situação jurídica de um determinado bem, busca-se a publicidade registral por meio de certidões e informações. Assim, calha, aqui, à perfeição, as regras do art. 6º da LGPD, especialmente o respeito e observância da finalidade, adequação, necessidade e segurança do sistema. Para tratamento e disponibilização de dados albergados no SREI, para efeitos de publicidade, devem ser observados os princípios de “finalidade, a boa-fé e o interesse público que justificaram sua disponibilização” (§ 3º do art. 7º da LGPD).
  • O sistema é privacy by design. O sistema registral brasileiro não foi concebido para municiar terceiros de dados e informações desconexas dos princípios e regras legais que estruturam o Registro de Imóveis[3].

2. Dados, informação, conhecimento

Continuar lendo

Tombamento

Seguimos com a análise crítica acerca das propostas de alteração da LRP. Nesta seção, trazemos a análise de Naila Khuri e Sérgio Jacomino.

[Art. 167, II, 45] – Tombamento

A proposta é defectiva. O assunto não foi devidamente aprofundado. A redação sugerida na proposta poderia causar mais problemas do que soluções.

[ÍNDICE GERAL]

Art. 167 (…)    II (…)  

PROPOSTA: 45. do ato de tombamento definitivo, requerido pelo órgão competente, federal, estadual ou municipal, do serviço de proteção ao patrimônio histórico e artístico.

JUSTIFICATIVA: Compatibilização com o Art. 178, VII.

A legislação federal (Dec.-Lei 25/1937) em seu art. 13 trata do registro do tombamento definitivo, todavia o artigo 10 prevê a ocorrência do tombamento provisório que, para todos os efeitos se equiparará ao definitivo. Vamos conferir o articulado legal:

Art. 10.  O tombamento dos bens, a que se refere o art. 6º desta lei, será considerado provisório ou definitivo, conforme esteja o respectivo processo iniciado pela notificação ou concluído pela inscrição dos referidos bens no competente Livro do Tombo.

Parágrafo único. Para todas os efeitos, salvo a disposição do art. 13 desta lei, o tombamento provisório se equiparará ao definitivo.

Art. 13. O tombamento definitivo dos bens de propriedade particular será, por iniciativa do órgão competente do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, transcrito para os devidos efeitos em livro a cargo dos oficiais do registro de imóveis e averbado ao lado da transcrição do domínio.

Posteriormente, o Estatuto da Cidade previu o tombamento entre os chamados “institutos jurídicos” (letra “d”, inc. V, do art. 4º da Lei 10.257/2001) sem qualquer especificação.

A Constituição Federal reza que é competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal legislar sobre proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico (inc. III do art. 23; inc. VII do art. 24; § 1º do art. 216 da CF/1988). À União, Estados, Distrito Federal e Municípios compete proteger bens de valor histórico, artístico e cultural, monumentos, paisagens naturais notáveis e sítios arqueológicos (art. 23 da CF/1988).

A ordem constitucional vigente recepcionou o DL 25/1937  e previu a competência concorrente dos estados e municípios para legislar sobre o tombamento em suas vários modalidades:

“De acordo com a Constituição Federal, têm os Municípios competência para legislar sobre assuntos de interesse local ou peculiar interesse, como constava na Constituição antecedente. E, em relação a tombamento, há competência comum às três unidades da federação, cada um dentro da sua esfera de atribuições”[1].

Além disso ocorre amiúde em leis municipais ou estaduais a instituição de restrições administrativas de imóveis reconhecidos como integrantes do patrimônio histórico, paisagístico, turístico e cultural, monumentos, paisagens naturais notáveis e sítios arqueológicos. A própria Lei 13.097/2015 previu em seu inc. III do art. 54 a averbação de restrições administrativas. O fundamento para a averbação da limitação administrativa pode se originar tanto de ato administrativo, legislativo como, até mesmo, mesmo por decisão judicial.

Para ficarmos nos exemplos do Estado e do Município de São Paulo houve legislação específica sobre tombamento: Decreto Estadual 13.426/1979 e Lei municipal 10.032/1985 (inc. II do art. 2º).

No Estado de São Paulo faz-se o registro no Livro 3 e averbação no Livro 2, além do tombamento definitivo ou provisório, bem assim as restrições de caráter administrativo de imóveis reconhecidos como integrantes do patrimônio cultural por forma diversa do tombamento.

Além dessas hipóteses, admite-se, em São Paulo, a averbação de restrições próprias dos imóveis situados na vizinhança dos bens tombados ou reconhecidos como integrantes do patrimônio cultural[2].

É possível que em todo o Brasil haja situações análogas às de São Paulo, razão pela qual incluí a sugestão indicado supra.

Poder-se-ia coordenar o inciso com a indicação própria na Lei do registro de tombamento com uma redação semelhante a esta:

X – do ato de tombamento definitivo ou provisório, de restrições administrativas de imóveis reconhecidos como integrantes do patrimônio histórico, paisagístico, turístico e cultural, monumentos, paisagens naturais notáveis e sítios arqueológicos, quando declarados por ato administrativo, legislativo ou por decisão judicial.


[1] RESP 18.952-RJ, j. 26/4/2005, DJ 30/5/2005, rel. min. ELIANA CALMON. Acesso: http://kollsys.org/7eo.

[2] Vide Processo 1.029/2006, decisão de 23/7/2007, DJ 8/11/2007, des. GILBERTO PASSOS DE FREITAS. Acesso: http://kollsys.org/9n5.

[ÍNDICE GERAL]

Caução e cessão fiduciária

Seguimos com a análise crítica acerca das propostas de alteração da LRP. Nesta seção, trazemos a análise de Naila Khuri e Sérgio Jacomino.

[Art. 167, II, 8] – caução e cessão fiduciária.

Falta de conhecimento da história do direito registral leva à confusão exegética e a propostas deslocadas. Hipóteses de averbação ou de registro?

[ÍNDICE GERAL]

PROPOSTA: 8) da caução e da cessão fiduciária de direitos reais relativos a imóveis

JUSTIFICATIVA: Inclusão para eliminar dúvida técnica a respeito do registro competente para a prática de tais atos. A inclusão bem delimita  o que é competência do Registro de Imóveis, deixando para o RTD as demais cauções e cessões fiduciárias de direitos em geral.

Distinguindo as hipóteses

A proposta revela uma falta de conhecimento técnico para discernir as hipóteses e propor soluções adequadas e harmônicas com o texto da lei e a própria história do direito registral imobiliário. A redação original é esta:

8) da caução e da cessão fiduciária de direitos relativos a imóveis;

Aparentemente, confunde-se a cessão de direitos de devedor-fiduciante do inciso II do art. 17 cc. arts. 18 e 19 da Lei 9.514/1997 com a caução e cessão fiduciária – garantias supletórias recepcionadas pelo Sistema Financeiro da Habitação. São situações jurídicas distintas.

A cessão fiduciária de direitos creditórios “decorrentes de contratos de alienação de imóveis, por caução de direitos creditórios ou aquisitivos decorrentes de contratos de venda ou promessa de venda de imóveis e por alienação fiduciária de coisa imóvel” acha-se hoje expressamente prevista no art. 51 da Lei 10.931/2004[1]. Não há qualquer indicação precisa e taxativa acerca do ato a ser praticado no Registro de Imóveis[2]. Este parece ser o ponto fulcral que deveria merecer alguma alteração na Lei de Registros Públicos, mas, à evidência, por motivos completamente distintos. Voltaremos mais à frente a este ponto.

Além dessa hipótese, vale a pena perquirir acerca da outra espécie e que foi o antecedente lógico e jurídico da disposição legal cuja proposta de alteração foi veiculada.

Paleologia registral

A figura de cessão fiduciária de crédito em garantia foi consagrada na legislação anterior ao advento da própria Lei de Registros Públicos, hoje em vigor, fazendo o seu début com o Decreto 21.499, de 9 de junho de 1932. O Chefe do Governo Provisório buscava a mobilidade dos ativos bancários e criaria a Caixa de Mobilização Bancária, “destinada a promover a mobilização das importâncias aplicadas em operações seguras, mas de demorada liquidação, realizadas, anteriormente à data deste decreto, pelos bancos de depósitos e descontos, nacionais e estrangeiros, estabelecidos no país”. As garantias caucionárias teriam por objeto créditos hipotecários e pignoratícios:

Art. 5º As operações da Caixa serão garantidas.

a) pela caução de notas promissórias, letras de câmbio, ações, debêntures, créditos hipotecários e pignoratícios, contratos de contas correntes devedoras vencidos ou novatos, com saldo devidamente reconhecido, e títulos de dívida pública federal, estadual e municipal;

b) por hipoteca legal, independente de especialização, que este decreto concede à Caixa sobre os imóveis pertencentes aos bancos creditados e por eles destinados à instalação de suas sedes e filiais;

c) por hipoteca convencional de imóveis pertencentes aos bancos e destinados a venda.

Posteriormente, em face de inúmeras dúvidas suscitadas quanto à validade do penhor, ou caução de créditos hipotecários e pignoratícios, o mesmo Governo Provisório decretaria que poderiam ser “objeto de penhor os créditos garantidos por hipoteca ou penhor, os quais, para esse efeito, considerar-se-ão coisa móvel” (Decreto 24.778, de 14 de julho de 1934).

Esse quadro legal, que se desenhou antes mesmo do Decreto 4.857/1939 (Regulamento de Registro de Imóveis) levou os registradores imobiliários, a partir então, a considerar que a caução de crédito hipotecário passaria a ser averbada na margem da inscrição da hipoteca, “sem maiores indagações”, como registrou MARIA HELENA LEONEL GANDOLFO em pequeno, mas instrutivo artigo. Vamos dar voz à registradora:

“Em 1927, LYSIPPO GARCIA enfatizava a necessidade de se esclarecer definitivamente a legalidade de um negócio jurídico que vinha sendo adotado pelo Banco do Brasil e outras entidades bancárias: a caução de crédito hipotecário.

Nessa época citou um parecer de Clóvis de 1923, cujas primeiras linhas transcrevo: ‘O assunto exige grande ponderação pelo valor de interesses, que lhe são objeto e pelas dúvidas que, na ausência de dispositivo expresso de lei, têm levantado alguns juristas de reconhecida competência’.

As consideranda do Decreto n. 24.778, da 14.7.1934, que dispunha sobre a caução de hipoteca e penhor, deixaram bem clara a intenção de dissipar tais dúvidas que existiam quanto à validade desse instituto, que atendia ‘às mais fortes exigências da economia contemporânea’.

A partir de então, a caução de crédito hipotecário passou a ser averbada na margem da inscrição, sem maiores indagações”[3].

O sempre lembrado ELVINO SILVA FILHO enfrentou o tema da caução como objeto de averbação no Registro de Imóveis:

“O direito do credor hipotecário – o crédito hipotecário garantido pela hipoteca – um dos mais fortes entre os direitos reais de garantia –, não poderia, evidentemente, ficar estático. Inúmeras vezes o credor se sentia na contingência de querer mobilizá-lo, para garantir operação de crédito de que necessitava, sem, entretanto, querer ceder esse crédito a um eventual credor. Dentro dos estreitos limites doutrinários do Código Civil estava impedido de caucioná-lo ou de dá-lo em penhor em virtude de o crédito hipotecário ser considerado bem imóvel[4]

Todavia, o Decreto de 1934 cravou no seu artigo 1º que o penhor de créditos garantidos por hipoteca ou penhor considerar-se-ia coisa móvel. Seria inscrito no Registro de Imóveis ou no RTD?

O tema gerou certa controvérsia. A melhor síntese encontramos na obra de SERPA LOPES. O Tratadista desenvolve muito bem o problema e lança a questão nos seguintes termos: em face do Decreto n. 24.778/1934,” qual a situação da caução de um crédito hipotecário perante o Registro de Imóveis?”. E logo responde:

“Óbvio que se a lei, para efeitos de penhor, considerou coisa móvel o crédito hipotecário, excluída está aquela convenção dos livros do Registro de Imóveis, mesmo que se trate de uma simples averbação. O registro dessa convenção pertence, nesse caso, ao Registro de Títulos e Documentos”[5].

O próprio SERPA LOPES não se satisfaria com a solução por ele mesmo cogitada e acrescentaria:

Contudo é inútil desconhecer que esse instituto, vivendo à parte, sob o regime de coisas móveis, pode acarretar prejuízos e conflitos. A insegurança é patente. Os danos resultantes, possivelmente, desse bimorfo aspecto, direito real imobiliário de um lado e de outro direito real mobiliário, redundando na coexistência de duas publicidades, não são meras fantasias.

[…]

Como se vê, o próprio instituto fica mutilado, desfigurado e arrastando efeitos práticos prejudiciais, tudo isso em homenagem ao princípio de que não pode haver hipoteca de hipoteca.

Se se considera o crédito hipotecário como um direito real imobiliário, por que motivo não há de se reputar tal, a caução deste mesmo crédito, e conferir-lhe, lógica e necessariamente, um lugar dentre os atos compreendidos no Registo de Imóveis?”[6].

A solução do problema, segundo ele, estaria na adoção do sistema da legislação belga que estabelece que “na caução do crédito hipotecário, como nos casos de sub-rogação e cessão do referido crédito, a averbação não fica reduzida a uma simples faculdade do interessado, mas deve ser imposta como condição para o conhecimento daqueles atos, em relação a terceiros”.

No mesmo sentido a opinião de AFRÂNIO DE CARVALHO, que registrou em sua obra que o “penhor ou caução de crédito hipotecário pareceria, a rigor, incompatível com o Registro de Imóveis, porque, havendo a lei considerado o crédito hipotecário ‘coisa móvel’, estaria a caução dele, por esse simples fato, excluída do âmbito registral. Todavia, essa exclusão provoca a insegurança dos direitos e pode acarretar prejuízos, pois enseja a movimentação da hipoteca em linhas paralelas”[7].

Filiando-se à doutrina de SERPA LOPES chegará à conclusão de que o locus natural desse direito sobre direito será o Registro de Imóveis. E ilustra com um exemplo gráfico.

Tome-se um exemplo já figurado: A cauciona o seu crédito hipotecário a B, mas, como a caução não consta do Registro, faz a cessão do seu crédito a C, a quem o devedor D, não notificado da caução, paga devidamente. Nesse espaço de tempo o credor B executa a caução e o crédito, lhe é adjudicado. Qual dos dois títulos deve produzir efeitos perante o Registro de Imóveis, a carta de adjudicação ou a quitação para o cancelamento da hipoteca? 

A movimentação paralela da hipoteca precisa, pois, ser denunciada ao público, como acontece com a hipoteca do sistema financeiro da habitação, cuja cédula é averbada à margem da inscrição. Daí tornar-se aconselhável que a caução hipotecário seja também averbada obrigatoriamente ao pé da inscrição para conhecimento de terceiros, sem embargo de se tratar de penhor, pois o registro já acolhe o penhor agrícola, o pecuário, o rural. Aliás é o que sucede normalmente no registro alemão, onde se requer a inscrição ‘para a transferência da propriedade sobre um imóvel para o gravame de um imóvel com um direito, assim como para a transferência ou gravame de tal direito’ (Cód. Civ., Alemão, § 873)[8].

É desse mesmo jaez a opinião de PONTES DE MIRANDA que já considerava esses direitos como reais[9]:

“tais direitos reais limitados recaem em direitos reais limitados: há penhor do crédito hipotecário ou do crédito pignoratício, isto é, direito real limitado sobre direito real limitado (direito sobre direito). Tais penhores têm de ser devidamente inscritos, se recaem sobre créditos hipotecários, à semelhança do que se passa com os penhores de máquinas e aparelhos utilizados nas indústrias (Decreto n. 4.857, de 9 de setembro de 1939, art. 178, a, V e VI), no Registro de Imóveis”[10].

A discussão que se acha na base do posicionamento doutrinário aqui revisto revela a grande cautela da doutrina ao tratar de um tema sensível: a “movimentação da hipoteca em linhas paralelas”, como dizia AFRÂNIO DE CARVALHO, em círculos extra ou para-registrais.

A realidade hoje parece caminhar celeremente para fulminar a cidadela da segurança jurídica representada pelo Registro de Imóveis. Os cartórios já não atraem todas as vicissitudes relativas aos direitos de propriedade, malgrado os esforços como os que redundaram na Lei 13.097/2015. O crédito circula por endosso nas cédulas que encontram guarida em entidades para-registrais, investindo na titularidade da propriedade pessoas estranhas ao próprio registro – movimentação “em linhas paralelas”, com advertia AFRÂNIO[11].

A discussão hoje soa-nos oca e vazia, como eco de tempos de maior rigor técnico, jurídico e sistemático. Lamentavelmente[12].

Cessão fiduciária e caução de crédito

Mais tarde, no bojo da Lei 4.864, de 29/11/1965, criaram-se outras medidas de estímulo à indústria da construção civil. No conjunto normativo compreendido pelos artigos 22 a 23 assim se dispôs originalmente:

Art. 22. Os créditos abertos nos termos do artigo anterior pelas Caixas Econômicas, bem como pelas sociedades de crédito imobiliário, poderão ser garantidos pela caução, a cessão parcial ou a cessão fiduciária dos direitos decorrentes dos contratos de alienação das unidades habitacionais integrantes do projeto financiado.

(…)

Art. 23. Na cessão fiduciária em garantia referida no art. 22, o credor é titular fiduciário dos direitos cedidos até a liquidação da dívida garantida, continuando o devedor a exercer os direitos em nome do credor, segundo as condições do contrato e com as responsabilidades de depositário.

(…)

§ 4º A cessão fiduciária em garantia somente valerá contra terceiros depois que o seu instrumento, público ou particular, qualquer que seja o seu valor, for arquivado por cópia no Registro de Títulos e Documentos.

A cessão fiduciária dos direitos decorrentes dos contratos de alienação das unidades habitacionais de projetos financiados pelos agentes do crédito imobiliário deveria ser registrada originalmente nos cartórios de Registro de Títulos e documentos, na consideração de que esses direitos seriam, na realidade, direitos de caráter pessoal. Assim pensava PAULO RESTIFFE NETO quando da primeira edição de sua conhecida obra:

“Poder-se-ia estranhar a falta de previsão legal quanto ao registro do contrato de cessão fiduciária no Registro imobiliário. Sucede que, tratando-se de cessão exclusivamente de direito de natureza pessoal (crédito), que recai sobre as prestações, não poderia a lei, sem ofensa ao direito de propriedade do adquirente, estranho à cessão, mandar inscrever ou averbar a cessão de crédito no Registro de Imóveis, constituindo um ônus inominado sobre a propriedade alheia.

O mecanismo da cessão fiduciária prescinde, ademais, de tal providência que, na verdade, não se concilia com a índole do instituto. O arquivamento no Registro de Títulos e Documentos é necessário e também suficiente em relação a terceiros”[13].

Registro em Títulos e documentos?

O mesmo velho tema voltaria à balha – registro em TD ou Registro de Imóveis?

Vimos que a redação original do § 4º do art. 23 da Lei 4.864, de 29/11/1965 previu que a “cessão fiduciária em garantia somente valerá contra terceiros depois que o seu instrumento, público ou particular, qualquer que seja o seu valor, for arquivado por cópia no Registro de Títulos e Documentos”. Era condição de eficácia perante terceiros do negócio jurídico.

Todavia, por força do Dec.-Lei 70, de 21/11/1966, as modalidades de garantia representadas pela cessão fiduciária e pela caução dos direitos decorrentes da alienação de imóveis foram alçadas à categoria de direitos reais (parágrafo único do art. 43).

A sempre abalizada opinião RESTIFFE NETO se modificará com o advento do dito decreto.

O seu art. 22 disporá que as “instituições financeiras em geral e as companhias do seguro poderão adquirir cédulas hipotecárias ou recebê-las em caução, nas condições que o Conselho Monetário Nacional estabelecer”. Aqui as garantias cessionárias e caucionárias, alçadas a direitos reais, seriam encaminhadas ao Registro de Imóveis:

Art. 43. Os empréstimos destinados ao financiamento da construção ou da venda de unidades imobiliárias poderão ser garantidos pela caução, cessão parcial ou cessão fiduciária dos direitos decorrentes de alienação de móveis [sic], aplicando-se, no que couber, o disposto nos parágrafos primeiro e segundo do artigo 22 da Lei número 4.864, de 29 de novembro de 1965.

Parágrafo único. As garantias a que se refere este artigo constituem direitos reais sobre os respectivos imóveis.

Art. 44. São passíveis de inscrição, nos Cartórios do Registro de Imóveis, os contratos a que se refere o artigo 43, e os de hipoteca de unidades imobiliárias em construção ou já construídas, mas ainda sem “habite-se” das autoridades públicas competentes e respectiva averbação, desde que estejam devidamente registrados os lotes de terreno em que elas se situem.

Como vimos, a caução, cessão parcial ou cessão fiduciária foram elevados à categoria de direitos reais e “passíveis de inscrição nos Cartórios de Registro de Imóveis”. Pedimos que o leitor retenha a noção de inscrição referida na norma, muito diferente de mera averbação.

A figura ficou conhecida como cessão fiduciária de crédito em garantia. O objetivo era garantir os créditos concedidos pelas caixas econômicas e sociedades de crédito imobiliário para o financiamento de “projetos da iniciativa privada para a construção e venda a prazo, em edificações, ou conjunto de edificações, de unidades habitacionais de interesse social, ou destinadas às classes de nível médio de renda” (art. 21, caput, da Lei 4.864/1965).

Cessão fiduciária de crédito em garantia – escopo restrito

Exsurge do conjunto normativo que esta modalidade de cessão tinha em sua origem um âmbito bastante restrito de aplicação. Destina-se, como se depreende do referido art. 21 da Lei 4.864/1965, à segurança das operações de crédito abertas pelas caixas econômicas e sociedades de crédito imobiliário. Diz RESTIFFE NETO que só possuirão “legitimidade para figurar na posição de cessionário, e, portanto, de credor fiduciário, as instituições de crédito e financiamento contempladas expressamente na lei, com exclusão da generalidade”[14].

A questão, agora, nem é saber se é cabível a alteração do número 8 do inc. II do art. 167, como aqui sugerido. A questão não se cinge à hipótese de averbação, mas de registro stricto sensu.

As cessões dos direitos do fiduciante – registro ou averbação?

As várias modalidades de cessão de direitos fazem com que a jurisprudência ainda hesite no que respeita à qualificação do ato a ser praticado no Registro de Imóveis. Contribui para a magnificação dessa confusão terminológica a própria Lei 6.015/1973.

Este fato foi bem compreendido por AFRÂNIO DE CARVALHO que denunciará a incoerência sistemática com bastante ênfase[15]. Dirá que o tumulto da terminologia na lei registral é tão grande que se torna difícil “extrair dela qualquer sistema”[16].

Há precedentes, do próprio Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, que sufragam o entendimento de que o ato a ser praticado, nos casos de cessão de direitos do fiduciante, é de registro[17]. Recentemente, a própria CGJSP admitiu que o ato a ser consumado é de registro em sentido estrito[18].

Direitos reais sobre direitos reais, na expressão de PONTES, ou, como no caso de alienações fiduciárias, em todos esses casos não se trata de mera atualização acessória (averbação) de um ato principal (registro).

Por fim, gostaria de agitar um argumento de caráter analógico que deve ser apreciado in rebus.

As promessas de compra e venda e as suas respectivas cessões são objeto de registro[19]. Já as promessas e cessões relativas a loteamentos formalizados anteriormente à vigência da Lei 6.015/1973 eram objeto de averbação.

Afaste-se, desde logo, a aparente antinomia ocorrente entre os itens citados (18 e 20, inc. I, do art. 167 e o item 3, inc. II, do mesmo art. 167, todos da Lei 6.015/1973). As hipóteses, neste último item, referiam-se a inscrições de promessa feitas no sistema anterior ao advento da Lei 6.015/1973. As inscrições de loteamentos (ou de incorporações e instituições de condomínios) eram feitas no antigo Livro 8 e as mutações jurídicas subsequentes eram averbadas à margem daquelas inscrições. Porém, já não mais[20].

Além disso, e por derradeiro, a alienação fiduciária em garantia de bem imóvel confere direito real de aquisição ao fiduciante, seu cessionário ou sucessor. É a redação do art. 1.368-B do Código Civil, na redação que lhe deu a Lei 13.043/2014.

Tratando-se, pois, de um típico direito real, nada mais lógico e inteiramente coerente com o sistema registral pátrio, que se proceda à cessão do direito por ato de registro, stricto sensu.

Por todo o exposto, é possível concluir que a mudança sugerida é perfeitamente despicienda por absoluto desconhecimento dos fundamentos do dispositivo. Se algo pudesse ser alterado e isto seria o deslocamento do dispositivo para o quadrante do art. 167, inciso I, da LRP que trata das hipóteses de registro em sentido estrito.

A proposta visou “eliminar dúvida técnica a respeito do registro competente para a prática de tais atos”, (…) deixando para o RTD as demais cauções e cessões fiduciárias de direitos em geral. Ora, o registro de caução de títulos de crédito pessoal em RTD acha-se claramente previsto no inc. III do art. 127 e artigos 144 e 145 da LRP.

O “aclaramento explicativo” proposto e que se pretende consagrar na lei desconsidera o labor da doutrina e não instrui o profano. A explicação da lei não cabe ao legislador.


[1] A figura também está prevista no art. 41 da Lei 11.076/2004 que trata das CDA´s.

[2] O art. Art. 52 da mesma lei reza, simplesmente, que, “protocolizados todos os documentos necessários à averbação ou ao registro dos atos e dos títulos a que se referem esta Lei e a Lei n. 9.514, de 1997, o oficial de Registro de Imóveis procederá ao registro ou à averbação, dentro do prazo de quinze dias”. Os atos poderão ser consumados por averbação ou registro, conforme o caso.

[3] GANDOLFO. Maria Helena Leonel. Caução dos direitos de promitente comprador. In Boletim do IRIB n. 10, março de 1978. Vide também Cessão Fiduciária, in Boletim do IRIB, n. 42, p. 1.

[4] SILVA FILHO. Elvino. A caução no Registro de Imóveis. Contribuição aos estudos da 1ª Comissão do VI Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil. Araxá: IRIB, 1979, p. 7.

[5] SERPA LOPES. Miguel Maria de. Tratado de Registos Públicos. 4ª ed. Vol. II, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960, pp.

[6] Op. Cit. pp. 344-5.

[7] CARVALHO. Afrânio. Registro de Imóveis. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 344.

[8] CARVALHO. Afrânio de. Idem, ibidem.

[9] Muito mais tarde, pelo Dec.-Lei 70, de 21/11/1966 as modalidades de garantia representadas pela cessão fiduciária e pela caução dos direitos decorrentes da alienação de imóveis seriam alçadas à categoria de direitos reais (parágrafo único do art. 43). Hoje tanto a caução quanto a cessão fiduciária de créditos oriundos de financiamento imobiliário são taxativamente qualificados como direitos reais. V. incisos II e II do art.  17 da Lei 9.514/1997.

[10] MIRANDA. Pontes. Tratado de Direito Privado. Vol. XVIII, § 2.146, n. 2.

[11] Basta verificar o disposto no § 1º do art. 22 da Lei 10.931/2004. A cessão do crédito representado por CCI “implica automática transmissão das respectivas garantias ao cessionário (…) ficando o cessionário, no caso de contrato de alienação fiduciária, investido na propriedade fiduciária”.

[12] JACOMINO. Sérgio. A CCI cartular, a transmissão da propriedade e a ilusão do registro. 2012, Acesso: https://cartorios.org/2012/03/12/cci-cartular-e-a-necessidade-do-registro/.

[13] RESTIFFE NETO. Paulo. Garantia Fiduciária. São Paulo: RT, 1975, p. 45-6, n. 19.

[14] RESTIFFE NETO. Paulo e RESTIFFE. Paulo Sérgio. Garantia fiduciária. 3ª ed. São Paulo: RT, 2000, p. 115, n. 20.

[15] Cfr. CARVALHO. Afrânio. Registro de Imóveis. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 147.

[16] Idem, ibidem, p. 161,

[17] V. por exemplo: Ap. Civ. 980-6/3, Osasco, j. 17/2/2009, DJe 15/5/2009, rel. des. RUY CAMILO. Acesso: http://kollsys.org/bn1. Ap. Civ. 417-6/5, Barueri, j. 15/12/2005, DJ de 20/1/2006, rel. des. JOSÉ MÁRIO ANTONIO CARDINALE. Acesso: http://kollsys.org/8cq

[18] Processo CG 182.627/2015, dec. de 13/11/2015, DJe de 18/11/2015, Dra. Ana Luiza Villa Nova. Acesso: http://kollsys.org/iib.

[19] Números 9, 18 e 20, inc. I, do art. 167 da Lei 6.015/1973. Nessas hipóteses acham-se as promessas, cessões, etc. de imóveis loteados, objeto de incorporação e instituição de condomínios e gerais.

[20] Número 3, inc. II da Lei 6.015/1973 cc. letra “b” do art. 4º do Dec.-Lei 58/1937. Note-se que o art. 22 do Dec.-Lei 58/1937 tratava da averbação dos contratos de compromisso de compra e venda de imóveis não loteados “à margem das respectivas transcrições aquisitivas”. O referido artigo foi alterado pela Lei 6.014/1973, sem qualquer alusão à prática do ato. O mesmo se pode dizer das promessas e cessões decorrentes de incorporação imobiliária. O § 2º da Lei 4.591/1965, que aludia a averbação dos respectivos contratos, foi alterado pela Lei 10.931/2004, que agora prevê o registro de tais contratos preliminares. Em suma: as promessas e cessões formalizam-se por ato de registro, nos termos da Lei de Registros Públicos em vigor.

[ÍNDICE GERAL]

CNIB – indisponibilidades

[Art. 181-A, § 1°, inciso V] – CNIB – não é necessário mais do que regulamentação. Flauzilino Araújo dos Santos

[ÍNDICE GERAL]

PROPOSTA: V – Integração de todas as indisponibilidades de bens imóveis decretadas por magistrados e por autoridades administrativas;

JUSTIFICATIVA: Módulo de publicidade das indisponibilidades de bens, atualmente restritas à CNIB, sem acesso público
PROPOSTA IRIB: VOTAMOS PELA SUPRESSÃO.

A Central Nacional de Indisponibilidade de Bens – CNIB foi instituída pelo Provimento CNJ 39/2014, da Corregedoria Nacional de Justiça e se encontra em pleno funcionamento.

É de ser considerado as seguintes variáveis:

1ª) Várias indisponibilidades se referem a outros bens e direitos não imobiliários, tramitam em ambiente diverso da CNIB;

2ª) Várias indisponibilidades de bens correm em segredo de justiça. No sigilo de justiça nem mesmo as partes têm acesso aos dados processuais, apenas o Ministério Público, o magistrado e algum servidor autorizado poderão ter acesso enquanto perdurar o sigilo. O sigilo é muito utilizado na fase investigatória do processo penal devido à necessidade de preservação de provas e com intuito de não prejudicar as investigações.

Outrossim, a veiculação pela CNIB de outras indisponibilidades de bens decretadas por Magistrados ou Autoridades Administrativas poderá decorrer de simples convênio da CNIB com as entidades respectivas, cujo convênio deverá ser homologado pelo Agente Regulador do ONR, a Corregedoria Nacional de Justiça.

Repositórios eletrônicos

[Art. 181-A, § 1°, inciso IV] – Inclusão de módulo que prescinde de lei (Flauzilino Araújo dos Santos)

[ÍNDICE GERAL]

PROPOSTA: IV – Armazenamento de documentos eletrônicos para dar suporte aos atos registrais imobiliários;

JUSTIFICATIVA: Serviço básico do SREI e complementar ao registro eletrônico de DEDE (documento eletrônico com dados estruturados).
PROPOSTA IRIB: VOTAMOS PELA SUPRESSÃO.

Repositórios eletrônicos criado e mantido alhures

Não se exige edição de lei, em seu sentido próprio, para inclusão de um simples módulo para armazenamento de documentos eletrônicos em sistema informatizado. Essa inclusão depende apenas da arquitetura do sistema, como já ocorre com os sistemas das Centrais de Serviços Eletrônicos Compartilhados dos Estados e do Distrito Federal.

Não se justifica a edição de lei nacional concebida para regular apenas o modo e a forma como o SAEC oferecerá instrumentos de suporte aos atos registrais; é tema próprio de regulamento.  

Aliás, a existência de repositórios eletrônicos de apoio aos atos registrais já foi objeto de regular regulamentação pela E. Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no Provimento CNJ 89/2019, ao dispor sobre os objetivos do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis – SREI (Art. 8º, § 3º, II):

§ 3º São elementos do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis – SREI:

[…]

II – os repositórios registrais eletrônicos formados nos ofícios de registro de imóveis para o acolhimento de dados e para o armazenamento de documentos eletrônicos;

LGPD e do direito ao esquecimento

[Art. 181-A, § 1°, inciso III] – Incidência da LGPD e do direito ao esquecimento (Flauzilino Araújo dos Santos).

[ÍNDICE GERAL]

PROPOSTA: III – Pesquisa eletrônica de bens imóveis e seus respectivos direitos e restrições averbados;

JUSTIFICATIVA: Módulo de pesquisa de bens a partir de CPF/CNPJ do titular de direitos imobiliários, reduzindo a assimetria informativa nas transações de imóveis, inclusive na contratação de crédito.
PROPOSTA IRIB: VOTAMOS PELA SUPRESSÃO.

LGPD e a publicidade registral

De acordo com a Lei nº 13.709, de 14/8/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD) os dados pessoais hão de ser tratados de maneira lícita, legal e transparente. Assim, mesmo, hão de ser adequados, pertinentes, exatos, atualizados e devem ser recolhidos para os fins determinados, explícitos e legítimos.

Como resultado, o art. 6º, da LGPD, apresenta, dentre outros, três princípios básicos da proteção de dados: princípio da finalidade, princípio do consentimento e princípio da necessidade, permeando, ainda, a lei o princípio do consentimento, nas hipóteses que elenca.

O princípio da finalidade supõe que os dados se destinam para uma finalidade determinada, consentida, explícita e legítima, circunstância que exigirá do Registrador a qualificação da solicitação, porque somente fornecerá a informação se na ponderação e juízo jurídico não resolver que deve prevalecer a proteção de dados. A imposição de obrigação legal da manutenção de pesquisa eletrônica em massa a partir do CPF/CNPJ não se coaduna com as novas disposições de proteção de dados pessoais, inclusive, eventual direito ao esquecimento[1].  

Parece-nos que a prestação de informações registrais, já prevista no § 2º, do art. 16, da Lei nº 6.015/1973, reclama apenas regulamentação em sua modalidade, cuja figura, em virtude da vis attractiva, é direcionada para a Corregedoria Nacional de Justiça.

É certo que o Registro abre a sua porta para que qualquer pessoa possa conhecer o estado da propriedade imobiliária e de seus gravames sem haver necessidade de demonstrar ao oficial, ou ao funcionário que o atende o motivo ou o interesse do pedido (Lei 6.015/1973, art. 17), ressalvados dados pessoais e informações sigilosas, que assim devem permanecer[2]. E para isso todo pedido de certidão ou de informações devem passar pelo crivo qualificador do Registrador, como qualquer outra solicitação no Registro de Imóveis.

Certidão é do registro – não do acervo

A lei garante ao usuário o direito de acessar qualquer registro, ou documento arquivado no cartório, sem declarar o motivo do seu interesse, porém, a serventia registral, não é uma biblioteca pública, ou uma hemeroteca digital, onde o usuário teria direito a consultar diretamente os próprios livros de registro, documentos arquivados e bancos de dados. Nem tampouco um depósito de documentos ou de dados acumulados, disponíveis para uma devassa, senão que avulta, dentre as fundamentais atribuições do Oficial do Registro, a prestação de informações e a expedição de certidões sobre determinado imóvel ou pessoa, mas, como afirmado, a solicitação deverá, também, ser submetida à qualificação registral, agora, sob a ótica dos novos conceitos jurídicos que emergem da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.   

Diferentemente do regulamento anterior (Decreto Nº 4.857/1939) que em seu artigo 19 facultava ao interessado examinar diretamente livros e documentos, a atual Lei de Registros Públicos não acolheu essa modalidade de publicidade direta, tendo consagrado, como regra, a publicidade indireta, por meio de informações e certidões expedidas sob a fé pública do Registrador. Assim, não há previsão legal para a exibição de livros, fichas, documentos e banco de dados e de imagens para serem manipulados por terceiros, estranhos ao corpo registral.

Não é demais anotar casos de documentos protegidos por sigilo judicial ou fiscal, tais como cartas de sentenças que versem sobre casamento, separação de corpos, divórcio, separação, união estável, filiação, alimentos e guarda de crianças e adolescentes, bem como os que constem dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade, cujos processos, ex vi legis, correm em segredo de justiça (CPC, Art. 189, II e III). É a mesma hipótese de mandados judiciais que contenham informações reservadas, como ocorre em alguns casos de indisponibilidades de bens, questões de estado da pessoa natural, concernentes a adoção, alterações do nome e do sexo, casos de aplicação da Lei nº 9.807, de 13/7/1999, relativamente a proteção de vítimas e testemunhas ameaçadas durante a persecução penal, em que se admite a alteração do nome completo da pessoa perseguida (art. 9º, § 1º).

Ademais, o art. 22, do Provimento CNJ nº 89/2019 prevê expressamente o seguinte:

“Art. 22. Em todas as operações do SAEC serão obrigatoriamente respeitados os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e, se houver, dos registros.”


[1] O direito ao esquecimento foi dantes contemplado no Enunciado nº 531, aprovado durante a VI Jornada de Direito Civil, realizada em março de 2013, pelo Centro de Estudos do Judiciário do Conselho da Justiça Federal (CJE/CJF), o qual diz que: “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”. A justificativa foi vazada nos seguintes termos “[O]s danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados.” Acesso: https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/142. O direito ao esquecimento, mesmo não expressamente previsto na LGPD, estaria implícito na regra legal que assegura a proteção da intimidade, da imagem e da vida privada, bem como no princípio de proteção à dignidade da pessoa humana. Pergunta-se: Que proveito jurídico há em o Registro de Imóveis disponibilizar pesquisa onde revela que no ano de 1976 alguém teve que dispor de todo o seu patrimônio imobiliário?  Não estaria a resposta estatal apenas frutificando o alimento à mera curiosidade mórbida sobre a vida de alguém?

[2] Confira-se, a propósito do tema, as considerações do Presidente do Irib, SÉRGIO JACOMINO nos comentários ao § 10 do art. 19 das propostas: LGPD – a estática e a dinâmica do registro. Acesso: LGPD – a estática e a dinâmica do registro

Ponto único na internet

A série de estudos acerca das propostas de reforma da Lei 6.015/1973 vem sendo publicada neste portal à medida que as análises, feitas por diretores do IRIB, vêm a lume.

Para acompanhar a sucessão de notas críticas, acesse o índice geral abaixo.

[Art. 181-A, § 1°, inciso II] – Ponto único na internet.

[ÍNDICE GERAL]

PROPOSTA: II – Expedição de certidões e a prestação de informações em formato eletrônico;  

JUSTIFICATIVA: Porta eletrônica única, em âmbito nacional, para os usuários, para pedidos de certidões e de informações. Facilitação para os todos os usuários, mas muito especialmente aos corporativos e institucionais.
PROPOSTA IRIB: VOTAMOS PELA SUPRESSÃO.

Ponto único na internet

Embora o SAEC seja um serviço de atendimento compartilhado em ponto único na Internet, para acesso a todos os cartórios de registro de imóveis do país, além deste, tanto as Centrais de Serviços Eletrônicos estaduais, como, também, os oficiais de registro de imóveis podem fazer funcionar, individualmente, por serventia,  plataforma de serviços eletrônicos, desde que atendam aos termos da Recomendação CNJ nº 14/2014 e as normas de interoperabilidade estabelecidas pelo ONR, homologadas pelo CNJ, bem como atenda aos requisitos da ICP-Brasil e da Arquitetura e-PING.

A modelagem do processo de operação do cartório, supondo a automatização dos processos através da utilização do Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário (SREI), prevê a utilização de multicanais de atendimento remoto, como, recentemente, foi admitido pelo Provimento CNJ 94/2020.

Na concepção do SREI, constante da Recomendação CNJ 14/2014, o Sistema do Cartório (SC) corresponde ao sistema existente em cada cartório de registro de imóveis. É responsável por automatizar as atividades internas dos cartórios, manter o registro eletrônico imobiliário, auxiliar no atendimento de solicitações de usuários presenciais, realizar o atendimento de solicitações eletrônicas encaminhadas através do SAEC e interagir com outras entidades. O Sistema do Cartório (SC) é composto por diversos subsistemas, sendo os mais importantes:

  • Núcleo do sistema do cartório (NSC);
  • Sistema de Atendimento Presencial do Usuário (SAPU);
  • Sistema de Atendimento Eletrônico do Usuário (SAEU), opcional, específico para oferecimento de serviços eletrônicos via Internet para um determinado cartório.

De conformidade com essas especificações os serviços eletrônicos serão oferecidos aos usuários [1] seja pela Central de Atendimento Eletrônico do Usuário (CAEU) do SAEC, [2] seja pelo Sistema de Atendimento Eletrônico do Usuário (SAEU) do Sistema do Cartório (SC), caso exista, já que é um módulo opcional.[1]

Acrescente-se, ainda, que os serviços eletrônicos são oferecidos [3] pelas Centrais de Serviços Eletrônicos Compartilhados dos Estados e do Distrito Federal (cfr. Art. 25, do Provimento CNJ nº 89/2019). Por fim, se mantida fosse a redação desse dispositivo, haveria que se harmonizar com a competência do SAEC (e das centrais), pois todas as solicitações feitas por meio das centrais estaduais serão enviadas ao ofício de Registro de Imóveis competente, que é o único responsável pela “expedição de certidões e a prestação de informações em formato eletrônico”, sendo elas meros canais digitais para inclusão dos pedidos feitos pelos usuários, ou de requisições feitas autoridades, mantida a responsabilidade pelo processamento e atendimento aos respectivos titulares da delegação ou responsáveis pelo expediente.


[1] PROJETO SREl: PA 1.2.6 – Relatório da modelagem do processo automatizado v1.1.r.10, p. 8, item 2.2.2. Sistema de Cartório (SC). Acesso: https://folivm.files.wordpress.com/2015/08/srei-356-380-relatc3b3rio-da-modelagem-do-processo-automatizado.pdf.

Protocolo para-registral

A série de estudos acerca das propostas de reforma da Lei 6.015/1973 vem sendo publicada neste portal à medida que as análises, feitas por diretores do IRIB, vêm a lume.

Para acompanhar a sucessão de notas críticas, acesse o índice geral abaixo.

[ÍNDICE GERAL]

[Art. 181-A, § 1°, inciso I] – Protocolo para-registral. Flauzilino Araújo dos Santos e Sérgio Jacomino.

PROPOSTA: I – Protocolo eletrônico de títulos;  

JUSTIFICATIVA: Serviço básico do SREI. Porta eletrônica única, em âmbito nacional, para os usuários que visam a remessa de títulos exclusivamente ao registro imobiliário. Facilitação para os todos os usuários, mas muito especialmente aos corporativos e institucionais
PROPOSTA DO IRIB: VOTAMOS PELA SUPRESSÃO.

Protocolo eletrônico de títulos – crítica à expressão

O acesso ao SREI deverá ser feito em caráter universal, aberto a todas as pessoas públicas e privadas, constituindo infração à isonomia constitucional privilegiar usuários corporativos e institucionais, visto que, por princípio constitucional, todos são iguais perante o serviço público (Princípio da igualdade dos usuários perante o serviço público).

O próprio nomem iuris do serviço – Protocolo Eletrônico de Títulos – é inadequado porque dá ao apresentante a falsa ideia de que seu título foi protocolado no Livro 1 de Protocolo do Registro de Imóveis (art. 174 e art. 182 da LRP). Somente o protocolo do título investe o interessado nos direitos decorrentes da prenotação – prioridade do título e preferência dos direitos reais (art. 186 da LRP), produzindo, desde logo, os efeitos de eficácia e oponibilidade dos direitos sucessivamente inscritos (artigos 1.246 e 1.493 do Código Civil c.c. art. 54 da Lei 13.097/2015).  Sem o ato próprio, a cargo de cada registrador imobiliário, não se produzem os potentes efeitos jurídicos da prenotação do título e de eficácia dos direitos, mas apenas seu encaminhamento eletrônico.

Em suma, o “protocolo” de um título, feito mediante seu lançamento no Livro 1 – Protocolo, gera, ipso facto, efeitos jurídicos formais e materiais (art. 182 e seguintes da LRP). Nos termos do art. 1.246 do Código Civil, a data do registro retroage à data do protocolo do título, mesmo que o registro seja efetivamente praticado dias depois.   É atribuição própria do Registrador, inerente ao processo de registro, que não pode jamais ser deslocada para entidades para-registrais.

O eventual deslocamento dessa atribuição própria para o SAEC gerará inesperados problemas: a quem caberá a responsabilidade pela quebra de eventual cadeia sucessiva de prenotações – que podem ser feitas remota ou localmente – gerando prejuízos ao apresentante? Problemas de sistema são comuns – a quem atribuir a responsabilidade? Até aqui a responsabilidade pelos prejuízos causados a terceiros é do registrador (art. 22 da Lei 8.935/1994).

O SAEC jamais foi pensado e concebido para se constituir no protocolo oficial do Registro de Imóveis. Pior ainda: no [Art. 181-A, § 2º] a proposta cravou o seguinte dispositivo: “ONR coordenará a implantação e gestão do sistema eletrônico de recebimento e protocolo de contratos […] destinadas aos registradores de imóveis”.

As propostas representam uma subversão do sistema de outorga de delegação e devem ser afastadas.

O tempo e o espaço do Registro de Imóveis

Há problemas concretos que a proposta visa a enfrentar, embora de modo inadequado. SÉRGIO JACOMINO se referiu ao fenômeno da 4ª onda registral [vide aqui] afirmando que seu fator determinante “é a existência de redes e meios eletrônicos que promovem a extrapolação dos limites físicos das serventias e inauguram uma nova forma de relacionamento entre os cartórios e os destinatários de seus serviços – estado, mercado, sociedade”. Obviamente que com a transformação digital é natural que novos e instigantes desafios surjam no horizonte da multissecular atividade notarial e registral.

Dentro dessa quadra, é possível que os conceitos tradicionais de tempo e de espaço no âmbito dos processos registrais em meios eletrônicos sejam abalados para se adequarem a esse “novo normal”. A proposta é um sintoma disso tudo. Como afirmou SÉRGIO JACOMINO, a centralização de algumas funções registrais pode ser considerada o efeito de uma espécie de tropismo digital[1] que interfere profundamente com os processos. É mais cômodo, barato e menos complexo a centralização do que a descentralização de dados.

É uma tentação. Porém, uma coisa é o “ponto único” da Internet[2] para envio e requisição de informações, outra, muito diferente, é a concentração de funções registrais, das quais a protocolização é um exemplo.

O ponto único do SAEC foi assim definido na documentação do SREI:

“O Sistema de Atendimento Eletrônico Compartilhado (SAEC) disponibiliza um ponto único de contato para serviços de qualquer cartório do Brasil. Atende a solicitantes via Internet, realiza troca de informações com entidades externas e fornece dados estatísticos sobre a operação dos cartórios”[3].

Vimos sustentando o conceito ao longo do tempo:

“É necessário que uma norma regulamente de forma inequívoca: [1] os requisitos mínimos que devem ser atendidos pelos softwares de Registro de Imóveis eletrônico; [2] a vinculação de todas as serventias com o operador do sistema nacional de registro de imóveis eletrônico; e [3] a previsão de um ponto único de contato para atendimento eletrônico de serviços, através da internet, para qualquer cartório do Brasil”[4].

Por outro lado, descentralização de dados representa uma maior garantia de inviolabilidade e preservação de dados em redes digitais.

É possível decentralizar os dados e centralizar o controle.

Aliás, essa é a vocação e o grande desafio do SREI ao se propor a desenvolver uma cultura estruturada em Governança de TI (GTI)[5].  

Os dados dos registros de imóveis de todo o país estão descentralizados e é justamente essa arquitetura tradicional, uma espécie de “blockchain analógica”[6], que tem impedido, ao menos até agora, que os dados registrais fossem devassados, ao contrário de outras bases de dados do próprio governo federal, por exemplo[7].

A melhor arquitetura não será, pois, a centralização de dados. Não se pode esquecer igualmente que a passagem de dados pelo hub do SAEC (ou por centrais estaduais) também representa um risco de captura e retenção dos dados pessoais nos nós da rede, razão pela qual sustentamos que os intercâmbios de informações, no âmbito do SREI, devem se dar com a utilização de tecnologia de criptografia ponta-a-ponta.

Em resumo, a centralização dos dados não é recomendável e nem está prevista na documentação técnica do SREI. É preciso criar uma arquitetura de descentralização de dados, com controle centralizado de acesso – “ponto único” – como está previsto na regulamentação do SREI.[8]

Precedência e prioridade – Conceitos distintos

Sustentar que o modelo deva ser descentralizado, já que essa arquitetura é mais segura e consentânea com o modelo de delegação constitucional, nos impõe responder aos desafios postos pelas plataformas eletrônicas. E o maior deles é: como preservar a prioridade do art. 186 da LRP com os títulos que ingressam a partir de vários pontos de acesso pelo SAEC?

Como sustentou SÉRGIO JACOMINO, há, na própria LRP, uma clara distinção entre o controle de prioridade e o de precedência que se preordenam sob uma “ordem geral”[9]. São conceitos perfeitamente distintos. Vejamos em detalhe.

O controle de precedência é assegurado pelo número de ordem geral da apresentação dos títulos, conforme disposto no art. 11 da LRP:

Art. 11. Os oficiais adotarão o melhor regime interno de modo a assegurar às partes a ordem de precedência na apresentação dos seus títulos, estabelecendo-se, sempre, o número de ordem geral.

A controle de precedência não se confunde com o controle de prioridade. A primeira vem estampada nos artigos 11 e 12, já a prioridade no artigo 186 da LRP:

Art. 186 – O número de ordem [no protocolo – art. 182] determinará a prioridade do título, e esta a preferência dos direitos reais, ainda que apresentados pela mesma pessoa mais de um título simultaneamente.

É fácil demonstrar que, embora inter-relacionados, os conceitos de precedência e prioridade não se confundem, já que um não implica necessariamente o outro. Basta atentar para a redação do parágrafo único do artigo 12 da LRP que reza que “independem de apontamento no Protocolo os títulos apresentados apenas para exame e cálculo dos respectivos emolumentos”[10].

Ora, se há títulos que não são prenotados e todos devem observar a rigorosa ordem geral de sua apresentação segue-se daí que a ordem geral de apresentação dos títulos e controle de precedência não se confunde com a ordem de prioridade – somente alcançável com uma inscrição em sentido próprio: a prenotação que é parte integrante do processo de registro (artigos 182, 183 etc. da LRP e art. 1.246 do Código Civil)

Esse conceito calha perfeitamente com o papel que será desenvolvido pelo SAEC. Os títulos enviados aos Registros de Imóveis devem seguir uma rigorosa ordem de precedência, assegurada por certificados de time stamping [carimbo do tempo]. De conformidade com o PROJETO SREI: PA 1.2.6 – Relatório da modelagem do processo automatizado v1.1.r.10, p. 21/22:

“Após o pedido em elaboração ser encaminhado ao(s) cartório(s), é realizada a emissão do recibo protocolo, representada pelo subprocesso 2.1 – Emitir Recibo Protocolo.

O recibo protocolo será emitido pelo SAEC a partir do número do pedido global definido pelo Sistema de Cartório e, caso o título tenha sido apresentado em formato papel, é requisitada a emissão de etiquetas a fim de identificar suas páginas”[11].

Partindo-se do pressuposto de que a ocorrência de títulos contraditórios no mesmo dia – às vezes no mesmo instante –, é uma exceção raríssima, a colisão de direitos contraditórios e excludentes, devidamente provados pela precedência, deve levar a um tratamento extrarregistral.

A hipótese de apresentação de títulos contraditórios em vários guichês de atendimento assíncronos, em que não é possível apurar a exata e indisputável prioridade, deve levar a questão à apreciação jurisdicional com a suspensão da eficácia do registro até solução da disputa. Não é possível, nesses casos, apurar, extreme de dúvidas, a efetiva prioridade.

Outra hipótese comum é a conciliação entre os direitos no caso de prioridade de idosos e hipóteses legais congêneres. Para todos esses casos, que são excepcionais, deve existir uma regulação própria[12].

Seja como for, as atribuições do SAEC, do ONR, ou das centrais não devem se confundir com as próprias dos registradores imobiliários. As soluções tecnológicas devem harmonizar-se com o Direito.


[1] JACOMINO. Sérgio. Registro de Imóveis eletrônico – O Nó Górdio da Regulamentação. In GEN Jurídico, 2018. Acesso: http://genjuridico.com.br/2018/08/23/registro-de-imoveis-eletronico-o-no-gordio-da-regulamentacao/.

[2] V. Provimento 89/2019, art. 18. “O SAEC deverá oferecer ao usuário remoto os seguintes serviços eletrônicos imobiliários a partir de um ponto único de contato na internet”. Vide igualmente as atribuições do ONR: Art. 31, II, “b”: “implantação e operação do Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado – SAEC, como previsto em Recomendação da Corregedoria Nacional de Justiça, com a finalidade de prestar serviços e criar opção de acesso remoto aos serviços prestados pelas unidades registrais de todo País em um único ponto na Internet”.

[3] BERNAL. Volnys. UNGER. Adriana Jacoto. SREI – Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário – Parte 1 – Introdução ao Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário. São Paulo: LSITEC, 2012, item 3.4.1, p. 18. Acesso: https://folivm.files.wordpress.com/2011/04/srei_introducao_v1-0-r-7.pdf.

[4] SANTOS. Flauzilino Araújo dos. Registro de Imóveis Eletrônico. Uma reflexão tardia? Acesso: https://jus.com.br/artigos/50498/registro-de-imoveis-eletronico-uma-reflexao-tardia

[5] “Governança de TI é um conjunto de práticas, padrões e relacionamentos estruturados, assumidos por executivos, gestores, técnicos e usuários de TI de uma organização, com a finalidade de garantir controles efetivos, ampliar os processos de segurança, minimizar os riscos, ampliar o desempenho, otimizar a aplicação de recursos, reduzir os custos, suportar as melhores decisões e consequentemente alinhar TI aos negócios.” (João R. Peres, professor GV). Acesso: https://www.diariodeti.com.br/afinal-o-que-e-governanca-de-ti/.

[6] A expressão é da engenheira ADRIANA JACOTO UNGER proferida em palestra na OAB.

[7] São centenas de exemplos de devassa de dados públicos. Um único exemplo de um só fornecedor que disponibiliza 92 milhões de registros de brasileiros bastaria: “According to the seller, registered as X4Crow, the records are separated per province and include names, dates of birth, and taxpayer ID (CPF – Cadastro de Pessoas Físicas) of individuals. The database also has taxpayer details about legal entities, or the CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica), it is stated in the post”. Vide: Details of 92 Million Brazilians Auctioned on Underground Forums. Acesso: https://www.bleepingcomputer.com/news/security/details-of-92-million-brazilians-auctioned-on-underground-forums/.

[8]O Sistema de Atendimento Eletrônico Compartilhado (SAEC) disponibiliza um ponto único de contato para atendimento eletrônico de serviços, através da Internet, para qualquer cartório do Brasil. Atende a usuários remotos, realiza troca de informações com entidades externas e fornece dados estatísticos sobre a operação dos cartórios. O SAEC é responsável pela distribuição das solicitações que, recebidas via Internet, são encaminhadas aos respectivos cartórios. Existe uma única instância do SAEC, que é responsável por intermediar as solicitações para todos os cartórios de registro de imóveis.”  PROJETO SREl: PA 1.2.6 – Relatório da modelagem do processo automatizado v1.1.r.10, p.7. Acesso: https://folivm.files.wordpress.com/2015/08/srei-356-380-relatc3b3rio-da-modelagem-do-processo-automatizado.pdf.

[9] JACOMINO. Sérgio. ARRUDA ALVIM NETO. José Manuel et al. Org. Lei de Registros Públicos Comentada: lei 6.015/1973. 2ª ed. São Paulo: Forense, 2019, comentários ao art. 182.

[10] Na jurisprudência há muito se debateu: Ap. Civ. 280.482, São Paulo, j. 29/6/1979, DOJ 7/8/1979, rel. des. HUMBERTO DE ANDRADE JUNQUEIRA. Acesso: http://kollsys.org/ts.

[11] UNGER. Adriana Jacoto. MAFRA. Andressa. HIRATA. Estela. ZAVATA. Juliana. GROTTO. Marcela. PROJETO SREI – Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário – PA 1.2.6 – Relatório da modelagem do processo automatizado. 2011. Acesso: https://folivm.files.wordpress.com/2015/08/srei-356-380-relatc3b3rio-da-modelagem-do-processo-automatizado.pdf.

[12] LAGO, Ivan Jacopetti do. O atendimento prioritário da Lei federal 13.146/2015 (Estatuto da pessoa com deficiência) e o princípio da prioridade do registro de imóveis. Revista de Direito Imobiliário v. 39, n. 80, p. 293–318, jan./jun., 2016.