Litigando contra si mesmo

Nos idos da década de 60, passou pela comarca um juiz muito rigoroso que, tempos depois, viria a ocupar o cargo de presidente do antigo e honorável 2º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, chegando à desembargadoria no início da década de 80.

Naquele tempo, os escreventes dos Cartórios de Registro de Imóveis, assim como seus oficiais, eram dublês de escrivães e escreventes do judicial e do extrajudicial. Assim previam as Ordenações do Reino e foi assim até bem pouco tempo em São Paulo.

Valtinho Leite, escrevente de sala, funcionário do Registro de Imóveis, era um bom datilógrafo, muito atento a todos os detalhes da audiência, qualificava as partes e as testemunhas, colhia suas assinaturas, sempre sob o olhar vigilante do magistrado.

Um certo dia, viu que o juiz enrubescia à medida que folheava um processo posto sobre a mesa. O escrevente conhecia-o muito bem e sabia quando se apoquentava: suas bochechas se tornavam róseas, ofegava, os dedos tamborilavam nervosamente sobre o vidro posto sobre a bandeira do Estado de São Paulo e a imagem de São Judas Tadeu. Depois de folhear os autos, disse, pigarreando e apagando o cigarro no cinzeiro de cristal:

– Como pode, Senhor Valtinho, como pode o advogado do autor distribuir a ação e ao mesmo tempo contestá-la em nome do réu?

Era uma ação de despejo por falta de pagamento. Valtinho conhecia o advogado, um homem de boa índole, pai de família, advogado conhecido e respeitado na comarca. Terá se equivocado? Decidiu interceder. Saiu da sala de audiências e foi ao encontro do advogado. Disse-lhe que deveria apresentar-se perante o juiz para se desculpar. Alegaria acúmulo de serviço, equívoco no peticionamento e coisa e tal. “O homem é brabo”, advertiu.

Assim combinaram e no dia seguinte foram ter à presença do magistrado. Valtinho pediu licença e introduziu o advogado, que logo tomou a palavra:

– Excelência, foi culpa do excesso de trabalho. O locador é amigo pessoal de longa data. Somos confrades no Círculo do Pensamento Esotérico. Já o inquilino é meu contraparente e, sabe como é, Doutor, não se pode negar um pedido da minha mulher… Tossiu, coçou a ponta do nariz.

O Juiz observava os dois atentamente. Valtinho sentou-se num canto da sala e fingia mexer na caixa de papel-carbono, o causídico suava, parecia sufocar com a gravata que ajeitava nervosamente.

– Pois bem, disse o magistrado depois de meditar e ponderar. Façamos o seguinte: vamos marcar uma audiência de conciliação e conhecer as razões das contrapartes, inquiri-las acerca dessa original pretensão deduzida em juízo. Dito isso, o juiz encerrou o colóquio.

O advogado percebeu que se metia numa bela enrascada e logo tratou de desistir da ação, subscrevendo uma petição datilografada às pressas na sala dos advogados. No dia seguinte, compôs-se com o autor e saldou a dívida do réu, diligenciando para que desocupasse o imóvel o mais rapidamente possível.

O magistrado promoveu-se para a comarca da Capital. Valtinho Leite recebeu o novo juiz e inaugurou nova fase no cargo de escrevente responsável pelo anexo do Júri, Menores e Corregedoria Permanente. Na corregedoria, conheceria ainda histórias dramáticas, mas algumas hilárias – como as artes de Pedro Faceto, o escrevente que virou desembargador. Um dia, manuseando a arma do crime – uma Beretta automática –, Faceto disparou no teto do cartório, fazendo desabar a estrutura de gesso e causando um início de pânico no fórum.

Deixemos este caso para a próxima certidão. Nada mais. Todo o referido é verdade e dou fé. 

2 comentários sobre “Litigando contra si mesmo

  1. Querido Jacozinho,
    Histórias verdadeiras que ocorreram mesmo em muitas serventias. Com 71 anos de carreira, presenciei algumas boas.
    Nos velhos encontros do IRIB, um registrador de longínqua comarca de nosso imenso Brasil, no conhecido pinga-fogo, com a participação nossa, do Dr. Gilberto e Galhardo, perguntou se título de posse poderia acessar ao registro, e logo veio a negativa da mesa, pois não se tratava de domínio. De imediato, o consulente respondeu que na sua serventia foi obrigado a registrar a posse diante da ameaça de um 38: “ou registra ou morre”.
    Velhos tempos de nosso querido e inesquecível “pinga-fogo”.
    Dou fé.

    • Não duvido Dr. Ademar Fioranelli sobretudo se isto estiver acontecido aqui no Amazonas ou em alguma comarca do Pará.

      Saudações ao Mestre.

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