Original e cópia – o inebriante efeito especular da digitalização. Velhas questões, novos desafios

Introdução

Neste pequeno ensaio, vamos nos deter no tema das distinções entre original e cópia e seus consectários – autoria, autenticidade, integridade. Com o perdão do trocadilho, qual o papel que o título digitalizado “com padrões técnicos” desempenha no processo registral? São equivalentes – o título original e o digitalizado – em ordem a sustentar a inscrição e promover a mutação jurídico-real? 

Narciso - Caravaggio,1594
Narciso – Caravaggio,1594

Os espelhos nos assombram, assim como as cópias digitais. Desde o Mito de Narciso, cujo trágico desenlace todos conhecemos, cumprindo a profecia de Tirésias – si non se uiderit – a realidade e as suas representações sempre intrigaram o homem.[1] Borges cravou uma passagem perturbadora em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius: “os espelhos têm algo de monstruoso” porque “multiplicam o número dos homens”.[2] Em Tlön, as idealizações e as representações qualificam, de certo modo, os fatos e a materialidade substancial das coisas. O mundo não é um concurso de objetos no espaço, nem há substantivos na Ursprache de Tlön… Magritte, em seu La reproduction interdite (1937), nos convida à reflexão acerca da realidade e de suas representações. O que é real? O que é surreal?[3]

Com o advento das novas tecnologias, muitos de nós não conseguem distinguir de modo seguro um original de sua cópia reprográfica; um objeto real de um simulacro; um fato substancial de sua representação digital. A questão torna-se ainda mais perturbadora quando pensamos que, no âmbito dos documentos natodigitais, já não se verifica a summa divisio que vinca os originais e suas cópias; todas as cópias são originais e vice-versa…

As recentes reformas legais são surpreendentes. Causam-nos perplexidade. Pensemos nos contratos digitalizados “com padrões técnicos”. O que são eles propriamente? Assombram-nos os extratos – emanação especular que se desprende dos negócios jurídicos pela via da novilíngua digital, errando por hubs, centrais eletrônicas e cartórios; assalta-nos a ideia de infalibilidade e fidedignidade das redes de blockchain, tokens, artefatos criptográficos e de seus protocolos divinos. O que é real? O que é surreal? O que é meta-real?

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Instrumentos particulares, títulos digitalizados – requisitos técnicos. As reformas sucessivas da Lei 14.382/2022

O advento da Lei 14.382/2022 representou o despontar de um novo paradigma no sistema registral pátrio: a ereção do Registro de Documentos (ou menos que isso: registro de meras indicações eletrônicas), em oposição ao chamado Registro de Direitos, modelo adotado no Brasil desde as origens da publicidade hipotecária, em 1846, filiado às matrizes da Europa Continental[1]. O SREI – Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis vinha se estruturando, aperfeiçoando e modernizando sob os auspícios de um seleto grupo de registradores com a supervisão e coordenação do CNJ[2].

Lamentavelmente, as iniciativas foram colhidas por uma medida provisória (MP 1.085/2021) que nos brindou muitas e profundas mudanças, algumas muito boas, outras nem tanto. Como temos buscado demonstrar na série de artigos publicados no site Migalhas Notariais e Registrais, para nossa sorte (ou azar) ficamos a meio caminho das reformas pretendidas por seus protagonistas. A razão é simples: não se reforma uma instituição multissecular a partir de impulsos de açodado furor reformista[3]. Temos agora uma central de centrais (SERP) que a muito custo busca se estruturar. É um modelo manco e imperfeito, falto de referências a que pudesse se filiar de molde a alicerçar a propalada “modernização” do sistema registral pátrio. [ íntegra].

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