Caro Doutor Ermitânio Prado, como tem passado? Soube que, desde as leituras de Carl Gustav Jung, reiteradamente sonha com o coração se divorciando da consciência. Interessante alusão. No entanto, preocupo-me que haja desenvolvido crises de gota como projeção desta luta racional. Ocorre-me dizer-lhe que se tranquilize, pois sempre haverá um véu suficientemente espesso para justificar o pecado. Ora, em tempos de dessacralização burguesa, meu amigo, o autoflagelo é já demasiado.
Folgo em saber que retoma as suas atividades, apesar da gota (ou, quem sabe, por conta desta – pouco importa).
O que importa, de fato, é a criação poética – a sua e a deste seu antepassado espiritual – cujas personalidades críticas, no sentido mais eversivo do termo, se souberam transmutar por aí, quem sabe, numa Rua do Ouvidor.
Imagino-os caminhando, acordes com que se devam associar na unidade do mesmo gesto o crer e o viver; e debatendo se haveria uma verdade última a que se poderiam reduzir as convenções, os hábitos e o obscuro destino do homem.
Destino obscuro, porém indistinto em miséria. A costureira Dona Plácida, filha natural de um sacristão da Sé e de uma mulher que fazia doces para fora, expressa o vislumbre machadiano deste mundo sem futuro para o escravo emancipado, nada restando de solene da proposição de Nabuco:
“E de crer que Dona Plácida não falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias:
— Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã naturalmente lhe responderiam:
— Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia.
Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, p.56. Edição da Fundação Biblioteca Nacional. Departamento Nacional do Livro: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000167.pdf
A liberdade propalada não era apenas fruto de ingenuidade idealista, mas uma retórica cruel (atentemo-nos às sutilezas do texto). Por certo, algo irônico, certa vez justificou até mesmo Cotrim no trato com os escravos: “não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais”. (Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, p.83. Fundação Biblioteca Nacional. Departamento Nacional do Livro;http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000167.pdf)
Efeito de relações sociais
Não sem assombro, Machado de Assis compreendeu que não se pode dar voz ao Segundo Reinado lançando mão do ardil nobiliárquico. Se a baronia burocrática estava ferida de morte pelo capitalismo nascente, este moralista, sem motivos para lamentar a transição, a registra com olhos sarcásticos, de ressaca.
Não há para ele um “bom passado” para retornar, tampouco quaisquer prospecções para o destino humano. Mira o futuro com a resistência do mulato que se evade da armadura social (ele sempre soube que o mundo é bem mais complexo do que supõe o seco reino das ideias).
Adverte, neste sentido, que um reformismo legal desprovido de correspondência fática jamais poderia “aviventar uma instituição, se esta não corresponder exatamente às condições morais e mentais da sociedade. Pode a instituição subsistir com as suas formas externas; mas a alma, essa não há criador que lha infunda”.
Machado de Assis, Notas Semanais (1878), p.29;http://zaapnet.com/conteudo/pesquisa/literatura/autores/machado_de_assis/notas_semanais.pdf
À alma sincrônica, meu caro amigo!
Um abraço e o desejo de sua mais pronta recuperação,
Epifânia Neves, 14/1/2010.