O Velho pisca

Li, reli, li de novo, eis que o novo se renova, e só nós, sós, ligados à teia infinita de amores e dores, no exato instante nos recordamos.

Sempre nos deparamos com o portal distendido sobre o abismo. O centro deste violento movimento é de novo o silêncio essencial, inércia absoluta, sumidouro que traga e entrega no dorso tempestades de estrelas cadentes e quasares. Quando tudo pára, no útero o velho pisca e o universo inspira.

O texto a respeito do Velho é tocante, perturbador. Como o escaravelho egípcio na janela de Jung, a escrita do destino lavrada na areia prateada. Nesta praia, o mar tudo lava e traga. O sonho de ouro, sonho de outro sonho, vem com a maré vazante e logo jaz, como a nota perdida de uma sinfonia inacabada.

De repente, uma batida da ancestralidade assombra e paralisa a contraparte no salão. Faz-se silêncio entre os pares. O som se esvai pelas salas e antecâmaras, os olhares se perdem nos espelhos de cristal.

Há uma fina lâmina que recobre as relações humanas, amor. Cobreiro de gente encardida e consagrada; lides a que não se dá cobro, nem consolo. Faina insana.

Leio, releio, ventania de natais e carnavais, tantos amores, tantos ais. “Vagalumes ao pôr do sol”, a terra batida do paiolzinho, no torvelinho rumoreja o som e as cores de tardes radiosas… tudo calha no desvão da memória e o céu coberto de luzes e mistérios.

Ah, como me lembro, linda criança. O sol se punha sobre os umbrais da Canastra, tingia de fúcsia e carmim as roseiras e rosários e o velho Abade traduzia Bernard de Clairvaux. Plec-plec-plec, tipo após tipo precipitam no colo da Velha Olivetti. Observo-o em silêncio; penso que a obra se faz de chumbo e de sublimes delícias.

O Velho cofiava a barbicha quando lhe vinha uma sentida nostalgia das estrelas. O tempo do Abade paralisava-se no centro do torno. Ele já se foi, o Abade. Arrasta atras de si a imensa corrente de paixões e amores insatisfeitos que dispõe tristemente ao largo do caminho de regresso.

Eu sonho o sonho dourado deste Velho e descubro o novo nos olhos da menina. Sempre uma linda menina.

Uncle Alli and the fog of Eden

“Have you noticed it?” – says Uncle Jaca, perched on his Bergère, his sanpaku eyes staring at me. It always bothers me, and he knows it. He immediately goes on:

“Probably not. It’s gone already…” he says, averting his weather-lined face. He chin-points at some place in the yard (where you can see nothing but a bunch of hibiscuses) and enigmatically insists: – “Have you noticed it?”.

A solemn silence falls over the radiant afternoon of the Yellow House. At the back of the shed where he lives, some marmosets hang from the Surinam cherry tree and watch us curiously.

I’ve already told you about Uncle Alli, good old Uncle Alligator, my mother’s brother, a confirmed bachelor, “the son of Time”, as he says. A time that we no longer remember… “and we don’t even miss it!” – I complete. I stop and shudder at my own conclusion. “We’ve been having memory issues”, I try to apologize for a presumed fault. My uncle doesn’t care. He throws himself onto his chaise. He’s exactly where he’s always been. He looks at me through clouded lenses that magnify his watery eyes. The man is tired of staring, we can notice immediately. Sometimes he closes his gray eyes and his eyelashes flutter like quivering antennas – “to perceive the substance of things”, he says, smiling.

“The past escapes from us”, he resumes provocatively. “How about the new encyclopedists, huh? eh?”, he juts out his prognathous chin as if he were punching the air. “Upheaval advances on Wikipedia, legions of idiots furiously rewrite it, edit the sayings according to the inks of that day. Busy Lilliputians, task workers without virtues or character. They vote with conviction, clerks devoted to a diffuse and uncharacteristic herd. They live in the flow, in the informational leak, without knots or harshness, without doubts or certainties, without destination or departure”.

Silence again. Suddenly he blurts out:

– “Have you noticed it? Probably not… It’s gone already…”, he resumes the motto once again. He takes a breath – “Newspapers are no longer the owners of their opinion, notes and news fade away on the kaleidoscopic screens, proclaiming a darned silence of gibberish. Damn jungle of parrots!”

We spend some time in silence, caressed by the autumn breeze.

–  “Schizoarchy, nubilopathic. Latrarchy sanctioned under ephods and a canonical figure. Peirathocrats and other high-profile highwaymen. We have established a fractarchy. Dividing by zero – such is the diet of modernity!”, he pronounces grandiloquently. Uncle Alli starts rummaging through forgotten dictionaries and can’t seem to find the right words. Not at all satisfied, he says he guts the words, cuts them up, puts everything together and cooks them. “The semantic mixing up is the result of alchemy…”.

It seems that Uncle Alli is on the slopes of madness.

“Digital rhizome that spreads in the cloud. There lies the disgraceful condensation of the masses in social obnubilation rages. Here is the digital homunculus, the demonic fruit of the subversion of the sacred fire. Man disappears in the eyes of Man and behold! Superman appears among us, without memory or character, without past or future. An intransitive, transhuman man, nailed to the Cathedral, like a reviving Golem which is sufficient in itself, and that’s it! Hopes fulminated, promises buried in salt. Men will be banished from the polis and imprisoned in simulacra of reality, condemned to the never-ending repetition of pleasures, tragedies, voluptuousness, and vices of modernity…”. All is wrapped up in beautiful narratives, and I immediately have an insight on the meaning of that prose.

Uncle sees that I am afflicted. Truth be told, this is not so much for what he says, but for what he is revealing about himself. He tries to comfort me. He strokes his little mustache and says with a wry smile: “Everything is done for your own good. Calm down. Trust it”. And he recites a poem (I think of his own writing):

“Live in the setback and
listen to the silence
above, below, in-between
(striding notes).

Keep your smile in your teeth,
the instant meanwhile.
honor the ones you loved
yesterday, before and always.

Be substantial.
Like the sheets on the clothesline,
the sun in the yard,
in the waters of the sea, the salt”.

Tio Jaca e a neblina do Éden

– “Notou?” – dispara o Tio Jaca empertigado na sua Bergère, crivando seus olhos sanpaku em mim. Sempre me incomodo com isso, ele sabe. E logo emenda:

– “Provavelmente, não. Já passou…” diz, desviando o rosto vincado pelo tempo. Aponta o queixo para algum ponto do quintal (onde não se vê mais do que uma penca de hibiscos) e insiste enigmaticamente: – “Notou?”.

Abre-se um silêncio solene na tarde radiosa da Casa Amarela. Ao fundo da edícula, onde mora, alguns micos se dependuram na pitangueira e nos espiam curiosos.

Já lhes contei alhures sobre o Tio Jaca, o Velho Tio Jacaré, irmão de minha mãe, solteirão convicto, “filho do Tempo”, como diz. Um tempo de que já não nos lembramos… “e nem falta nos faz!” – emendo. Paro e estremeço com a própria conclusão. “Andamos esquecidos”, tento desculpar-me por uma falta presumida. O Tio não liga. Projeta-se na chaise. Está onde sempre esteve. Olha-me pelas lentes embaciadas que magnificam seus olhos lacrimosos. O homem fartou-se do olhar, logo se vê. Às vezes fecha os olhos cinzas e os cílios vibram feito antenas tremebundas – “para perceber a substância das coisas”, diz, sorrindo.

– “O passado nos escapa”, ele retoma provocativamente. “Que tal os novos enciclopedistas, hein? hein?”, projeta o queixo prógnato como se desferisse golpes no ar. “A choldra avança sobre a Wikipédia, legiões de idiotas reescrevem-na furiosamente, editam o ditado de turno com as tintas do dia. Lilliputeanos afanosos, tarefeiros sem virtudes, nem caráter. Votam convictos, amanuenses devotados à grei difusa e incaracterística. Vivem no fluxo, na vaza informacional, sem nós, nem asperezas, sem dúvidas, nem certezas, sem partidas, nem chegadas. Sem origem, nem destino”.

Novo silêncio. De repente, dispara:

– “Notou? Provavelmente, não… Já passou”, retoma o mote. Toma fôlego – “jornais já não são da sua própria opinião, notas e notícias esfumam-se no écran caleidoscópico, proclamam um silêncio cerzido de algaravias. Maldita selva de papagaios!”.

Passamos algum tempo em silêncio, acariciados pela brisa outonal.

– “Esquizoarquia, nubilopáticos. Latrarquia sancionada sob estolas e cifra canônica. Peiratocratas e outros salteadores de fina estampa. Instauramos a fractarquia entre os fraternos. Dividir por zero – eis a dieta da modernidade!”, sentencia grandiloquente. Tio Jaca mete-se a fuçar nos dicionários esquecidos e parece não encontrar as palavras certas. Não satisfeito, diz que esventra os vocábulos, secciona-os, junta tudo e cozinha. “A comistão semântica é fruto de alquimia de todas as gramáticas…”.

Parece que desembesta na ladeira da loucura, o Tio Jaca.

– “Rizoma digital que se espraia na nuvem. Ali grassa a desgraçada condensação das massas na obnubilação social. Eis o homunculus digital, fruto demoníaco da subversão do fogo sagrado. O Homem desaparece às vistas do Homem e eis que surge, entre nós, o Super-Homem, sem memória e sem caráter, sem passado, nem futuro. Um homem intransitivo, transumano, cravado na Sé, feito Golem redivivo que se basta e pronto! Fulminadas as esperanças, as promessas são enterradas no sal. Os homens serão banidos da pólis e encarcerados em simulacros do real, condenados à infinita repetição de prazeres, tragédias, volúpias e vícios da modernidade…”. Tudo embalado em belas narrativas, logo intuo o sentido da prosa.

O Tio vê que me aflijo. Verdade é que não tanto pelo que diz, mas pelo que revela de si mesmo. Tenta me confortar. Cofia os bigodinhos e diz com um sorriso irônico: “Tudo é feito para o seu próprio bem. Calma. Confie”. E recita um poemeto (acho que de sua própria lavra):

“Viva no contratempo e
oiça o silêncio
acima, abaixo, entre
(notas estridentes).

Guarde o sorriso nos dentes,
o instante entrementes.
Honre seus entes
de ontem, de antes e de sempre.

Seja substancial.
Como o lençol no varal,
o sol no quintal,
no mar, o sal”.

Tio Jaca, o grafeno e a pandemia

O Tio Jaca estava inquieto nesta tarde fria e úmida de Santo Amaro. Anda “prali-praqui”, como diz rindo com os dentes cerrados.

Há pouco, no café da tarde, confidenciou-me que os grandes desenhistas de HQ dos 60 tinham alucinações na vigília porque colocavam o grafite na boca enquanto desenhavam. Sussurrou:

“O grafite brilha o seu fulgor secreto e eterno. Tem a alma de diamante. Pobres homens, escriba, não percebem que nas entranhas da matéria pulsa o pulso, o tempo no contratempo. O cosmo expira e inspira. O reino mineral reflui na cadência de longos éons. Tudo é vida e morte, escriba!”.

Tio Jaca não sente frio, nem calor. Tira o seu tempo e temperatura dos elementos. Diz que a “arquitetura é música petrificada”, citando mais ou menos Goethe.

Pobre Tio Jacaré. Não sei se resiste neste tempos sombrios.

Saudades do que não se lembra, nem tem nome

Tio Jacaré lê atentamente os autores pós-modernos. Deleita-se com o fato de que a jumentinha falasse a Balaão. Vê nisso os limites do conhecimento humano. Diz:

“O racionalismo é uma espécie de valente resistência ao que não se conhece, nem pode sê-lo”.

Agora mesmo o Tio Jaca lê Byung-Chul Han: “um mundo que constasse apenas de informações, a cuja circulação não perturbada se chamaria comunicação, seria igual a uma máquina”.

Tio Jaca chama tudo isso de desumanização. “É como caçar Pokémons”, diz. E segue:

“Os anjos e demônios, que acolhemos nalgum ponto imponderável de nosso ser, agora pululam feito pulgas, soltas num cenário hiper-real”.

Diz que tem saudades do que não lembra, nem tem nome.

Ai, ai, ai Tio Jacaré… Anda enfermiço.

Code is law e as libélulas do Tio Jaca

dragon

Já lhes falei do Tio Jacaré. É um velho tio, irmão mais velho de minha mãe (Deus a tenha) e que vive nos fundos de nossa casa. Já nem sei quantos anos possa ter. Sempre esteve ali, imóvel, feito uma inscrição na pedra, parece jamais se desvanecer no tempo. Diz que se alimenta de mel, castanhas e, à tardinha, toma o seu chá de romãs. Ama teias de aranha e decifra os intrincados mosaicos inscritos nas asas das libélulas – “nelas se acha inscrito o sentido da vida”, sussurra. O velho cumprimenta as mandrágoras, saúda os pequenos lagartos e caça cometas nas noites escuras.

Deixem-me lhes dizer que ontem cruzei com o tio no fundo do jardim. Gosta de me provocar, o velho. E foi logo dizendo:

Code is law – diz o professor Lawrence Lessig. Você sabe… a depressão dos registros públicos favorece a indústria da informação. As máquinas impõem seu código e “naturalmente” as suas regras. A sua eficácia decorre do poder de império das máquinas e de seus programadores. Esse poder será emanação de um hiperestado que se forma na nuvem de elétrons.

“Um Leviatã de silício”, empolguei-me. No topo da pirâmide de Kelsen, um algoritmo de inteligência artificial, distribuindo justiça, ordem e estabilidade aos caos… Ele me interrompe solenemente:

– O código suplantará o homem? Diga-me, Cartophylax?! Já não será possível a filosofia, nem mesmo a religião? Tudo estará encerrado num saco atômico em cujos portais os sentidos humanos depõem seus instrumentos de percepção? Não nos restará mais do que encerrar-nos sob a cogula e viver como o Camponês do Garona – “un vieux laic s’interroge à propos du temps présent”.

Não sei, Tio, não sei de nada disso.

Não sei, Tio, não sei de nada disso.

As ideias nascem e morrem na madrugada

Todos nós temos um tio excêntrico que suscita uma certa inquietação na família.

Pois bem. Eu tenho o meu tio esquisito: “Tio Jacaré” – aquele tipo de quem já lhes falei.

Quando me lembro de sua figura macilenta, quase ascética, sua imagem me vem logo à mente – e suas manias e hábitos taciturnos também.

Caminha quando todos param; cala quando palram. Dorme de olhos bem abertos e sorri quando alguns choram. Parece perceber, como no conto derviche de Zadig, os eventos ordinários como espécie de arrebatamento numinoso. Alguns se incomodam com seus fundos olhos sanpaku, “olhar caleidoscópico” – diz – “vê o duplo do duplo do duplo”.

Verdade seja dita: Tio Jacaré sempre acerta, errando pelas ruas, distraidamente.

Ultimamente diz que tem sido assaltado por ideias muito originais antes de se entregar completamente aos “oneiros suaves e gentis” – como chama seus amigos invisíveis.

Suspeito que nunca sabe o que fazer com suas ideias.

Com certo amargor, confidenciou-me esta manhã: “nunca adormeça com uma boa ideia, camarada. Poderá vê-la realizada por outrem no dia seguinte”.

Tio “Jaca” segue sonhando e tendo boas ideias que outros logo realizam na manhã seguinte.

O velho inspira cuidados…

Dr. SJ. Desculpe-me a impertinência e a covardia de escrever esta carta. Mas é que suas postagens sobre o personagem “Tio Jacaré” causaram-me uma grande confusão emocional, pois não me parece que ele seja uma pessoa mal intencionada, nem desrespeitosa com seus pares. Parece ser uma pessoa que sonha grande demais. Talvez não faça premonições, mas quem sabe a lógica não lhe fundamente a intuição e neste ponto se arriscou a fazer ponderações na cova de grandes leões egocêntricos.
Talvez, também, seus sonhos tenham se tornado um fardo muito grande para se carregar sozinho e durante a travessia ficou doente – perdendo a noção das fronteiras com os novos conceitos. Penso, ainda, que talvez tenha se embrenhado solitariamente em seus “sonhos” e por “falta de orientação correta,” se enfiou em mares cada vez mais profundos.
Que sabe tenha passado anos batalhando nas madrugadas e ficado doente… Por isso aparenta ser um desleixado, asceta, incompreendido pela sua família. Talvez ele esteja angustiado por uma resposta, seja para colocar um ponto final em suas loucuras seja para ajudá-lo a concretizá-las.
Em verdade, até chorei pelo personagem – Tio Jacaré. Ao que parece ele precisa de alguma ideologia – um legado qualquer para quando Tânato chegar – e isso o torna um ser solitário e incompreendido.
Quem sabe o Dr., com toda a sua sabedoria, não consegue colocá-lo em contato com o Dr. Ermitânio Prado, para uma prosa sincera, um café. Isso seria uma atitude de grande benevolência com o Tio Jacaré, que deve estar agora em profunda agonia com suas ponderações sobre sua pessoa… Abraços! A.

A.
Tio Jaca é infenso a leões e lesmas. Dá na mesma, para ele. Está com um pé entre nós; o outro enfiado nas estrelas. SJ.

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Cultura de massas

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Meu Tio Jacaré falou sobre muitas coisas ontem. Somente hoje, pela manhã, dei-me conta de que a descida da Job Lane em direção à Vereador José Diniz havia rendido muitas ideias. Uma delas, aliás coincidente com minhas leituras, dizia respeito à cultura de massas.

Tio “Jaca” sustenta que um pequeno grupo controla os principais meios de comunicação de massas, “influenciando os pensamentos, sentimentos e ações de quase toda a gente”. Disse que a citação é quase literal de Aldous Huxley em “Regresso ao admirável mundo novo” (São Paulo: Hemus, p. 41).

Disse que há um uso consciente e deliberado de símbolos poderosos que realizam o ambiente simbólico, emprestando sentidos, conformando o cenário numinoso no qual os seres humanos, já idiotizados e seduzidos, interagem numa febril compulsão sexual e em busca do inefável pela adição, em disputa por poder e grana.

“Como no Admirável Mundo Novo” diz ele, “dois modos de rendição humana: sexualismo desenfreado e drogas. Eis as expressões manifestas de anjos decaídos sobre os ombros humanos. A felicidade é uma gema doada por um mineiro cúpido e obscuro”.

Ai, ai, ai. Tio Jaca, que conversa estranha!