Cheguei em casa tarde, cansado, depois da travessia do tramo caótico da minha cidade. Deitei uma rápida olhadela nos e-mails e me deparei com um belo texto. Recolhi-me em silêncio. No quarto, às escuras, finas teias de luz penetram a persiana e me conduzem suavemente no colo da memória. Fiquei a meditar na minha trajetória pessoal, no itinerário percorrido, na dura faina de escrever, escrever, escrever…
Tenho dito aos meus colegas de ofício (no qual estou metido há mais de 50 anos): “vivemos uma espécie de crepúsculo. Ragnarök Registral”. Isto dizemos para nós mesmos, velhos escribas, e rimos, rimos feito crianças. “Tudo o que no mundo existe começa e acaba num livro”, todos sabemos. Especialmente nós, os escribas, que temos a nota inaugural e final da sinfonia inacabada dos homens.
Ingressei no nobile officium ainda muito jovem. Inscrevi, transcrevi, averbei… lavrei a verba elegante da praxe cartorária em pesados livros de registros manuscritos. Experimentei a mecanização dos processos registrais nos 90 e agora vivo para testemunhar o derruimento do edifício da fides publica pela vaza da novilíngua computacional. Pesada onda que suplanta a segurança jurídica pela vaga tecnológica e econômica.
Quem nos lê, quem ainda nos lerá? Haverá quem nos compreenda essencialmente? Ou seremos tragados e traduzidos por uma máquina? A lavra que encarna o espírito do tempo (e de certo modo o traduz) é varrida pelo vento, como as folhas secas no quintal. É tão lindo e triste o ocaso — pensei antes de fechar os olhos.
Desperto “obstinado, impaciente, azafamado pelas urgências e solicitudes esquecidas” (https://cartorios.org/about/). Eis-me aqui, diante da máquina, a pensar que devo por no mundo um livro de crônicas e o livro do Senhor Doutor Victor Ehrenberg.
Estive com o Dr. Ermitânio Prado na última quinta-feira, como faço religiosamente há bons anos. O Velho acabou se tornando um grande amigo com o passar do tempo, um confidente, e eu, bem… como diria? Converti-me para ele numa espécie de filho adotivo, embora estejamos, ele e eu, naquela idade provecta da qual nos falava Shakespeare em As You Like It. Ele se lembra e recita de cor:
“The sixth age shifts Into the lean and slipper’d pantaloon, With spectacles on nose and pouch on side, His youthful hose, well saved, a world too wide For his shrunk shank; and his big manly voice, Turning again toward childish treble, pipes And whistles in his sound”.
Depois de uma risadinha seca, dispara: – Ah, escriba, o mundo todo é um palco, não é mesmo? Ainda há pouco nos lembrávamos do velho Juracy Magalhães que cravou a célebre frase – “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Parece que foi ontem… E no entanto, a colônia mental ainda se dobra ao canto mavioso do capital financeiro.
O Velho se empolgou com as recentes diatribes e se lembrou daquele episódio hilário da venda do Empire State Building por um escroque em menos de 90 minutos. “Tudo muito rápido, moderno, barato e eficiente”…
Relembremos. A transmitente era uma tal Nelots Properties. Nelots é anagrama de stolen, como se sabe, e o agente fiduciário (terceiro de confiança) era nada mais nada menos do que Willie Sutton, um famoso ladrão de bancos. Hilário que um agente de confiança, um “notário” norte-americano, seja um… assaltante de bancos! A razão pela qual essas transações são tão “rápidas, modernas, baratas, eficientes” reside no fato de que os registros são líquidos, instantâneos, solúveis em meios digitais e figuraram muito bem nos relatórios como o do finado Doing Business. Diz o jornalista :
“One of the most interesting things about the story is, there is no mandate in the deed recording office for them to check anything, so that’s the loophole for the fraud”.
“They only check to see if the various fees, like the recording fee, has been filed and check to see if there’s a notary stamp on the document. They don’t check to see if the notary is real. For example, I just made up a fake notary stamp.
“I was in fact told that with one or two more documents that are pretty easy to make, I could have gotten a mortgage of millions of dollars on the property”[* vide tradução].
– “De uma banda, depostos diante da sacrossanta pira do mercado, estão os estafetas do capital financeiro transnacional; de outro, a claque parva e ruidosa que veraneia em Palm Beach à custa do grosso frumento da prebenda vitalícia… Estão assanhados e maravilhados”.
Eu me delicio com a ranzinzice quase encolerizada do Velho Leão do Jocquey. Basta falar de modernidade, e ele logo se exalta e empertiga:
– O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil… Francamente! Parece que ouço o chato-boy, com o espartilho espandongado, a agitar as hostes de WhatsApp em sua revolução feita de truques, traques e flatos. Os arautos andam clarinando os feitos da nouvelle vague pós-moderna perfeitamente idiotizada (ou espertamente beneficiada). São os novos messiers jourdans que buscam a notoriedade aos modos e trejeitos de um Dorantes e de outros velhacazes travestidos de jurisconsultos. São os burgueses fidalgos da nova nomenklatura.
O Velho anda aporrinhado com os achaques da modernidade malsã. Diz que “queimamos a ponte à frente e à retaguarda; sentados, esperamos Godot!”. Impreca aos deuses do Olimpo para que o afastem daqueles “que logo se livram de livros e liquidam belas obras”. Para ele, a claque chilreante é “como aves coscuvilhantes que arremedam seus donos de altos galhos,grasnando desvairadamente: Yes! We have bananas!”.
Caro Dr. Ermitânio. Eu o compreendo, eu o compreendo, como não?
Tradução
[*] Uma tradução livre, bastante livre, mas não infiel à ideia geral, poderia ser esta:
“Uma das coisas mais interessantes sobre a história é que não há qualificação registral para que se verifique a regularidade de qualquer coisa, então essa é a brecha para a fraude”, disse ele.
“Eles só verificam se várias taxas, como a taxa de registro, foram pagas e verificam se há um carimbo de notário [“notário” nos EUA não integra o notariado do tipo latino] no documento. Eles não verificam se o notário é real. Por exemplo, eu acabei de criar um carimbo de notário falso.
“Na verdade, me disseram que com um ou dois documentos adicionais, bastante fáceis de fazer, eu poderia ter obtido uma hipoteca de milhões de dólares na propriedade”.
Ermitânio Prado fica passado nos finais de anos. Fui visitá-lo na antevéspera. A cidade está vazia, há um quê de nostálgico e triste no ar. O Velho foi ao parque e ali fuma, solitário.
– Tudo há de passar muito bem passado, escriba. A manhã de um novo tempo há de nascer e de nós, meu caro, não restará mais do que a roupa amarfanhada deitada sobre a cadeira vazia….
Estava triste. Disse-me que sempre foi assim, desde criança, quando já não esperava o seu Papai Noel que havia partido aos quatro anos de idade.
– No final de ano sou como um fantasma que ri!, disse o Velho, entre uma baforada e outra de um genuíno Cohiba Medio Siglo. “Sinal dos tempos”… Fuma um charuto, diz, “antes que me proíbam de fumar e de pensar”. É um humor mofino, certamente.
O café sempre lhe é servido na biblioteca – Biblioteca Medicina Animæ – onde o Velho Ermitânio Prado se encontra enfurnado todas as manhãs quando a empregada chega para arrumação da casa. Ele sempre se acha ali, dobrado sobre algum livro desencravado das entranhas ensombradas de sua coleção de livros e de velhos vinis.
O quadro nunca se modifica. Cofia a barba, inclina-se sobre o texto, passa o polegar lentamente sobre a folha aberta – como se o dedo o guiasse seguro por paisagens longínquas e exóticas. Olha para o alto, toma um trago e queda-se extático como se sorvesse um precioso elixir. Inclina-se com reverência sobre o livro e uma nova cena se inaugura diante de seus olhos cansados. São como cortinas que se abrem e fecham, num espetáculo cujo enredo somente ele é capaz de apreender. Penso que ninguém mais transita por aquelas alameda labirínticas e acidentadas.
Ultimamente, vejo-o abichornado. Implica com detalhes, se aborrece com besteiras, irrita-se por somenos, diz que “anda à matroca, sem rei, nem roque”. Agora deu para reclamar dos gonzos da porta, “rangem de modo pavoroso – trítono é diabolus in musica…”, ranzinza.
O que mais o perturba, entretanto, é o fato de que as letras parecem se apagar dos velhos alfarrábios. “Esfumam-se, confundem os meus olhos. O vigoroso almagre de iluminuras empalidece em ocres desmaiados; derrui-se o cólofon sobre si mesmo, o cedilha manqueja, os travessões se interditam, os tipos fundem-se e enleiam as serifas aos borrões…”.
Na última quinta-feira eu o encontrei empunhando uma velha lupa toda adornada de madrepérola e prata. Esventrava o trato de um robusto clássico de Direito Privado. Ao me ver, diz com gáudio: “Autêntica Fabergé, pertenceu ao Grande Visconde de Porto Seguro”, referindo-se ao óculo. E logo emenda num resmungo: “as letras se arredam dos fólios, escriba, abrem-se avenidas de alvuras onde pululam fragmentos de pó e cinza de estrelas mortas. Eis que as gloriosas colunas da civilização se precipitam e jazem no abismo informacional. Dataísmo, escriba, fragmentos de sentido, jogam dados no ar, mas Deus não joga dados!”.
Os livros são para ele “os lindes extremos à barbárie que avança como o deserto e liquida o pensamento”. Pergunto-me, o Velho investiga o quê? Quedo-me perplexo, em silêncio, observando a veneração devotada aos velhos livros gentios. O que busca nesta altura da vida? O que anela a boa alma que outrora fora conhecido nos círculos intelectuais da Paulicéia como o Leão do Jockey?
Foram-se os belos restaurantes da cidade, deitaram-se os bulevares aformoseados de resedás, jacarandás, tipuanas, perderam-se na memória paulistana as casas de chá, as sapatarias e chapelarias da Quintino, os pãezinhos da Santa Teresa… Remanesce a Igreja das Almas, onde os velhos paulistanos depositam piedosamente sua memória em oferenda aos bons santos.
Parece que finalmente a modernidade o apaga – ao Velho e aos seus livros. Ele próprio se esboroa em estilhas de sentido. Pinça aqui e acolá um provérbio, um brocardo latino (que já ninguém atina), empunha-os e se lança invectivando a choldra alienada. Entretanto, eis uma luta inglória, sem sentido, fadada ao fracasso.
Dr. Ermitânio Prado, o velho Leão do Jockey, pobre ancião letrado; eis o lente que sucumbe sob cãs, suporta o opróbrio de seus pares, sustenta o peso da irrelevância.
Ao depor o imperador Rômulo Augusto, em 476, Odoacro pôs fim ao Império Romano do Ocidente e se tornou o primeiro dos reis bárbaros de Roma.
Desci a Consolação na manhã fria desta primavera atípica de São Paulo. Queria visitar o Dr. Ermitânio Prado logo cedo e com ele tomar um bom café da manhã.
Enquanto descia, pensava na família do meu amigo. Não sei de seus pais, nem de seus filhos, já nem sei de outros amigos que porventura possa ter.
“Os filhos foram à forra”, diz, “soltos num mundo feito de estupidez e picho nos ombros e nos monumentos”.
Penso sempre na biografia deste homem que o tempo curva num delicado descenso honroso e gentil. O Velho jamais revela algo de si mesmo, de sua estirpe, de sua grei. Sei que é descendente de Eduardo Prado, de quem certamente herdou o talento para a diatribe. Um “homem contra um regime”, como alguém já escreveu a respeito de um grande brasileiro.
Vinha entretido com as mesmas ideias, refletindo sobre a conveniência e oportunidade de escrever uma pequena obra crítica sobre o “moderno” SERP, ora em fase de regulamentação. Causa-me perplexidade o fato de que se possa destruir uma extraordinária obra do gênio humano – como é o sistema notarial e registral brasileiro –, substituindo-a por uma “disforme andaimaria de isopor e plástico”. Lembrei-me de ter dito por aí que seus arautos se pavoneiam de ter ornado a vetusta LRP com contas de acrílico, cerzidas na marmórea tessitura normativa de um monumento erigido ainda no século XIX. “Flores de plásticos numa selva tropical”, concluí.
– De corvo pennas pavonis inveniente… Diz rindo, sempre mordaz, o Velho.
Disforme andaimaria de isopor e plástico. É assim que o Dr. Ermitânio se refere às modernosas reformas encetadas pelo “gênio liberto de uma garrafa maldita”, criticando a deslatinização do notariado e do registro público brasileiros, reverberando as acertadas nótulas críticas que colheu do nosso Paysan de l’Andorre a propósito do tempo presente.
Acheguei-me e o aroma do café escapava pelas frestas das janelas que dão para a varanda espaçosa. Meus pensamentos se esvaíram imediatamente e uma sensação prazerosa invadiu-me a alma. “Não é o elixir de um Ibicaba, Escriba, mas confortemo-nos com um bom espresso”, foi logo dizendo e dispondo os acepipes especialmente preparados para o nosso encontro de todas as quintas. A conversa reata o fio de meus pensamentos e de tantos outros colóquios travados entre nós. Confidencio-lhe a intenção de escrever um livro sobre a Lei 14.382/2022, suas virtudes e defeitos.
– Escriba, veja bem. Fomos capazes de destruir, numa patranhada revolucionária, a história ininterrupta de nove séculos, pondo abaixo a única antiguidade americana[1]. Estas reformas registrais serão tão firmes quanto a perna fina e a bunda seca do Marechal…
Rimos de rebentar as ilhargas, o Velho e eu.
– Sim, Dr. Ermitânio, compreendo a analogia com a patuscada republicana. De igual maneira, todos nós assistimos bestializados à apressurada fundação de entidade corporativa… Ele me interrompe:
– …fruto acidental de coito intercrural! Era preciso vocalizar o mantra economicista da nouvelle vague registral. O ente espectral tomouforma na Internet antes de sua consagração num livro de Registro Público… Nihil est in intellectu quod non prius in sensu, atalha o velho com seu risinho mofador.
Confesso que hesito diante do argumento de que, afinal, nada se poderia fazer, senão aderir servilmente à onda avassaladora que partia do ventre da Nomenklatura financista de turno. A simples revogação da LRP seria atitude mais honesta em face da adoção despudorada das novas matrizes que orientaram confessadamente a reforma.
– Escriba, pense bem. Sempre haverá um Augústulo que se apequena diante de um Odoacro. Aquele se prestará à perfeita representação da inevitabilidade do destino de homens fúteis, refestelados pela prebenda generosa. Já o hérulo acabará por vencer e ser conduzido por uma cultura a que já não pode senão assimilar. Assim é o declínio das grandes instituições; podem soçobrar em face da ignorância ativa de uns poucos e o opróbrio de tantos, como na tragédia, entretanto, Roma æterna est!
Apercebo-me quando o Velho se apoquenta. Digo-lhe que dos escombros desta reforma aziaga haverá de brotar afinal uma flor…
– C´est la fleur du mal! – vocifera. A reforma é fruto de uma figueira estéril. Não torna a água à fonte, nem o perfume ao frasco…
Desvio o rumo da conversa. Falo do Tio Jacaré, dou notícias do front, falo dos concursos, recursos e de outras barbaridades. E demos muitas risadas inspirados por um bom digestivo.
Nota
[1] A passagem era deliciosamente mordaz e eu lhe perguntei a fonte. Ele não hesitou. Trata-se de célebre passagem de Capistrano de Abreu que se acha à p. 341 do seu Eduardo Prado in Ensaios e Estudos (Crítica e História) – 1ª série. Rio de Janeiro: Livraria Briguiet, 1931.
Caro Doutor Ermitânio Prado, como tem passado? Soube que, desde as leituras de Carl Gustav Jung, reiteradamente sonha com o coração se divorciando da consciência. Interessante alusão. No entanto, preocupo-me que haja desenvolvido crises de gota como projeção desta luta racional. Ocorre-me dizer-lhe que se tranquilize, pois sempre haverá um véu suficientemente espesso para justificar o pecado. Ora, em tempos de dessacralização burguesa, meu amigo, o autoflagelo é já demasiado.
Folgo em saber que retoma as suas atividades, apesar da gota (ou, quem sabe, por conta desta – pouco importa).
O que importa, de fato, é a criação poética – a sua e a deste seu antepassado espiritual – cujas personalidades críticas, no sentido mais eversivo do termo, se souberam transmutar por aí, quem sabe, numa Rua do Ouvidor.
Imagino-os caminhando, acordes com que se devam associar na unidade do mesmo gesto o crer e o viver; e debatendo se haveria uma verdade última a que se poderiam reduzir as convenções, os hábitos e o obscuro destino do homem.
Destino obscuro, porém indistinto em miséria. A costureira Dona Plácida, filha natural de um sacristão da Sé e de uma mulher que fazia doces para fora, expressa o vislumbre machadiano deste mundo sem futuro para o escravo emancipado, nada restando de solene da proposição de Nabuco:
“E de crer que Dona Plácida não falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias:
— Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã naturalmente lhe responderiam:
— Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia.
A liberdade propalada não era apenas fruto de ingenuidade idealista, mas uma retórica cruel (atentemo-nos às sutilezas do texto). Por certo, algo irônico, certa vez justificou até mesmo Cotrim no trato com os escravos: “não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais”. (Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, p.83. Fundação Biblioteca Nacional. Departamento Nacional do Livro;http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000167.pdf)
Efeito de relações sociais
Não sem assombro, Machado de Assis compreendeu que não se pode dar voz ao Segundo Reinado lançando mão do ardil nobiliárquico. Se a baronia burocrática estava ferida de morte pelo capitalismo nascente, este moralista, sem motivos para lamentar a transição, a registra com olhos sarcásticos, de ressaca.
Não há para ele um “bom passado” para retornar, tampouco quaisquer prospecções para o destino humano. Mira o futuro com a resistência do mulato que se evade da armadura social (ele sempre soube que o mundo é bem mais complexo do que supõe o seco reino das ideias).
Adverte, neste sentido, que um reformismo legal desprovido de correspondência fática jamais poderia “aviventar uma instituição, se esta não corresponder exatamente às condições morais e mentais da sociedade. Pode a instituição subsistir com as suas formas externas; mas a alma, essa não há criador que lha infunda”.
[Pequena ruminação sobre o incêndio da estátua de Borba Gato].
O Velho Leão do Jockey, Dr. Ermitânio Prado, mandou-me uma cartinha autografada num cartão amarfanhado com seu inefável dístico. Com sua letrinha redonda e caprichada, registrou:
Gatos de botas e bacamarte
“Gatinhos e gatões, boa tarde.
Isto tudo é pura diversão e perversão. Tradução e traição. Os idiotas acham que o Gato se vendeu como lebre no comércio das ideologias. Uma farsa histórica! ululam carbonários de falsa estola.
A crítica arremete feito cão lebréu sob o céu cravado de diamantes.
O Gato não foi Sardinha, entenderam basbaques? Nem Staden, nem Hyeronimus, um belo assado.
Erram em torno do próprio juízo e anacronizam com pirotecnia de fancarias.
Escriba! Eu acredito em gatos de botas e bacamartes. Somos todos sucupiras andando feito Jânios, passageiros nesta terra de cretinos. De nós contarão histórias, poucas memórias, mas todas fesceninas e algumas atrozes”.
Pobre homem atormentado. Quem liga quando se lixa feito lagartixa?
Estes dias têm sido de silêncio e recolhimento, de incertezas, de assombros atávicos. Penso por instantes que o mundo liquidou o século XX num rápido golpe viral. A última centúria resistia numa longa agonia, o velho século de novas tecnologias jazia insepulto. E agora? – muitos se perguntam – o que nos revelará o Vale do Silício? O mercado nos livrará da peste? O que será da velha humanidade? O que será de mim, pobre mortal e pecador?
Afundo em pensamentos melancólicos. Como é difícil saber o silêncio. De repente, vejo um belo tucano-de-bico-verde que pousa sobre um ramo da magnólia-amarela. Lança-me um olhar furtivo e logo alça voo. Perde-se no azul profundo dos céus de outono tropical.
Volto aos meus pensamentos ordinários. Lembro-me de Aldous Huxley diante das portas da percepção quando descobre, desconsolado, que é apenas um homem ordinário, sofisticado intelectualmente, mas incapaz de perceber a magnificência dos elementos tangidos pela transcendência.
Desperto dos meus devaneios com a visita de um pica-pau-de-topete-vermelho que agora se farta dos carpelos da linda árvore. Como não o notei antes? O que sabe da pandemia? O que sabe de mim?
Tenho ficado em casa, como tanta gente. Começo a lembrar dos mais velhos, daqueles que já partiram, dos que ainda resistem nesta Terra dos Homens. Logo me vem à mente o pobre Dr. Ermitânio Prado. Como estará nestes dias tristes, em que suas caminhadas pelas reentrâncias do conjunto Zarvos e galerias da São Luís se interromperam?
Monsieur de Fontgibu e o pudim de passas
Divirto-me quando me recordo o quanto odeia atividades físicas. Sai pelas ruas porque aprecia o sol de outono acariciando sua pele alva. Lembro-me de sua voz rouca e gutural:
– Escriba! A luz outonal não se tinge do mefitismo local, nem se impregna dos miasmas do Baixo-Augusta infestado de ratos, putas e miseráveis tragados pela droga!
De repente, o telefone toca. Não, não é o celular; é um aparelho empoeirado que dormita num canto qualquer da casa. Logo me vem à mente a figura do Velho Leão do Jocquey. Só pode ser ele. Quem mais poderia ser? Uma simples coincidência que me chame justamente agora que cogito falar-lhe?
Num átimo, me vem à memória a célebre passagem de Monsieur de Fontgibu e o pudim de passas, contada por um C. G. Jung obscuro, enterrado nalguma reentrância da estante. Ali se descreve a cena de um ancião que, atônito, tem um irresistível impulso de adentrar em uma confeitaria e se vê integrado numa estranha trama de coincidências significativas de eventos acausais. Sincronicidades.
Mefitismo registral e o enxurdeiro corporativo
Atendo a ligação. É ele. Abre-se um longo silêncio. Ouço-lhe a respiração ofegante. Dou partida à conversa, digo-lhe de modo prosaico o quanto andava preocupado com sua saúde, coisa e tal… Logo me interrompe. Volta ao mesmo assunto, sempre o mesmo tema aborrecido que o entretém. Com a voz rouca diz:
– Iacominvs Cartaphilus, o mesmo fenômeno que verificamos na sociedade, projeta-se no microcosmo registral. Narrativas decalcadas de narrativas. Simulacros fundados sobre simulacros. Torções significativas neste mundo caleidoscópico da pós-modernidade…
Tento distender a conversa. Falo dos pássaros no beiral, da magnólia toda oferecida, do outono que acobreia os céus… Que nada! Segue a palração monocórdica sem se importar com as contingências e o próprio interlocutor.
– A patuleia ulula de modo plangente e padece a dor da perda de suas cédulas. Clama às hierarquias do sétimo selo burocrático, mas recebe o desprezo olímpico da nova ordem argentária…
Parece tomar fôlego e logo dispara:
– Mamon joga dados com o universo em bolha de moleques arrivistas! Arrivistas, isto é o que são! O que fazer, escriba? Escasseiam homens e pululam jovens sem vontade e virtudes. Largam-se à ilusão de que podem pôr ordem ao caos baixando aplicativos em smartphones. Creem-se demiurgos de um admirável mundo novo registral… e, no entanto, são meros passageiros da barca onzeneira conduzida por uma entidade diábola!
– Dr. Ermitânio, tenha paciência, são jovens – replico. Trazem ao mundo o impulso da renovação, estão conscientes do tempo presente. Sei que a expressão vai reverberar em seu espírito. Qual o quê! Eu ainda quis argumentar em defesa da nouvelle vague registral, mas ele já parece não se importar. E segue com sua voz grave e arquejante:
– Escriba, o que é esse registro eletrônico? Será isto que se empluma feito a gralha ornada com as penas do pavão? Como se compõe tal sistema? Furtando as propriedades de diferentes objetos, de sobejo conhecidos, intentam um objeto ideal… Monstro de Horácio! Não se iluda, querido amigo, não se distraia! O sistema registral se dissolve e degenera numa mixórdia tecnológica, sem ordem, nem sistema, sem planejamento, nem objetivos. É cria de uma águia cega e adejante que se encrespa com os rebentos da ninhada alheia.
E sentencia:
– Criam ex nihilo um simulacro. Suas iniciativas lembram-me o Barão de Münchhausen. Afundando no pântano, o velho crava as esporas no cavalo e, puxando-se energicamente pelos próprios cabelos, põe-se a salvo – a si e a seu cavalo.
Com isso o velho Leão do Jocquey encerra o telefonema. Pobre homem atormentado. Que sobreviva a todos nós como expressão de inconformismo, de resistência às obviedades e com o seu saudável ceticismo.
História sem fim
O final de uma trajetória acidentada, porém exitosa, vi-me diante deste opúsculo que se fechava feito uma obra inacabada. Pensei que isto não poderia ficar assim. A última anotação se perdia nas sombras de uma cidade assustada e refém de um vírus.
O que posso averbar antes de lançar este opúsculo ao mar como mensagem numa garrafa?
Digo-lhes que, inesperadamente, o ONR se fez concreto pelo Provimento CNJ 89/2019; que surgiu um ato normativo dispondo sobre o Agente Regulador, tal e como previsto no § 4º do art. 76 da Lei 13.465/2017 (Provimento 109/2020); que se abriu um plexo de interesses (squads holocrásticos?) com base em atos normativos do CNJ; que o Manual Operacional do SINTER voltou à estaca zero para sua adequação à legislação superveniente (como aliás sempre defendemos). Enfim, que foram vencidas as várias batalhas travadas na tramitação e votação da MP 996/2020 que consagrará o custeio do ONR[1].
Devo lhes dizer que não pude deixar de experimentar uma sensação de dever cumprido. As propostas que foram lançadas na campanha à presidência do IRIB foram, todas elas, convertidas em realidade.
Mas esta história não tem fim, apenas recomeça. Demos um passo essencial para a criação de um ecossistema favorável para que as reformas do Registro de Imóveis possam medrar com segurança. A jornada continua e a seara reclama braços fortes, vontade e inteligência de homens e mulheres devotados à obra da regeneração do sistema registral brasileiro.
Amigos, eu passarei, mas as obras humanas ficam gravadas nos fundamentos do mundo. Tenho consciência de que o nosso trabalho não foi em vão.
Boa sorte!
São Paulo, 31 de dezembro de 2020. SÉRGIO JACOMINO Presidente.
Nota do editor. Esta mensagem acha-se no final de um relatório obscuro que dormita nos arquivos do IRIB. Trasladei o texto para cá para registro pessoal. Para acessar o documento no site do IRIB, pulse aqui. Para um site independente, aqui.
Dr. Ermitânio Prado, o conhecido causídico da Velha São Luís, nosso Leão do Jockey, estava excitado na sexta-feira passada. Fica assim toda vez que abre “as portas ao báratro”, como diz ao se conectar à internet…
– “Servus Cartaphilus!” – sempre me chama assim quando está aborrecido – “O Sr. pensa que nos pântanos impera somente o silêncio mortiço das conhecidas emanações miasmáticas? Acredita que as criaturas do palude temem a Verdade, reconhecem a Beleza e exercitam a virtude da Prudência? Escriba, meu pobre e amado amanuense! O Sr. ainda crê que o enxurdeiro registral, feito de onzeneiros esquivos e sinistros, não produz seus frutos?”. Faz uma longa pausa. Suspira, cofia as cãs. Parece desbastar cuidadosamente a gema expressiva para torná-la exata: “O marnel acolhe criaturas que parem pelo reto ideias modernas e colhem na cornucópia degenerada os frutos vis e viciosos”.
Confesso que nunca compreendo muito bem o Velho Leão. Sempre enfermiço, com a saúde debilitada, é um ser humano atormentado e irritadiço. Abusa de metáforas e nunca explicita o objeto de seus rancores, nem responde a perguntas objetivas. Decifrar sua verba é tarefa árdua.
– O que pretende, o Dr. Ermitânio Prado? Não obtenho respostas. Parafraseando Heráclito, o velho Pitoniso do Baixo-Augusta “não mostra, nem esconde; dá sinais”.
Eu sempre apreendo seus sinais com reverência e respeito profundo. Não é mais inteligente que qualquer de nós; não é mais sagaz, nem argucioso. Ele é o que é.
Estive na quinta passada, como sempre faço à tardinha, logo depois do expediente, no apartamento do Velho, o excêntrico advogado paulistano, Dr. Ermitânio Prado.
Encontrei-o de bom humor. Ria um riso contagiante, até rebentar as ilhargas, como diz. Fica neste estado de excitação sempre que se depara com alguma expressão de “pseudodoxia galhofa”. As expressões são próprias do velho Leão do Jocquey.
Diz que um pobre diabo (não arrisquei identificar o nome do sujeito) o questionara pela manhã a respeito de diatribes que dividem lobos, raposas e outros velhacazes refinadíssimos.
Reproduzo aqui o final da conversa, sem que pudesse até agora identificar o sujeito:
– Dr. Ermitânio, já não estou entendendo nada!
– Meu jovem, isto já é um bom começo. Nada é sempre melhor do que tudo. A ignorância apofásica é a calha de todo conhecimento verdadeiro. Vamos lá! Esvazie-se! Inicie sua jornada pelos princípios. Com prudência verá que no princípio era a verba.
– Como assim, Dr. EP? Verba tabelioa?
– Tabelioa e registral.
E ria, “até rebentar as ilhargas”, o velho Ermitânio Prado.