Instrumentos particulares, títulos digitalizados – requisitos técnicos. As reformas sucessivas da Lei 14.382/2022

O advento da Lei 14.382/2022 representou o despontar de um novo paradigma no sistema registral pátrio: a ereção do Registro de Documentos (ou menos que isso: registro de meras indicações eletrônicas), em oposição ao chamado Registro de Direitos, modelo adotado no Brasil desde as origens da publicidade hipotecária, em 1846, filiado às matrizes da Europa Continental[1]. O SREI – Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis vinha se estruturando, aperfeiçoando e modernizando sob os auspícios de um seleto grupo de registradores com a supervisão e coordenação do CNJ[2].

Lamentavelmente, as iniciativas foram colhidas por uma medida provisória (MP 1.085/2021) que nos brindou muitas e profundas mudanças, algumas muito boas, outras nem tanto. Como temos buscado demonstrar na série de artigos publicados no site Migalhas Notariais e Registrais, para nossa sorte (ou azar) ficamos a meio caminho das reformas pretendidas por seus protagonistas. A razão é simples: não se reforma uma instituição multissecular a partir de impulsos de açodado furor reformista[3]. Temos agora uma central de centrais (SERP) que a muito custo busca se estruturar. É um modelo manco e imperfeito, falto de referências a que pudesse se filiar de molde a alicerçar a propalada “modernização” do sistema registral pátrio. [ íntegra].

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Crônicas vespertinas – neblinas vesperais

Neblinas vesperais, crepusculares,
Guslas gementes, bandolins saudosos,
Plangências magoadíssimas dos ares…

CRUZ e SOUSA, João da. Broquéis. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 90

Vésperas… Adoro esta palavra. Os leitores deste blogue vão topar com ela amiúde. Vesperais também me assalta agora e, rindo sozinho, lembro-me do que é bulir com vespas, o que se faz por aqui também.

Sempre alguém nasce na vida para ser gauche. O Tio Jacaré, o Sr. Doutor Ermitânio Prado, o SJ, não importa a ordem de chamada, vão todos eles assim perfilhados, “como se chegando atrasados, andassem mais adiante”. Ah Velho Leminski, que saudades de suas tiradas geniais.

Há oportunidades perdidas. São como os anéis de Saturno – lindos e inacessíveis. Meras quimeras, como a revoada de melros na noite sem estrelas. Já as ideias deitam-se no ocidente como joias nobres e decadentes. Repousam em arcas de gemas radiosas. “Ainda há belos crepúsculos, escriba”, parece que lhe ouço, Dr. Ermitânio… O arrebol conquista o Velho em êxtase arrebatado e lhe confia a eternidade. Enquanto isso, ele cofia a barba e revolve as cãs, desconfiado, sempre desconfiado.

Compartilho os textos aqui e acolá. Alguém haverá de lê-los um dia, quem sabe? Pus o seguinte frontispício aos escritos que se vão apreciar abaixo:

“…conhecendo o que os que esto leerem que nom screvo do que ouvy, mes daquello que per grande custume tenho aprendido”. 

(Dom DUARTE I, 1391-1438. Livro da Ensinança do Bem Cavalgar toda Sela)

É o que vos posso legar. Minhas ideias, minhas experiências. O mais é só o cansaço da jornada.

Pequeno índice

  1. ONR – vésperas da Lei 14.118/2021. SJ entrevista Marcelo Martins Berthe e Flauzilino Araújo dos Santos. Acesso: https://wp.me/p6rdW-2Ei
  2. Vésperas do SERP – uma ideia fora do lugar – parte I. Aqui se inaugura o périplo da tentativa de se criar entidades registradoras… Acesso: https://wp.me/p6rdW-3d1
  3. Vésperas do SERP – uma ideia fora do lugar – parte II. Début das entidades registradoras. Acesso: https://wp.me/p6rdW-3hW
  4. Vésperas do SERP – uma ideia fora do lugar – parte III. A MP 897/2019 – a entidade registradora “registral. Acesso: https://wp.me/p6rdW-3ir
  5. Vésperas do SERP – uma ideia fora do lugar – IV. Repositório Eletrônico Confiável Compartilhado do SREI – REC-SREI. https://wp.me/p6rdW-3i7

Vésperas do SERP – uma ideia fora do lugar – parte III

No artigo anterior[1], vimos como nasceram as entidades registradoras e se inaugurou um novo regime registral das garantias reais e mobiliárias ao lado do sistema tradicional de publicidade jurídica. Na sequência, veremos como as forças econômicas e corporativas buscaram pespegar estas mudanças na ordem civil, subvertendo os paradigmas do direito brasileiro.

A MP 897/2019 – a entidade registradora “registral”

A tramitação do PLC 30/2019 (MP 897/2019, convertida afinal na Lei 13.986/2020) revelaria o movimento concentrado, e muito bem orquestrado, no sentido de se buscar a modificação dos paradigmas do sistema de registro de direitos e de distribuição de competências e funções notariais e registrais. No relatório final do dito PLC 30, apresentado pelo deputado PEDRO LUPION, houve a tentativa de incluir, na redação derradeira, a criação de uma Central Nacional de Registro Imobiliário (art. 51)[2]. Na complementação de voto, o nobre deputado ainda alteraria a redação do art. 51 “para permitir à Central Nacional de Registro de Imóveis atuar como entidade registradora, observada a legislação específica”. A emenda assim achava-se redigida:

“art. 51 do PLV: alteração do caput para permitir à Central Nacional de Registro de Imóveis atuar como entidade registradora, observada a legislação específica; alteração no §2° para conferir maior abrangência ao recebimento eletrônico de títulos pela Central Nacional de Registro de Imóveis; supressão do §3º, pois o ato notarial somente adquire eficácia após sua confirmação pelo registro; e alteração do §7°, renumerado para §6°, para atribuir ao Conselho Nacional de Justiça a fiscalização e o funcionamento da Central Nacional de Registro de Imóveis”[3].

A ideia de uma entidade registradora, ou como preferia o Deputado DENIS BEZERRA – Central Nacional de Gravames –, se insinuava nos debates legislativos de modo discreto. Assim a concebia o ilustre deputado (e notário) do Ceará:

“Por fim, a criação de uma central nacional de gravames atende a uma necessidade do mercado de crédito, para que o agente financiador possa obter, de maneira rápida e efetiva, informações sobre a capacidade de pagamento e grau de endividamento do produtor, de forma a avaliar mais assertivamente o risco de crédito e as garantias ofertadas e ter uma plataforma de acesso aos cartórios. Quanto mais fácil e transparente foram essas informações, mas rápida será a concessão do crédito e mais fortes serão as garantias recebidas pelo financiador”.

Com fundamento nesta justificativa, o deputado apresentaria sua emenda, cujo teor era o seguinte:

“Art. XXX. Fica criada a Central Nacional de Gravames organizada pelos registradores de imóveis, em cooperação com os registradores de títulos e documentos e tabeliães de protesto, e que compreenderá os registros de garantias, gravames, constrições judiciais, indisponibilidades e protestos, indexados a partir do número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda (CPF), ou número de inscrição no Cadastro Geral de Contribuintes do Ministério da Fazenda (CNPJ). Parágrafo único. Até 31 de julho de 2022 todos os atos anteriores constantes e vigentes até a edição desta lei serão inseridos na base de dados da Central Nacional de Gravames”[4].

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