“…conhecendo o que os que esto leerem que nom screvo do que ouvy, mes daquello que per grande custume tenho aprendido”.(Dom DUARTE I, 1391-1438. Livro da Ensinança do Bem Cavalgar toda Sela)
Introdução
Toda reforma institucional tem uma história. O SERP – Sistema Eletrônico de Registros Públicos não foge à regra. Este organismo artificial, resultado de tour de force empreendido por agentes do mercado financeiro e de capitais[1] e de representantes do setor imobiliário – apoiados por alguns registradores, impulsionados pelo Ministério da Economia – desde cedo despontou no cenário legislativo no afã de reformar o sistema registral, reconvertendo-o segundo modelos, referências e matrizes alienígenas – como o notice-based registry, sobre o qual muito já se falou[2].
A partir 2017 iniciaram-se várias tentativas de transformar o tradicional sistema registral pátrio em algo novo, moderno, ágil, eficiente, barato. Um novo Registro. O paradigma que primeiro se insinuou foi a criação de um ente privado centralizado de prestação de serviços de registro e informação – numa palavra, em uma entidade registradora “registral”, a exemplo dos modelos recomendados por organismos internacionais e que vicejaram por aqui[3]. Sob o pálio da “modernização” do sistema registral, as tentativas de reforma foram se sucedendo até que, finalmente, elas vieram consagradas, parcial e imperfeitamente, na Lei 14.382/2022.
Alguns registradores se inclinariam a esta iniciativa de modo muito entusiasmado, sem que o assunto fosse posto em amplo debate com a sociedade e especialistas[4], como se verá ao longo destas páginas. Aliados a representantes de centrais de serviços eletrônicos compartilhados de vários estados brasileiros, os registradores deram impulso às reformas legais que culminaram no SERP[5].
Há duas grandes vertentes identificáveis no cerne destas reformas: (a) a criação de uma central de serviços notariais e registrais (o que se consumou com a repristinação do art. 42-A incrustrado na Lei 8.935/1994) e (b) criação do SERP, com a figuração de central nacional de registros públicos, criada à imagem e semelhança de suas matrizes, exequíveis pela assimilação de novas tecnologias econômico-financeiras, como a segregação patrimonial e mobilização do crédito (securitização), aliadas a novas ferramentas de comunicação e informação próprias de plataformas digitais.
“Have you noticed it?” – says Uncle Jaca, perched on his Bergère, his sanpaku eyes staring at me. It always bothers me, and he knows it. He immediately goes on:
“Probably not. It’s gone already…” he says, averting his weather-lined face. He chin-points at some place in the yard (where you can see nothing but a bunch of hibiscuses) and enigmatically insists: – “Have you noticed it?”.
A solemn silence falls over the radiant afternoon of the Yellow House. At the back of the shed where he lives, some marmosets hang from the Surinam cherry tree and watch us curiously.
I’ve already told you about Uncle Alli, good old Uncle Alligator, my mother’s brother, a confirmed bachelor, “the son of Time”, as he says. A time that we no longer remember… “and we don’t even miss it!” – I complete. I stop and shudder at my own conclusion. “We’ve been having memory issues”, I try to apologize for a presumed fault. My uncle doesn’t care. He throws himself onto his chaise. He’s exactly where he’s always been. He looks at me through clouded lenses that magnify his watery eyes. The man is tired of staring, we can notice immediately. Sometimes he closes his gray eyes and his eyelashes flutter like quivering antennas – “to perceive the substance of things”, he says, smiling.
“The past escapes from us”, he resumes provocatively. “How about the new encyclopedists, huh? eh?”, he juts out his prognathous chin as if he were punching the air. “Upheaval advances on Wikipedia, legions of idiots furiously rewrite it, edit the sayings according to the inks of that day. Busy Lilliputians, task workers without virtues or character. They vote with conviction, clerks devoted to a diffuse and uncharacteristic herd. They live in the flow, in the informational leak, without knots or harshness, without doubts or certainties, without destination or departure”.
Silence again. Suddenly he blurts out:
– “Have you noticed it? Probably not… It’s gone already…”, he resumes the motto once again. He takes a breath – “Newspapers are no longer the owners of their opinion, notes and news fade away on the kaleidoscopic screens, proclaiming a darned silence of gibberish. Damn jungle of parrots!”
We spend some time in silence, caressed by the autumn breeze.
– “Schizoarchy, nubilopathic. Latrarchy sanctioned under ephods and a canonical figure. Peirathocrats and other high-profile highwaymen. We have established a fractarchy. Dividing by zero – such is the diet of modernity!”, he pronounces grandiloquently. Uncle Alli starts rummaging through forgotten dictionaries and can’t seem to find the right words. Not at all satisfied, he says he guts the words, cuts them up, puts everything together and cooks them. “The semantic mixing up is the result of alchemy…”.
It seems that Uncle Alli is on the slopes of madness.
“Digital rhizome that spreads in the cloud. There lies the disgraceful condensation of the masses in social obnubilation rages. Here is the digital homunculus, the demonic fruit of the subversion of the sacred fire. Man disappears in the eyes of Man and behold! Superman appears among us, without memory or character, without past or future. An intransitive, transhuman man, nailed to the Cathedral, like a reviving Golem which is sufficient in itself, and that’s it! Hopes fulminated, promises buried in salt. Men will be banished from the polis and imprisoned in simulacra of reality, condemned to the never-ending repetition of pleasures, tragedies, voluptuousness, and vices of modernity…”. All is wrapped up in beautiful narratives, and I immediately have an insight on the meaning of that prose.
Uncle sees that I am afflicted. Truth be told, this is not so much for what he says, but for what he is revealing about himself. He tries to comfort me. He strokes his little mustache and says with a wry smile: “Everything is done for your own good. Calm down. Trust it”. And he recites a poem (I think of his own writing):
“Live in the setback and listen to the silence above, below, in-between (striding notes).
Keep your smile in your teeth, the instant meanwhile. honor the ones you loved yesterday, before and always.
Be substantial. Like the sheets on the clothesline, the sun in the yard, in the waters of the sea, the salt”.
Estive com o Dr. Ermitânio Prado na última quinta-feira, como faço religiosamente há bons anos. O Velho acabou se tornando um grande amigo com o passar do tempo, um confidente, e eu, bem… como diria? Converti-me para ele numa espécie de filho adotivo, embora estejamos, ele e eu, naquela idade provecta da qual nos falava Shakespeare em As You Like It. Ele se lembra e recita de cor:
“The sixth age shifts Into the lean and slipper’d pantaloon, With spectacles on nose and pouch on side, His youthful hose, well saved, a world too wide For his shrunk shank; and his big manly voice, Turning again toward childish treble, pipes And whistles in his sound”.
Depois de uma risadinha seca, dispara: – Ah, escriba, o mundo todo é um palco, não é mesmo? Ainda há pouco nos lembrávamos do velho Juracy Magalhães que cravou a célebre frase – “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Parece que foi ontem… E no entanto, a colônia mental ainda se dobra ao canto mavioso do capital financeiro.
O Velho se empolgou com as recentes diatribes e se lembrou daquele episódio hilário da venda do Empire State Building por um escroque em menos de 90 minutos. “Tudo muito rápido, moderno, barato e eficiente”…
Relembremos. A transmitente era uma tal Nelots Properties. Nelots é anagrama de stolen, como se sabe, e o agente fiduciário (terceiro de confiança) era nada mais nada menos do que Willie Sutton, um famoso ladrão de bancos. Hilário que um agente de confiança, um “notário” norte-americano, seja um… assaltante de bancos! A razão pela qual essas transações são tão “rápidas, modernas, baratas, eficientes” reside no fato de que os registros são líquidos, instantâneos, solúveis em meios digitais e figuraram muito bem nos relatórios como o do finado Doing Business. Diz o jornalista :
“One of the most interesting things about the story is, there is no mandate in the deed recording office for them to check anything, so that’s the loophole for the fraud”.
“They only check to see if the various fees, like the recording fee, has been filed and check to see if there’s a notary stamp on the document. They don’t check to see if the notary is real. For example, I just made up a fake notary stamp.
“I was in fact told that with one or two more documents that are pretty easy to make, I could have gotten a mortgage of millions of dollars on the property”[* vide tradução].
– “De uma banda, depostos diante da sacrossanta pira do mercado, estão os estafetas do capital financeiro transnacional; de outro, a claque parva e ruidosa que veraneia em Palm Beach à custa do grosso frumento da prebenda vitalícia… Estão assanhados e maravilhados”.
Eu me delicio com a ranzinzice quase encolerizada do Velho Leão do Jocquey. Basta falar de modernidade, e ele logo se exalta e empertiga:
– O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil… Francamente! Parece que ouço o chato-boy, com o espartilho espandongado, a agitar as hostes de WhatsApp em sua revolução feita de truques, traques e flatos. Os arautos andam clarinando os feitos da nouvelle vague pós-moderna perfeitamente idiotizada (ou espertamente beneficiada). São os novos messiers jourdans que buscam a notoriedade aos modos e trejeitos de um Dorantes e de outros velhacazes travestidos de jurisconsultos. São os burgueses fidalgos da nova nomenklatura.
O Velho anda aporrinhado com os achaques da modernidade malsã. Diz que “queimamos a ponte à frente e à retaguarda; sentados, esperamos Godot!”. Impreca aos deuses do Olimpo para que o afastem daqueles “que logo se livram de livros e liquidam belas obras”. Para ele, a claque chilreante é “como aves coscuvilhantes que arremedam seus donos de altos galhos,grasnando desvairadamente: Yes! We have bananas!”.
Caro Dr. Ermitânio. Eu o compreendo, eu o compreendo, como não?
Tradução
[*] Uma tradução livre, bastante livre, mas não infiel à ideia geral, poderia ser esta:
“Uma das coisas mais interessantes sobre a história é que não há qualificação registral para que se verifique a regularidade de qualquer coisa, então essa é a brecha para a fraude”, disse ele.
“Eles só verificam se várias taxas, como a taxa de registro, foram pagas e verificam se há um carimbo de notário [“notário” nos EUA não integra o notariado do tipo latino] no documento. Eles não verificam se o notário é real. Por exemplo, eu acabei de criar um carimbo de notário falso.
“Na verdade, me disseram que com um ou dois documentos adicionais, bastante fáceis de fazer, eu poderia ter obtido uma hipoteca de milhões de dólares na propriedade”.
Dando seguimento à série Assinaturas Eletrônicas e a Lei 14.382/2022, hoje encerramos o ciclo enfrentando o disposto nos §2º do art. 4º e art. 9º, ambos do Provimento CN-CNJ 94/2020. As questões aqui agitadas guardam estreita relação com o tema central dos artigos anteriores: autenticidade e integridade dos títulos apresentados a registro. Os ditos dispositivos do Provimento 94/2020, baixado no auge da pandemia, em circunstâncias excepcionais – o que de certo modo justificava a solução ali alvitrada –, poderão ser reapreciados pela Corregedoria Nacional de Justiça, razão pela qual apresentamos as breves linhas que se seguem, feitas com o objetivo de colaborar com os debates públicos[1].
Dando seguimento ao artigo anterior (Assinaturas Eletrônicas e a Lei 14.382/2022 – parte I)[1], agora vamos ajustar o foco na adoção das assinaturas avançadas no Registro de Imóveis.
Primeiramente, há de se distinguir muito bem as hipóteses que nos interessam. De um lado a regra geral, estalão reitor que torna obrigatória a utilização da assinatura eletrônica qualificada nos “atos de transferência e de registro de bens imóveis” (inc. IV, § 2º, do art. 5º da Lei 14.063/2020)[2]; de outro, as hipóteses excepcionais em que a assinatura avançada poderá eventualmente ser utilizada. Entretanto, e de um modo geral, a reforma não discrimina expressamente em que casos cada qual poderá ser admitida, deixando a cargo da Corregedoria Nacional de Justiça regulamentar a utilização nos casos concretos.
Veremos que no Registro de Imóveis as assinaturas avançadas poderão ser utilizadas excepcionalmente, ou seja, nos casos que não envolvam atos de alienação ou oneração de bens imóveis. Nem mesmo a reforma da reforma da reforma (MP 1.162/2023) conseguiu consagrar, livre de dúvidas, a sua utilização no Registro de Imóveis[3]. Por esta razão, as hipóteses exceptivas deverão ser objeto de prudente regulamentação pela CN-CNJ (§§ 1º e 2º do art. 17 e art. 38 da Lei 11.977/2009, todos alterados pela Lei 14.382/2022). Em outras palavras, o abrandamento de rigores e de exigências formais será possível, contudo, sempre em casos residuais, levando-se em conta os princípios que iluminam o conjunto normativo que dispõe sobre a matéria.
Assim, atos meramente administrativos, como averbação de construção, mudança de numeração predial, de denominação de logradouros, mutações de estado civil, demolição, reconstrução, reforma e de tantas outras situações congêneres – que não representam mutações jurídico-reais e que calham no âmbito conceitual do que se entende por meraaverbação –, poderão ser firmados com assinaturas eletrônicas avançadas. Elas podem, ainda, ser utilizadas nos casos de acesso ou de “envio de informações aos registros públicos, quando realizados por meio da internet”, nos termos do § 1º do art. 17 da LRP, alterada pela Lei 14.382/2022. Uma vez mais, a lei endereça a regulamentação à CN-CNJ (§ 2º). Nestes casos exceptivos, calham os pedidos postados pelo SERP (inc. IV do art. 3º da Lei 14.382/2022), além da expedição de certidões com base em autenticação pela plataforma do SERP, ONR ou da própria Serventia (§ 2º do art. 5º da Lei 14.382/2022).
Já os atos e negócios que impliquem mutações jurídico-reais, como os que transfiram, modifiquem, declarem, confirmem ou extingam direitos reais, nestes casos parece-nos indispensável o uso de assinatura eletrônica qualificada, visto que somente esta modalidade pode garantir a confiabilidade, integridade e autoria na relação jurídica consagrada no instrumento registrável (título). Afinal, trata-se de garantir a validade e eficácia dos atos que acedem ao Registro de Imóveis e que produzem os potentes efeitos de constituição de direitos reais e de sua oponibilidade erga omnes.
Breves anotações e sugestões para sua regulamentação
A Corregedoria Nacional de Justiça acha-se debruçada sobre o desafio de regulamentar a Lei 14.382/2022. Ainda recentemente, o Sr. Corregedor Nacional de Justiça, Ministro LUÍS FELIPE SALOMÃO, baixou o Provimento CN-CNJ 139/2023, de 1º de fevereiro, que instituiu as regras basais do SERP – Sistema Eletrônico de Registros Públicos[1].
Entre os assuntos que certamente entrarão no radar do órgão, acha-se a utilização das assinaturas eletrônicas no processo registral imobiliário. Tema de capital importância para os cartórios brasileiros, as assinaturas eletrônicas são instrumentos e ferramentas que vão aptificar os agentes a interagir na infovia de interoperabilidade do SERP e dos Operadores Nacionais das várias especialidades.
Lembremo-nos de que o tema não interessa tão somente na perspectiva do funcionamento do SERP, mas abrange, naturalmente, a gestão documental a cargo dos próprios cartórios. Documentos, livros, registros, inscrições etc., acolhidos, produzidos e mantidos na própria serventia, devem submeter-se a rígida codificação e enquadrarem-se em tabelas de temporalidade[2].
O Congresso Nacional acabou por derrubar alguns vetos de dispositivos da Lei 14.382/2022. Entre outros, já apontados e comentados[1], gostaria de chamar a atenção, especificamente, para a derrubada do veto ao seguinte dispositivo da Lei:
“Art. 6º Os oficiais dos registros públicos, quando cabível, receberão dos interessados, por meio do Serp, os extratos eletrônicos para registro ou averbação de fatos, de atos e de negócios jurídicos, nos termos do inciso VIII do caput do art. 7º desta Lei.
§ 1º ……………………………………………………………………………………………………………….
III – os extratos eletrônicos relativos a bens imóveis deverão, obrigatoriamente, ser acompanhados do arquivamento da íntegra do instrumento contratual, em cópia simples, exceto se apresentados por tabelião de notas, hipótese em que este arquivará o instrumento contratual em pasta própria”.
O inciso foi promulgado, nos termos do § 5º do art. 66 da Constituição Federal, e se acha agora em pleno vigor.
Geleia geral notarial e registral
Já havia me dedicado ao tema aziago da substituição dos títulos, em sentido material e formal, por meras notíciasdigitais (notes), afeiçoadas a sistemas de registração alienígenas. Sobre a substituição paradigmática do sistema de registro de direitos pelo de registração por mera indicação, remeto o leitor aos argumentos já expendidos anteriormente[2]. A derrubada do veto introduz um novo elemento que haverá de render algumas discussões, razão pela qual retorno ao tema.
O notário ganhou uma atribuição heterodoxa: arquivamento de instrumentos particulares em suas “pastas próprias”, seja lá o que isto queira significar em tempos de digitalização. O tabelião de notas possivelmente concorrerá com o SERP neste mister, a fiar-se no disposto no inc. VIII do art. 3º da Lei 14.382/2022, alçados, ambos, a uma espécie de ente para-registral[3].
Entretanto, o notário ganha uma atribuição ainda mais inusitada: recebido o instrumento e arquivado em suas “pastas próprias”, dele expedirá (ou concertará) o extrato, que se torna, assim, uma espécie de traslado do documento por ele arquivado. De outra forma, terá sentido que receba o instrumento, arquivando-o em suas pastas, e acate o extrato elaborado por terceiros? Como estará seguro de que este não se acha em descompasso com o instrumento contratual?
Ermitânio Prado fica passado nos finais de anos. Fui visitá-lo na antevéspera. A cidade está vazia, há um quê de nostálgico e triste no ar. O Velho foi ao parque e ali fuma, solitário.
– Tudo há de passar muito bem passado, escriba. A manhã de um novo tempo há de nascer e de nós, meu caro, não restará mais do que a roupa amarfanhada deitada sobre a cadeira vazia….
Estava triste. Disse-me que sempre foi assim, desde criança, quando já não esperava o seu Papai Noel que havia partido aos quatro anos de idade.
– No final de ano sou como um fantasma que ri!, disse o Velho, entre uma baforada e outra de um genuíno Cohiba Medio Siglo. “Sinal dos tempos”… Fuma um charuto, diz, “antes que me proíbam de fumar e de pensar”. É um humor mofino, certamente.
O café sempre lhe é servido na biblioteca – Biblioteca Medicina Animæ – onde o Velho Ermitânio Prado se encontra enfurnado todas as manhãs quando a empregada chega para arrumação da casa. Ele sempre se acha ali, dobrado sobre algum livro desencravado das entranhas ensombradas de sua coleção de livros e de velhos vinis.
O quadro nunca se modifica. Cofia a barba, inclina-se sobre o texto, passa o polegar lentamente sobre a folha aberta – como se o dedo o guiasse seguro por paisagens longínquas e exóticas. Olha para o alto, toma um trago e queda-se extático como se sorvesse um precioso elixir. Inclina-se com reverência sobre o livro e uma nova cena se inaugura diante de seus olhos cansados. São como cortinas que se abrem e fecham, num espetáculo cujo enredo somente ele é capaz de apreender. Penso que ninguém mais transita por aquelas alameda labirínticas e acidentadas.
Ultimamente, vejo-o abichornado. Implica com detalhes, se aborrece com besteiras, irrita-se por somenos, diz que “anda à matroca, sem rei, nem roque”. Agora deu para reclamar dos gonzos da porta, “rangem de modo pavoroso – trítono é diabolus in musica…”, ranzinza.
O que mais o perturba, entretanto, é o fato de que as letras parecem se apagar dos velhos alfarrábios. “Esfumam-se, confundem os meus olhos. O vigoroso almagre de iluminuras empalidece em ocres desmaiados; derrui-se o cólofon sobre si mesmo, o cedilha manqueja, os travessões se interditam, os tipos fundem-se e enleiam as serifas aos borrões…”.
Na última quinta-feira eu o encontrei empunhando uma velha lupa toda adornada de madrepérola e prata. Esventrava o trato de um robusto clássico de Direito Privado. Ao me ver, diz com gáudio: “Autêntica Fabergé, pertenceu ao Grande Visconde de Porto Seguro”, referindo-se ao óculo. E logo emenda num resmungo: “as letras se arredam dos fólios, escriba, abrem-se avenidas de alvuras onde pululam fragmentos de pó e cinza de estrelas mortas. Eis que as gloriosas colunas da civilização se precipitam e jazem no abismo informacional. Dataísmo, escriba, fragmentos de sentido, jogam dados no ar, mas Deus não joga dados!”.
Os livros são para ele “os lindes extremos à barbárie que avança como o deserto e liquida o pensamento”. Pergunto-me, o Velho investiga o quê? Quedo-me perplexo, em silêncio, observando a veneração devotada aos velhos livros gentios. O que busca nesta altura da vida? O que anela a boa alma que outrora fora conhecido nos círculos intelectuais da Paulicéia como o Leão do Jockey?
Foram-se os belos restaurantes da cidade, deitaram-se os bulevares aformoseados de resedás, jacarandás, tipuanas, perderam-se na memória paulistana as casas de chá, as sapatarias e chapelarias da Quintino, os pãezinhos da Santa Teresa… Remanesce a Igreja das Almas, onde os velhos paulistanos depositam piedosamente sua memória em oferenda aos bons santos.
Parece que finalmente a modernidade o apaga – ao Velho e aos seus livros. Ele próprio se esboroa em estilhas de sentido. Pinça aqui e acolá um provérbio, um brocardo latino (que já ninguém atina), empunha-os e se lança invectivando a choldra alienada. Entretanto, eis uma luta inglória, sem sentido, fadada ao fracasso.
Dr. Ermitânio Prado, o velho Leão do Jockey, pobre ancião letrado; eis o lente que sucumbe sob cãs, suporta o opróbrio de seus pares, sustenta o peso da irrelevância.
Ao depor o imperador Rômulo Augusto, em 476, Odoacro pôs fim ao Império Romano do Ocidente e se tornou o primeiro dos reis bárbaros de Roma.
Desci a Consolação na manhã fria desta primavera atípica de São Paulo. Queria visitar o Dr. Ermitânio Prado logo cedo e com ele tomar um bom café da manhã.
Enquanto descia, pensava na família do meu amigo. Não sei de seus pais, nem de seus filhos, já nem sei de outros amigos que porventura possa ter.
“Os filhos foram à forra”, diz, “soltos num mundo feito de estupidez e picho nos ombros e nos monumentos”.
Penso sempre na biografia deste homem que o tempo curva num delicado descenso honroso e gentil. O Velho jamais revela algo de si mesmo, de sua estirpe, de sua grei. Sei que é descendente de Eduardo Prado, de quem certamente herdou o talento para a diatribe. Um “homem contra um regime”, como alguém já escreveu a respeito de um grande brasileiro.
Vinha entretido com as mesmas ideias, refletindo sobre a conveniência e oportunidade de escrever uma pequena obra crítica sobre o “moderno” SERP, ora em fase de regulamentação. Causa-me perplexidade o fato de que se possa destruir uma extraordinária obra do gênio humano – como é o sistema notarial e registral brasileiro –, substituindo-a por uma “disforme andaimaria de isopor e plástico”. Lembrei-me de ter dito por aí que seus arautos se pavoneiam de ter ornado a vetusta LRP com contas de acrílico, cerzidas na marmórea tessitura normativa de um monumento erigido ainda no século XIX. “Flores de plásticos numa selva tropical”, concluí.
– De corvo pennas pavonis inveniente… Diz rindo, sempre mordaz, o Velho.
Disforme andaimaria de isopor e plástico. É assim que o Dr. Ermitânio se refere às modernosas reformas encetadas pelo “gênio liberto de uma garrafa maldita”, criticando a deslatinização do notariado e do registro público brasileiros, reverberando as acertadas nótulas críticas que colheu do nosso Paysan de l’Andorre a propósito do tempo presente.
Acheguei-me e o aroma do café escapava pelas frestas das janelas que dão para a varanda espaçosa. Meus pensamentos se esvaíram imediatamente e uma sensação prazerosa invadiu-me a alma. “Não é o elixir de um Ibicaba, Escriba, mas confortemo-nos com um bom espresso”, foi logo dizendo e dispondo os acepipes especialmente preparados para o nosso encontro de todas as quintas. A conversa reata o fio de meus pensamentos e de tantos outros colóquios travados entre nós. Confidencio-lhe a intenção de escrever um livro sobre a Lei 14.382/2022, suas virtudes e defeitos.
– Escriba, veja bem. Fomos capazes de destruir, numa patranhada revolucionária, a história ininterrupta de nove séculos, pondo abaixo a única antiguidade americana[1]. Estas reformas registrais serão tão firmes quanto a perna fina e a bunda seca do Marechal…
Rimos de rebentar as ilhargas, o Velho e eu.
– Sim, Dr. Ermitânio, compreendo a analogia com a patuscada republicana. De igual maneira, todos nós assistimos bestializados à apressurada fundação de entidade corporativa… Ele me interrompe:
– …fruto acidental de coito intercrural! Era preciso vocalizar o mantra economicista da nouvelle vague registral. O ente espectral tomouforma na Internet antes de sua consagração num livro de Registro Público… Nihil est in intellectu quod non prius in sensu, atalha o velho com seu risinho mofador.
Confesso que hesito diante do argumento de que, afinal, nada se poderia fazer, senão aderir servilmente à onda avassaladora que partia do ventre da Nomenklatura financista de turno. A simples revogação da LRP seria atitude mais honesta em face da adoção despudorada das novas matrizes que orientaram confessadamente a reforma.
– Escriba, pense bem. Sempre haverá um Augústulo que se apequena diante de um Odoacro. Aquele se prestará à perfeita representação da inevitabilidade do destino de homens fúteis, refestelados pela prebenda generosa. Já o hérulo acabará por vencer e ser conduzido por uma cultura a que já não pode senão assimilar. Assim é o declínio das grandes instituições; podem soçobrar em face da ignorância ativa de uns poucos e o opróbrio de tantos, como na tragédia, entretanto, Roma æterna est!
Apercebo-me quando o Velho se apoquenta. Digo-lhe que dos escombros desta reforma aziaga haverá de brotar afinal uma flor…
– C´est la fleur du mal! – vocifera. A reforma é fruto de uma figueira estéril. Não torna a água à fonte, nem o perfume ao frasco…
Desvio o rumo da conversa. Falo do Tio Jacaré, dou notícias do front, falo dos concursos, recursos e de outras barbaridades. E demos muitas risadas inspirados por um bom digestivo.
Nota
[1] A passagem era deliciosamente mordaz e eu lhe perguntei a fonte. Ele não hesitou. Trata-se de célebre passagem de Capistrano de Abreu que se acha à p. 341 do seu Eduardo Prado in Ensaios e Estudos (Crítica e História) – 1ª série. Rio de Janeiro: Livraria Briguiet, 1931.