Renúncia ao direito de propriedade

Madalena Teixeira

“A demissão de um direito de propriedade imobiliária de que se é titular”

A renúncia ao direito de propriedade sobre imóveis não é questão que se encontre resolvida, por inteiro, no direito positivo português ou que receba uma orientação uniforme por parte da doutrina nacional.

Estabelecida a distinção entre abandono e renúncia abdicativa, considerando-se, brevitatis causa, que o abandono de imóveis se analisa, em regra, num comportamento negativo do proprietário, que se desliga ou se desinteressa da coisa por completo e para sempre, com a intenção de abdicar do seu direito (negócio jurídico de atuação), sem o atribuir a outrem, e que a renúncia abdicativa comporta uma declaração de vontade proprio sensu, visando, como efeito negocial imediato, a extinção do direito na esfera jurídica do seu titular, sobra, em comum, a questão de saber se estas causas de extinção dos direitos reais se aplicam à propriedade imobiliária.

Conquanto se encontrem disposições legais dispersas, no Código Civil português, a consentir a renúncia liberatória, vale dizer, a extinção do direito real com um intuito de libertação da obrigação propter rem, e não custe a generalização do seu regime sempre que o proprietário vise libertar-se do peso das obrigações que lhe são impostas por via da titularidade do direito, permanece o problema de saber se essa faculdade de renúncia ao poder que se tem sobre a coisa imóvel também existe, não quando se pretenda a exoneração de uma determinada obrigação real conexa com o direito de propriedade, mas quando, simplesmente, se queira o despojamento ou a pura abdicação, sem destinatário, do direito de que se é titular.

A este propósito, a doutrina civilística continua a repartir-se entre a afirmação da livre renunciabilidade do domínio sobre imóveis como faculdade que cabe no conteúdo da propriedade, do qual se extrai o direito de dispor do direito (art. 1305.º do CC) e, portanto, toda e qualquer forma negocial de perda relativa ou absoluta do direito, e o entendimento de que tal faculdade não encontra respaldo no plano do direito constituído [1].

Assim, em abono da possibilidade de renúncia ao direito de propriedade sobre prédios (ou do seu abandono), tem-se aduzido o princípio da autonomia privada, bem como o argumento de que a propriedade não é um encargo, mas um direito subjetivo, pelo que, sendo a renúncia ou o abandono a última defesa do particular perante o avolumar das exigências legais, só o proprietário deve ser juiz da conveniência ou inconveniência da manutenção dessa situação [2].

Já para outro setor da doutrina pesam outras inferências interpretativas, que sugerem precisamente a exclusão de um princípio geral de renunciabilidade dos direitos reais, como são a que se retiram do facto de nenhuma disposição do Código Civil português, para além da hipótese especial configurada no art. 1397.º (abandono de águas originariamente públicas), se referir ao abandono ou à renúncia abdicativa como causa de extinção do direito de propriedade (ou da generalidade dos direitos reais), ou como são as que resultam da opção do legislador pela previsão, expressa e específica, da renúncia abdicativa como causa de extinção de certos direitos reais menores (por exemplo, do usufruto e da servidão) no âmbito da regulamentação própria de tais direitos reais [3].

Outros argumentos, fundados no direito civil positivo e que servem de alicerce à exclusão da extinção do direito de propriedade sobre imóveis por renúncia abdicativa ou pela via do abandono, poderão resumir-se nos seguintes termos:

– A consagração da figura jurídica da renúncia liberatória não favorece a tese da livre renunciabilidade do direito de propriedade sobre imóveis, porquanto aquela se encontra ligada ao regime das obrigações ob rem e, mesmo quando implica a perda do direito do renunciante, a coisa não passa a ser nullius, antes é adquirida pelo destinatário da renúncia;

– A renúncia abdicativa e o abandono tornam as coisas nullius, enquanto a coisa não for adquirida pelo Estado ou por terceiro, por usucapião, a menos que se aceite a tese da reversão automática a favor do Estado;

– A previsão legal do abandono limitada às coisas móveis patenteia uma intenção contrária à aceitação da renúncia abdicativa do direito de propriedade sobre imóveis;

– A renúncia abdicativa compromete a utilidade da coisa e, dessa forma, a função social da propriedade [4].

Entretanto, o direito público segue o seu curso conformador da propriedade imobiliária, encontrando-se, no art. 24.º da Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo (Lei n.º 31/2014, de 30 de maio), uma referência expressa à renúncia como causa de ingresso dos imóveis na titularidade pública.

É, pois, neste quadro de considerações que a questão da renúncia abdicativa do direito de propriedade sobre coisa imóvel vem sendo analisada entre nós, pelo que, não se oferecendo ao aplicador do direito uma communis opinio doctorum capaz de o orientar num único sentido, sobra-lhe a sabedoria prática e a capacidade de raciocinar e de encontrar a exata solução, a partir dos subsídios legais e doutrinários existentes.

Notas

[1] Partindo do princípio comum de que é o interesse privado que primariamente justifica o reconhecimento da propriedade privada, o diferendo doutrinário surge “apaziguado” pela admissibilidade da renúncia abdicativa do direito de propriedade sobre coisa imóvel no plano do direito a constituir. Porém, no plano do direito constituído, a discussão mantém-se.

[2] Aderindo à tese da livre renunciabilidade, entre outros, Oliveira Ascensão, Direito Civil. Reais, 5.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, pp.406/407, e Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho, A Renúncia Abdicativa no Direito Civil, Studia Iuridica n.º 8, BFDUC, Coimbra Editora, Coimbra, p. 17.

[3] São estas as razões fundamentais alinhadas por Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, Coimbra, 1997, pp. 371/378.

[4] Vd. Luís A. Carvalho Fernandes, “Da renúncia dos direitos reais”, O DIREITO, Ano 138.º, 2006, III, Almedina, Coimbra, pp. 477 e ss.

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Madalena Teixeira é Conservadora da Conservatória dos Registos Predial e Comercial de Loulé (Algarve), integra o Conselho Consultivo, seções de registos predial, comercial e de bens móveis do Instituto dos Registos e do Notariado de Portugal. 

Retificação de registro e usucapião

Boundaries

Hoje indicamos uma decisão do STJ, publicada no DJe de 10/3, que trata de uma questão que sempre atormenta os registradores imobiliários brasileiros quando se veem diante de um pedido de retificação de registro em que se pleiteia a “adequação do registro à realidade extra-tabular” com aumento de área.

Trata-se do REsp 1.228.288-RS assim ementado:

Retificação de registro – área – aumento – aquisição da propriedade. Usucapião. Recurso especial. Retificação de registro de imóvel. Art. 213 da lei n. 6.015/73. Pretensão de aquisição de propriedade. Impossibilidade. 1. A Lei de Registros Públicos busca dar plena validade, eficácia e segurança aos registros, visando, sobretudo, proteger o interesse dos legítimos proprietários e de terceiros. 2. Não serve o procedimento de retificação constante da Lei de Registros Públicos como forma de aquisição ou aumento de propriedade imobiliária, pois destinado apenas à correção dos assentos existentes no registro de imóveis, considerando-se a situação fática do bem. 3. Recurso especial desprovido. @ REsp 1.228.288-RS, j. 3/3/2016, DJe 10/3/2016., rel. min.: João Otávio Noronha. Legislação: CC art. 1.247; LRP art. 213.

É bem certo que, neste caso concreto, o próprio interessado alegou que houve apropriação de área não titulada. A propósito, o relator asseverou:

“A área do imóvel somente poderá ser corrigida se houver descompasso em relação à aquela que constar no registro. A retificação de área não diz respeito à pretensão de incorporação de nova área de modo que sejam ultrapassados os limites do imóvel originário. Não pode servir o procedimento de retificação constante da Lei de Registros Públicos como forma de aquisição ou aumento de propriedade imobiliária, pois destinado apenas à correção dos assentos existentes no registro de imóveis, considerando-se a situação fática do bem”.

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Penhora de imóveis ou de direitos ou o quê?

Na edição de 17.2.2016 deste periódico, discutimos um tema muito interessante e que guarda enorme interesse para os registradores brasileiros.

Não raro, defrontamo-nos com decisões jurisdicionais que prima facie soam lógicas, mas, vistas com cuidado, especialmente pela perspectiva dos direitos materiais, representam absurdezas difíceis de reparar na sucessão natural do iter dominial.

Enfrentamos os temas derivados de recente decisão, proferida pela 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em que se determinou a penhora de uma oficina localizada em parte de imóvel residencial do executado, objeto de uma só matrícula do registro predial e com numeração predial distinta.

Muitos emprestaram sua opinião.

Nesta ocasião, tenho o gosto de reproduzir o pensamento da registradora portuguesa, querida colega que goza de enorme prestígio, reconhecida como autoridade nos temas de direitos registral.

Divulgo o texto com entretítulos por mim interpolados (com a vênia da colega). SJ

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Penhora de parte de prédio e da sua registrabilidade
Madalena Teixeira*

A questão da penhora de parte de prédio e da sua registrabilidade não constituirá preocupação privativa dos colegas brasileiros, porquanto, também entre nós, tem surgido a dificuldade em lidar com a apreensão de parte da coisa, que é objeto do direito de propriedade do executado, e com a sua tradução tabular. Continuar lendo

Alienação fiduciária em debate

AF

Mauro Antônio Rocha é conhecido de todos os que se devotam ao estudo do direito real imobiliário. Advogado graduado pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-graduado em Direito Imobiliário e Direito Registral e Notarial é o Coordenador Jurídico de Contratos Imobiliários da Caixa Econômica Federal.

Mauro Rocha alia sua boa formação teórica com uma valiosa prática que decorre de sua atividade de coordenação jurídica dos contratos imobiliários da Caixa Econômica Federal. Como advogado, vivencia, na prática, os problemas que vão surgindo no mundo do crédito imobiliário. Vivemos uma etapa importante de concretização plena da Lei 9.514/1997 no enfrentamento dos problemas que surgem com a execução extrajudicial do crédito inadimplido.

Mauro Rocha no oferece um decálogo de conclusões que o Observatório do Registro submete à discussão dos leitores deste blogue.

Dê sua opinião. Participe das discussões. As contribuições serão levadas a debate nas sessões que se realizam na Sala Elvino Silva Filho. Continuar lendo

Café com jurisprudência – 9º ciclo debate aspectos de direitos civil, registral e notarial

EPM abre inscrições para o 9º Ciclo de debates “Café com Jurisprudência”

EPM – Café com jurisprudência

Até o dia 23 de setembro, estão abertas as inscrições para o 9º Ciclo de debates “Café com Jurisprudência” da EPM, sob a coordenação dos desembargadores Ricardo Henry Marques Dip e Luís Paulo Aliende Ribeiro e da juíza Tânia Mara Ahualli.

As atividades acontecerão de 12 de setembro a 21 de novembro (às sextas-feiras), das 10 às 12 horas, no auditório do 1º andar do prédio da EPM (Rua da Consolação, 1.483).

As inscrições são gratuitas e abertas a magistrados, integrantes do Ministério Público, registradores, notários, advogados e funcionários do Poder Judiciário, Justiça Militar e serventias extrajudiciais.

São oferecidas 50 vagas (presenciais).

Será considerado aprovado o aluno que registrar frequência mínima de 75%. Haverá emissão de certificado de conclusão para os aprovados.

Inscrições: os interessados deverão preencher a ficha de inscrição diretamente no site da EPM. Caso o número de inscritos exceda o número de vagas, será divulgada lista dos selecionados, obedecendo-se a ordem cronológica de inscrição. Caso contrário, todos serão selecionados.

Após efetuada a matrícula, oportunamente, o aluno receberá mensagem de confirmação de matrícula no e-mail informado na ficha de inscrição, contendo login e senha de acesso à seção “Sala de Alunos” do site da EPM, onde poderá obter informações pertinentes ao curso.

Programa: 

Dia 26/9

União Estável – Sucessões, Divórcio e Partilha de Bens. Aspectos notariais e registrais. Palestrante: desembargador Euclides Benedito de Oliveira.

Dia 17/10

Alienação Fiduciária – Aspectos controversos (constituição de dupla garantia real, incorporação imobiliária e parcelamentos do solo). Palestrante: juiz Josué Modesto Passos

Dia 31/10

CND do INSS e Receita Federal – Alienação e oneração de bens imóveis – dispensa nos atos extrajudiciais. Palestrante: desembargador José Luiz Germano.

Dia 28/11

A nova questão de gênero e o Registo Público. Palestrante – professora Regina Beatriz Tavares da Silva.

Dia 5/12

Doação: Aspectos atuais (doação conjuntiva, entre cônjuges e reversão). Palestrante: desembargadora Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade Nery.