Original e cópia – o inebriante efeito especular da digitalização. Velhas questões, novos desafios

Introdução

Neste pequeno ensaio, vamos nos deter no tema das distinções entre original e cópia e seus consectários – autoria, autenticidade, integridade. Com o perdão do trocadilho, qual o papel que o título digitalizado “com padrões técnicos” desempenha no processo registral? São equivalentes – o título original e o digitalizado – em ordem a sustentar a inscrição e promover a mutação jurídico-real? 

Narciso - Caravaggio,1594
Narciso – Caravaggio,1594

Os espelhos nos assombram, assim como as cópias digitais. Desde o Mito de Narciso, cujo trágico desenlace todos conhecemos, cumprindo a profecia de Tirésias – si non se uiderit – a realidade e as suas representações sempre intrigaram o homem.[1] Borges cravou uma passagem perturbadora em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius: “os espelhos têm algo de monstruoso” porque “multiplicam o número dos homens”.[2] Em Tlön, as idealizações e as representações qualificam, de certo modo, os fatos e a materialidade substancial das coisas. O mundo não é um concurso de objetos no espaço, nem há substantivos na Ursprache de Tlön… Magritte, em seu La reproduction interdite (1937), nos convida à reflexão acerca da realidade e de suas representações. O que é real? O que é surreal?[3]

Com o advento das novas tecnologias, muitos de nós não conseguem distinguir de modo seguro um original de sua cópia reprográfica; um objeto real de um simulacro; um fato substancial de sua representação digital. A questão torna-se ainda mais perturbadora quando pensamos que, no âmbito dos documentos natodigitais, já não se verifica a summa divisio que vinca os originais e suas cópias; todas as cópias são originais e vice-versa…

As recentes reformas legais são surpreendentes. Causam-nos perplexidade. Pensemos nos contratos digitalizados “com padrões técnicos”. O que são eles propriamente? Assombram-nos os extratos – emanação especular que se desprende dos negócios jurídicos pela via da novilíngua digital, errando por hubs, centrais eletrônicas e cartórios; assalta-nos a ideia de infalibilidade e fidedignidade das redes de blockchain, tokens, artefatos criptográficos e de seus protocolos divinos. O que é real? O que é surreal? O que é meta-real?

A realidade ultrapassa as mais ousadas distopias. Vivemos o tempo de avanços na digitalização da administração pública e judiciária, mas também testemunhamos o surgimento de simulacros que buscam suplantar a realidade e a materialidade das coisas, cedendo passo a representações complexas que se projetam no grande écran da hiper-realidade.

Voltando-nos ao microcosmo dos Registros Públicos, as reformas recentes da Lei nº 6.015/1973, consumadas pelo advento da Lei nº 14.382/2022, colocam-nos diante de velhas questões no confronto com as tendências que se verificam na sociedade da informação. A discussão acerca das mudanças – e o impacto que terão na atividade registral – é tarefa imperiosa e que ganha especial relevo quando consideramos que a Lei nº 14.382/2022 pende de regulamentação pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Sabemos que o impulso essencial das mudanças foi a “modernização” do sistema registral pátrio, embalado por slogans e narrativas de jaez tecnocrático, o que, na opinião de uma pequena, mas qualificada, comunidade de juristas não se deu de modo satisfatório e adequado.[4] Houve açodamento e uma certa dose de improviso e precipitação, fatos que podem inocular o germe da insegurança jurídica no sistema, além de instaurar uma barafunda sistemática, interditando os esforços despendidos em décadas de trabalho dedicado à modernização e ao aperfeiçoamento do modelar sistema registral pátrio.[5]

Divido essas meditações em dois pequenos artigos dedicados ao enfrentamento de três questões que se precipitaram na arena doutrinária pelas novas disposições legais: (a) O que são títulos digitalizados “com padrões técnicos” que agora podem acessar o Registro de Imóveis? Quais são seus pressupostos e requisitos técnicos e de validade jurídica? (b) Qual é o alcance do § 4º do art. 221 da Lei de Registros Públicos (LRP) na dispensa da reapresentação do título em algumas hipóteses, bastando mera referência ou certidão de atos já praticados? e finalmente (c) As certidões de documentos registrados no Ofício de Títulos e Documentos podem ser admitidas no Registro Imobiliário?

Título original versus cópia

A larga tradição do Registro de Imóveis brasileiro sempre se orientou no sentido de se exigir a apresentação da via original dos instrumentos submetidos ao registro, sejam eles públicos, particulares, administrativos ou judiciais. A razão de base é bastante singela: busca-se consagrar a segurança de autenticidade, autoria, integridade e validade dos instrumentos submetidos a registro com vistas à maior segurança jurídica dos intercâmbios econômicos imobiliários.

Já nos primórdios da vigência da LRP, o Conselho Superior da Magistratura de São Paulo (CSMSP) firmaria o entendimento – que se manteria firme ao longo das várias décadas –, de que os títulos submetidos a registro deveriam ser sempre apresentados no original, jamais por cópias reprográficas, ainda quando autenticadas.[6]

Essa orientação alcança os dias de hoje.[7] Assim, títulos judiciais, administrativos, notariais e mesmo registrais (Juntas Comerciais, por exemplo) devem ser apresentados ao registrador no original, não se admitindo cópias reprográficas – nem mesmo quando autenticadas.[8] Merece especial menção a exigência, sempre reiterada, de que para a suscitação de dúvida os títulos devem igualmente ser apresentados no original.[9]

A sociedade contemporânea experimenta o fenômeno da digitalização de documentos públicos e privados, tendência que se radicaliza progressivamente. Entretanto, como transpor a barreira intermediática sem perder as características de segurança que os documentos tradicionais sempre mantiveram ao longo de centenas de anos? Quais são as repercussões das mudanças na praxe cartorária?

Títulos digitalizados versus cópias eletrônicas

René Magritte, La Reproduction Interdite, 1937
René Magritte, La Reproduction Interdite, 1937

Comecemos com esta singela pergunta: Os títulos digitalizados podem ser admitidos a registro? Respondo que não – ao menos no atual estágio em que nos encontramos, com a lei ainda pendente de regulamentação. A questão é deveras polêmica pelo risco de envolver, de certo modo, o abalo do paradigma de registro de direitos e sua conversão em mero registro de documentos. O impulso da reforma se orientou inequivocamente nesse sentido aziago[10].

O CSMSP já apreciou casos em que o título – mera cópia digitalizada – havia sido encaminhado ao Registro de Imóveis pelas plataformas de serviços eletrônicos compartilhados (“protocolo” eletrônico). O órgão não reconheceu o recurso e julgou a dúvida prejudicada em razão de o título ter sido apresentado como mera cópia digital:

A primeira das exigências refere-se à necessidade de apresentação do formal de partilha original, pois a cópia enviada à serventia imobiliária por intermédio do serviço de protocolo eletrônico de títulos, ainda que acompanhada dos traslados de atos notariais pelos quais teriam sido realizadas retificações e ratificações do formal de partilha, não seria suficiente para afastar esse óbice.

[…]

Como é sabido, é imprescindível a apresentação do título original ao Oficial de Registro de Imóveis, pois eventual procedência do recurso resultaria no pretendido registro, decidindo-se acerca da qualificação registral. No caso concreto, contudo, o formal de partilha expedido nos autos da ação de inventário foi encaminhado ao Oficial de Registro de Imóveis por meio eletrônico. Ou seja, recebeu o registrador cópia do formal de partilha, digitalizado. Sendo assim, a dúvida encontra-se prejudicada porque não consta dos autos o original do título que se pretendia ver registrado.[11]

O pressuposto lógico do julgamento de prejudicialidade do recurso é a falta de apresentação do título original. Provido que fosse, determinado o registro, este se faria pelo aproveitamento dos documentos apresentados já de partida, na protocolização e encaminhamento ao juízo competente no bojo da suscitação de dúvida.

Mais recentemente, na Ap. Civ. 1006696-85.2020.8.26.0664, o v. CSMSP decidiu que os instrumentos ou títulos formais (art. 221 da LRP) perfazem-se pelas seguintes modalidades admitidas, a requerimento das partes:

  1. em meio físico, por ofício de Justiça (Normas de Serviço da Corregedoria Geral NSCGJ, Tomo I, arts. 221-223 e 1.273);
  2. em meio eletrônico, por ofício de Justiça (NSCGJ, Tomo I, art. 1.273-A);
  3. em meio físico, por tabelião de notas (NSCGJ, Tomo II, Capítulo XVI, itens 214-217 e 219); ou, ainda,
  4. em meio eletrônico, por tabelião de notas (NSCGJ, Tomo II, Capítulo XVI, itens 214-217, 218 e 219).[12]

No caso concreto, o Oficial do Registro de Imóveis exigiu que o título devesse ser encaminhado por via eletrônica (proxy Registradores), sustentando, segundo o relator, que, “tratando-se de processo eletrônico, o procedimento realmente tinha de ser feito pela central eletrônica”, informação reiterada na nota devolutiva: “a remessa de carta de adjudicação, originária de processo eletrônico, tem de ser remetida eletronicamente (Normas de Serviço da Corregedoria, Tomo I, art. 1.273-A, IV, e Tomo II, Cap. XX, item 365)”.

Magritte, R. Attempting the Impossible, 1928
Attempting the Impossible, 1928 by Rene Magritte

Em conclusão, a apresentação do título resumiu-se a mera cópia de uma das páginas dos autos de arrolamento e, à míngua de um título formal, a dúvida foi julgada prejudicada. A questão cingiu-se à regularidade da cobrança de prenotação na entrada do título no proxy registral (Central Registradores).

Parece-me razoável entender que o atendimento pessoal nos balcões dos cartórios não foi descontinuado. As partes têm o direito não só de apresentar seus títulos diretamente às serventias, sem a intermediação das plataformas eletrônicas, como têm o direito de obter certidão de propriedade em papel. A utilização das plataformas ou meios eletrônicos é facultativa, embora possa se antever que se torne o meio usual e mais comum com o passar do tempo. Evidentemente, tal mudança progressiva deve ser acompanhada de requisitos de segurança bem definidos e estabelecidos.

Entretanto, certo é que a Eg. Corregedoria Nacional de Justiça, no auge da pandemia, baixou o Provimento nº 94/2020 que parece indicar a possibilidade de se encaminhar documentos digitalizados às serventias registrais por meios das centrais. Vamos aos atos normativos, buscando extrair deles algumas conclusões. 

Provimento CNJ 94/2020 e o CNN/CN/CNJ-Extra

Sabemos que o Provimento CNJ 94/2020, editado no período pandêmico, trouxe importante disposição exceptiva no que respeita ao envio de documentos digitalizados “com requisitos técnicos” aos cartórios, regra que se projetou nos arts. 209 e 324 do Provimento CNJ 149/2023 (Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça – Foro Extrajudicial – CNN/ CN/CNJ-Extra):

Art. 209. Todos os oficiais de registro e os tabeliães poderão recepcionar os títulos nato-digitais e digitalizados com padrões técnicos, que forem encaminhados eletronicamente para a unidade do serviço de notas e registro a seu cargo e processá-los para os fins legais.

[…]

§ 2.º Consideram-se títulos digitalizados com padrões técnicos, aqueles que forem digitalizados em conformidade com os critérios estabelecidos no art. 5.º do Decreto n. 10.278, de 18 de março de 2020.

[…]

Art. 324. Todos os oficiais dos registros de imóveis deverão recepcionar os títulos nato-digitais e digitalizados com padrões técnicos, que forem encaminhados eletronicamente para a unidade a seu cargo, por meio das centrais.

 § 2.º Consideram-se títulos digitalizados com padrões técnicos aqueles que forem digitalizados de conformidade com os critérios estabelecidos no art. 5.º do Decreto n. 10.278, de 18 de março de 2020.

Por ora, nos deteremos nos “títulos digitalizados com padrões técnicos”. Vamos encetar as nossas discussões no contexto do Decreto Federal nº 10.278/2020, assimilado pelos atos normativos baixados pelo CNJ. Ali se indica o caminho para efetivar a digitalização dos documentos e subsequente o envio aos registros prediais pelos proxies registrais (as malfadadas Centrais Eletrônicas).[13] Entretanto, o que são exatamente esses documentos? 

Gestão documental do Registro de Imóveis

Há uma imensa confusão entre o que seja o original do documento e seu representante digital, consoante regras bem estabelecidas no âmbito do CONARQ. Cabe, pois, um parêntese para aclarar que o representante digital convive com o original, não o suprime – especialmente nos casos em que este seja reputado documento de preservação permanente.[14] A cópia digital não equivale tout court ao original para todos os efeitos legais. Além disso, como serão digitalizados os títulos e os documentos enviados a registro? Por quem? Quais os requisitos técnicos e legais a serem observados e preenchidos? Como serão recepcionados, tratados e mantidos tais títulos no acervo da Serventia? Quais os critérios de sua ordenação e classificação? Como estabelecer a tabela de temporalidade dos documentos recepcionados e que devem ser baseados – como exige o decreto – em critérios e padrões técnicos arquivísticos?

O Decreto Federal nº 10.278, de 18 de março de 2020, no qual se apoiou o Provimento CNJ 94 de 28/3/2020 (e o sucedâneo CNN/CN/CNJ-Extra) foi especificado pela Resolução CONARQ 48, de 10 de novembro de 2021.[15] Entre os requisitos exigidos para a validade (stricto sensu, i. e, em sua ordem) dos documentos assim digitalizados, exigem-se:

  1. plano de classificação de documento arquivísticos (PCDA) e tabela de temporalidade de documentos arquivísticos (TTDA); 
  2. regras de acesso e procedimentos de tratamento de informações com restrição de acesso; 
  3. sistema informatizado que atenda a requisitos arquivísticos de gestão de documentos; 
  4. repositório digital confiável que permita a manutenção/preservação do representante digital desde sua captura pelo sistema informatizado de gestão, pelo tempo necessário. 

O próprio Decreto nº 10.278/2020 estabelece que, dentre os metadados de registro do representante digital, estão o código de classificação, prazos de guarda e destinação que “requerem a existência de um PCDA e de uma TTDA, para os órgãos e instituições públicas”. São os pressupostos da digitalização. Segundo o Manual do CONARQ:

De uma forma geral, o representante digital produzido a partir do processo de digitalização dos documentos originais deve ser submetido às regras de gestão de documentos, a começar pelo uso do PCDA e da TTDA que devem constar dos metadados mínimos previstos no Decreto nº 10.278/2020. É imprescindível que, ao ser capturado para o sistema em que será gerenciado, o representante digital possua todos os demais metadados requeridos pelos sistemas informatizados que farão a gestão e preservação na instituição produtora, para além daqueles requisitos mínimos obrigatórios previstos pelo decreto.[16]

Desnecessário dizer que os metadados e demais requisitos técnicos e jurídicos exigíveis para validade da digitalização de documentos, nos termos do referido Decreto nº 10.278/2020 (e atos normativos do CNJ), não são ordinária e regularmente observados no processo de digitalização dos documentos enviados a registro pelos apresentantes; nem são examinados pelos registradores que os recepcionam e acolhem. Tampouco são verificados no intercurso do tramo digital, desde a origem até a recepção pelas serventias. Por fim, nem mesmo há um plano de gestão dos documentos e a especificação de um repositório digital confiável.

De fato, a regulamentação dos repositórios eletrônicos do extrajudicial não avançou, embora um primeiro impulso tenha sido dado. O Provimento 89/2019 havia previsto a constituição de repositórios eletrônicos confiáveis no inc. II, §3º, do seu art. 8º como parte integrante do SREI. Por outro lado, o art. 13 do dito ato normativo, de modo muito prudente, vinculou a criação dos repositórios eletrônicos – que nada mais são do que livros e repositórios registrais eletrônicos – à prévia “especificação técnica do modelo” a ser baseada na Recomendação nº 14, de 2 de julho de 2014 e em recomendações técnicas baixadas pelo CONARQ.[17]

Nessa toada, a própria Corregedoria Nacional de Justiça criaria a Comissão Permanente de Gestão Documental, Preservação Digital e Memória (CGDEX) no âmbito do Foro Extrajudicial.[18] O andamento dos trabalhos acha-se na dependência de decisão do Sr. Corregedor Nacional de Justiça para dar continuidade aos estudos com vistas à implementação no âmbito do SREI. 

Concluo sustentando que a constituição do repositório eletrônico e o ecossistema de recepção, tratamento e arquivamento dos documentos eletrônicos devem, portanto, ser objeto, mais cedo ou mais tarde, de regulamentação pela Corregedoria Nacional de Justiça, apreciando as propostas apresentadas pela CGDEX, homologadas posteriormente pelo Agente Regulador, nos termos do Provimento 109 de 14 de outubro de 2020, sob pena de transformar as centrais vinculadas ao ONR, SERP, e as próprias serventias, em uma babel confusa e insegura.

Quem deve digitalizar os documentos?

Um aspecto importante e que merece destaque é a definição precisa do órgão, do agente ou da instância encarregada de digitalizar o título e os documentos apresentados a registro nos termos do ecossistema criado pelo Decreto nº 10.278/2022 e atos normativos do CONARQ. Hoje, o processo de digitalização dos títulos privados ocorre, em regra, fora dos organismos criados pela Lei como ramais acessórios e instrumentais compartilhados dos Cartórios de Registro de Imóveis, especificamente o SAEC do SREI – à exceção, logicamente, da infraestrutura criada pelos notários que confere segurança de autoria, integridade e autenticidade dos documentos por eles formados e postos em trânsito pelas infovias.

Normalmente, o título é digitalizado pelo mero apresentante, figura episódica no âmbito dos registros, transformado, pela lei, em uma espécie de oráculo.[19] O processo de digitalização, para que se adeque às diretrizes do Decreto nº 10.278/2020, deve observar a classificação basal prevista na Lei nº 8.159/1991. Os documentos recepcionados, gerados ou mantidos no acervo dos Registros Públicos, seja em que medium for, são reputados documentos arquivísticos, classificados de acordo com o § 3º do art. 7º da Lei nº 8.159/1991. Livros, títulos, documentos etc. (art. 22 e seguintes da LRP c.c. art. 46 da Lei nº 8.935/1994), bancos de dados, índices, arquivos digitalizados (até mesmo os microfilmes[20]) – todos se enquadram na tipologia clássica da Lei: são documentos que podem se achar na fase corrente, intermediária ou reputados de guarda e preservação permanentes. Estes não podem ser descartados, mas devem ser mantidos no arquivo da serventia, seja em que meio se apresentarem. Assim, em todos os fluxos de gestão documental, avulta a importância do tratamento dado aos documentos de preservação permanente após a digitalização a cargo do agente produtor do representante digital. Como disposto no Decreto nº 10.278/2020, embora os documentos possam ser digitalizados – visando, por exemplo, a viabilizar a produção e a tramitação de seu representante digital – seus originais não podem ser descartados.[21]

Além disso, cogitando-se de conservação e recuperação de documentos de preservação permanente, o art. 194 da LRP foi alterado pela Lei nº 14.382/2022. Reza atualmente o dispositivo:

Art. 194. Os títulos físicos serão digitalizados, devolvidos aos apresentantes e mantidos exclusivamente em arquivo digital, nos termos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça. (grifo nosso)

Curiosamente, a lei alude somente aos “títulos físicos” – i. e., documentos em meio cartáceo[22] – dispondo que estes serão digitalizados e devolvidos aos apresentantes, mantidos na Serventia exclusivamente em meio digital. Seria possível aventar que as demais espécies – títulos digitalizados ou natodigitais – já não seriam arquivados na Serventia Predial, mas isto seria um erro. Lembro, de passagem, que o art. 18, in fine, alude à expedição de certidão de “documento arquivado no cartório”[23]. Como expedir certidão de documentos registrados, mas não arquivados no cartório?

Além disso, a inovação prevê que todos os títulos físicos serão digitalizados, não somente os instrumentos particulares, como se achava anteriormente consagrado no artigo 194 que vem de ser reformado. A razão subjacente à antiga disposição legal era bastante singela: não sendo os títulos privados oriundos de fontes públicas, por definição estáveis e perenes e gozando de potentes presunções (art. 215 do C. Civil e art. 405 do CPC) – e das quais se podiam extrair certidões – somente os instrumentos particulares, em regra dispersos e volantes, eram preservados para expedição de certidão no caso de necessidade de produção de prova, conforme o entendimento consagrado ao longo dos anos.[24]

A inovação representou um evidente retrocesso pela defectividade e ambiguidade de sua redação.

Conclusões

Tigres transparentes e suas torres de sangue. Borges

Concluindo este tópico, não se pode simplesmente substituir o título original por sua mera reprodução digital a ser encaminhada aos cartórios pelas plataformas intermédias. Postar tais documentos, desvestidos das formalidades legais e dos requisitos e padrões técnicos exigíveis, seria o mesmo que recepcionar cópias simples de títulos portadas pelos próprios apresentantes e exigir que se as registrassem como originais.

A mera transposição intermediática não produz de per si o efeito saneador dos títulos. As plataformas não transubstanciam uma cópia simples em original com aptidão a produzir as mutações jurídicas esperáveis com a inscrição.

Sem as providências elementares acima indicadas, não é possível admitir os “documentos digitalizados com requisitos técnicos”, sob pena de convivermos com os originais e os “tigres transparentes e suas torres de sangue”, como no conto Borgiano.


Notas

[1] BRANDÃO, Junito. Mitologia Grega. Vol. II, Petrópolis: Vozes, 1987, p. 176. “Foi ao grande profeta grego, ao mais célebre mántis, que Liríope consultou: Narciso viveria muitos anos? A resposta do adivinho foi lacônica e direta: si non se uiderit, se ele não se vir”. Narciso debruçou-se sobre o espelho d ´água e viu-se, e o vaticínio do velho Tirésias se cumpriria.

[2] LUÍS BORGES, Jorge. Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. O jardim dos caminhos que se bifurcam. Obras completas. Lisboa: Teorema, 1998. p. 447.

[3] MAGRITTE, René. La reproduction interdite. (1937). Museum Boijmans van Beuningen – Rotterdam – Holanda.

[4] MELO, Marcelo Augusto Santana de; MATUSZEWSK, Lorruane. Brevitatis causa. São Paulo: Migalhas, 12 abr. 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/384747/.CRAMBLER, Everaldo Augusto. A Lei 14.382/2022, o sistema eletrônico de registros públicos e os negócios imobiliários. Ensaios sobre Direito Constitucional, Processo Civil e Direito Civil. Uma homenagem ao Professor José Manoel de Arruda Alvim. Curitiba: EDV, 2023, p. 239 passim. CAMPOS, Ricardo. Extratos eletrônicos, microssistemas e o Poder Judiciário. São Paulo: Migalhas, 24 mar. 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/383616/. MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. A raposa e o galinheiro: a MP 1.085/2021 e os riscos ao consumidor. In: Blog do Fausto Macedo, ed. de 1º maio 2022, atual. 28 ago. 2023. A carta aberta de civilistas brasileiros merece ser conhecida: Carta aberta de civilistas sobre trecho da Medida Provisória nº 1.162, de 14 de fevereiro de 2023 (Programa Minha Casa, Minha Vida). In:São Paulo: CONJUR, 2023. Disponível em: https://wp.me/p6rdW-3oV. V. substancioso parecer subscrito pelos professores Cláudia Lima Marques e Bruno Miragem elaborado a pedido do Colégio Notarial Brasileiro – Conselho Federal e o Conselho Notarial Brasileiro – Seção São Paulo acerca das repercussões da MP nº 1.085/2021 nos direitos do consumidor. A CGJSP produziu um verdadeiro libelo crítico a respeito das inovações da Lei nº 14.382/2022. V. Processo CG 100.217/2022, São Paulo, dec. de 16/1/2023, Dje 16/1/2023, Des. Fernando Antônio Torres Garcia. Disponível em: http://kollsys.org/so7.

[5] Sobre o açodamento e a falta de aprofundamento da matéria, é bastante impressivo o testemunho de seus principais atores: “Já era noite quando o Ofício 196/2022 do Senado chegou à Câmara, e o Relator, Deputado Isnaldo Bulhões Jr., apresentou prontamente o relatório relâmpago (Parecer Preliminar de Plenário 3) votando pelo acolhimento das alterações promovidas pelo Senado”. ABELHA, André; CHALHUB, Melhim. VITALE, Olivar. Sistema eletrônico de registros públicos: Lei nº 14.382, de 27 de junho de 2022 comentada e comparada. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. XVII. Tratou-se de verdadeira blitzkrieg empreendida por alguns setores do Governo Federal aliados a grupos interessados.

[6] Vide os seguintes julgados, todos das décadas de 1970 e 1980: Ap. Civ. 288.403, Ubatuba, j. 28/12/1979, DJ 18/1/1980, Rel. Des. Humberto Andrade Junqueira. Disponível em: http://kollsys.org/ul; Ap. Civ. 442-0, j. São Paulo, j. 20/2/1981, DJ 25/6/1981, Rel. Des. Adriano Marrey. Disponível em: http://kollsys.org/vt; Ap. Civ. 1.338-0, Campinas, j. 28/2/1983, DJ 28/2/1983, Rel. Des. Bruno Affonso de André. Disponível em: http://kollsys.org/qp1; Ap. Civ. 2.177-0, São Paulo, j. 4/4/1983, DJ 27/4/1983, Rel. Des. Bruno Affonso de André. Disponível em: http://kollsys.org/33l; Ap. Civ. 4.258-0, Jacupiranga, j. 15/7/1985, Dje 3/9/1985, Rel. Des. Marcos Nogueira Garcez. Disponível em: http://kollsys.org/4v0; Ap. Civ. 4.184-0, Guarulhos, j. 14/10/1985, DJ 6/11/1985, Rel. Des. Marcos Nogueira Garcez. Disponível em: http://kollsys.org/4uw; Ap. Civ. 4.283-0, Garça, j. 6/11/1985, DJ 6/11/1985, Rel. Des. Marcos Nogueira Garcez. Disponível em: http://kollsys.org/4v2; Ap. Civ. 6.391-0, Atibaia, j. 17/10/1986, DJ 12/11/1986, Rel. Des. Sylvio do Amaral. Disponível em: http://kollsys.org/4xo; Ap. Civ. 7.924-0/8, São Paulo, j. 14/12/1987, DJ 15/1/1988, Rel. Des. Sylvio do Amaral. Disponível em: http://kollsys.org/526; Ap. Civ. 8.235-0/0, Piracaia, j. 4/4/1988, DJ 3/5/1988, Rel. Des. Milton Evaristo dos Santos. Disponível em: http://kollsys.org/52j.

[7] Ap. Civ. 0011855-98.2022.8.26.0100, São Paulo, j. 23/5/2023, Dje 29/5/2023, Rel. Des. Fernando Antônio Torres Garcia. Disponível em: http://kollsys.org/stg. Neste aresto, há indicação de outras decisões do mesmo jaez. V. ainda Ap. Civ. 1019062-61.2021.8.26.0361, São Paulo, j. 10/3/2023, Dje 10/5/2023, Rel. Des. Fernando Antônio Torres Garcia. Disponível em: http://kollsys.org/sr1.

[8] Há algumas formas de autenticação que são admitidas – como os títulos que são autenticados pela confirmação no site do Tribunal de Justiça ou pelas Juntas Comerciais. A certidão da JUCESP, por exemplo, pode ser expedida de forma simplificada, específica, consoante quesitos ou mesmo inteiro teor ou mediante técnicas de reprografia (incisos do art. 81 do Decreto nº 1.800/1996 c. c. art. 95 da IN DREI 81, de 10 de junho de 2020). É a certidão que será submetida a registro, consoante a legislação.

[9] Ap. Civ. 1003555-37.2017.8.26.0220, Guaratinguetá, j. 5/9/2023, Dje 6/11/2023, Rel. Des. Fernando Antônio Torres Garcia. Disponível em: http://kollsys.org/thr. Ap. Civ. 1019062-61.2021.8.26.0361, São Paulo, j. 10/3/2023, Dje 10/5/2023, Rel. Des. Fernando Antônio Torres Garcia. Disponível em: http://kollsys.org/sr1. No v. aresto há indicação de precedentes.

[10] Vide o substancioso parecer do Dr. Josué Modesto Passos no Processo CG 00.217/2022, São Paulo, dec. de 16/1/2023, Dje 16/1/2023, aprovado pelo Corregedor Geral de Justiça, Des. Fernando Antônio Torres Garcia. Disponível em: http://kollsys.org/so7.

[11] Ap. Civ. 1000122-65.2018.8.26.0648, Urupês, j. 12/9/2019, Dje 4/10/2019, Des. Rel. Geraldo Francisco Pinheiro Franco. Disponível em: http://kollsys.org/nkg.

[12] Ap. Civ. 1006696-85.2020.8.26.0664, Votuporanga, j. 17/9/2021, Dje 6/12/2021, Rel. Des. Ricardo Mair Anafe. Disponível em: http://kollsys.org/r3e.

[13] Sobre a aplicação do Decreto nº 10.278/2020 nas atividades registrais, v. JACOMINO, Sérgio. Assinaturas Eletrônicas e a Lei nº 14.382/2022 – parte III. São Paulo: Observatório do Registro, 3 mar. 2023. Disponível em: https://cartorios.org/2023/03/03/assinaturas-eletronicas-e-a-lei-14-382-2022-parte-iii/.

[14] JACOMINO, Sérgio. Registro em tempos de crise – XI – padrões técnicos para digitalização. São Paulo: Observatório do Registro, 27 jun. 2020. Disponível em: https://cartorios.org/2020/06/27/registro-em-tempos-de-crise-xi-padroes-tecnicos-para-digitalizacao/. Vide especialmente o tópico Títulos arquivados – preservação permanente.

[15] Publicado em: 11 nov. 2021, 2. ed. Seção 1, p. 152. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Arquivo Nacional. Conselho Nacional de Arquivos. Disponível em: https://www.gov.br/conarq/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/Diretrizes_digitalizacao__2021.pdf.

[16] CONARQ. diretrizes para a digitalização de documentos de arquivo nos termos do Decreto nº 10.278/2020. Câmara Técnica Consultiva do CONARQ sobre a técnica e os requisitos para a digitalização de documentos. Rio de Janeiro: CONARQ, 2021. p. 10.

[17] As recomendações relativas à gestão documental em repositórios eletrônicos confiáveis foi objeto de estudos no âmbito do SREI no Projeto CNJ/CONARQ-Folium (www.folivm.com.br), posteriormente aprofundados no NEAR-lab – Laboratório do Núcleo de Estudos Avançados do SREI. Vide Capítulo V – Gestão Arquivística no contexto da POC-SREI. Disponível em: https://www.youtube.com/playlist?list=PLC7AmF8Y-k0flqpFRgIYcmB6WKnou_2S8.

[18] Portarias CN-CNJ 12, de 10 fev. 2022, e 19, de 25 fev. 2022.

[19] A expressão “oráculo” é bastante conhecida no âmbito de redes distribuídas como blockchain, NFT´s etc. Os oráculos servem de intermediário confiável, permitindo a transposição de dados externos, não acessíveis diretamente pela rede, para o âmbito digital. Entre o mundo externo (offchain) e os dados representados na rede (onchain) deve existir um gatekeeper, que avalia e abona a autenticidade dos dados e informações que vão povoar os domínios das redes eletrônicas. No âmbito dos registros público: JACOMINO, Sérgio; UNGER, Adriana J. NFT´s – a tokenização imobiliária e o metaverso registral. São Paulo: Migalhas, 6 abr. 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/363265.

[20] V. art. 13 do Decreto nº 1.799/1996, que regulamentou a microfilmagem.

[21] CONARQ. Diretrizes Para a Digitalização de Documentos de Arquivo nos Termos do Decreto nº 10.278/2020. Rio de Janeiro: Câmara Técnica Consultiva do CONARQ sobre a técnica e os requisitos para a digitalização de documentos, 2021, p. 11. Vide ainda a Resolução CONARQ, 31, de 28 de abril de 2010, que dispõe sobre a adoção das Recomendações para Digitalização de Documentos Arquivísticos Permanentes.

[22] A rigor, títulos “físicos” são todos – inclusive os natodigitais, digitalizados e cartáceos. Não se tem notícia, ainda, de títulos “metafísicos”. O vocábulo cartáceo está dicionarizado (Houaiss) e se liga à raiz que nos revelou carteira, cártula etc., mas, especialmente, cartório. A “desmaterialização” é uma destas fantasias que empolgam o discurso tecnocrático e positivista.

[23] A Lei 6.766/1979, nos §§ 1º e 2º do art. 26, prevê o arquivamento das vias dos contratos de promessas e cessões no Registro de Imóveis. Não só. O § 1º do art. 32 da Lei 4.591/1964 igualmente prevê o arquivamento de toda a documentação relativa à incorporação imobiliária. Os dossiês relativos aos parcelamentos, incorporações, processos extrajudiciais de usucapião, adjudicação, retificação de registro, execução, intimações etc. todos os seus documentos deverão ser arquivados na Serventia e o Oficial deles dará certidão, quando instado. A falta de rigor sistemático da reforma é evidente, pois o locus da disciplina do processo de registro é evidentemente a LRP e o art. 194 deveria ser preservado ou sua redação melhorada por razões de rigor sistemático.

[24] Diz Afrânio de Carvalho a propósito: “Essa dispensa funda-se obviamente em que este se acha lavrado em livro de notário, que, além de ensejar certidões, goza de fé pública. De uma e de outra maneira, fica assegurado o comprovante do assento, pelo arquivamento do título particular e pela referência do título público ao livro de notário. Em suma: a) os títulos públicos, inclusive os de origem judicial, são devolvidos aos interessados, sem que fique uma via no registro de Imóveis, porque gozam de fé pública (escrituras, cartas de arrematação e de adjudicação, formais de partilha, cartas de sentença)”. CARVALHO, Afrânio. Registro de imóveis. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982. pp. 345-346.

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