SERP – Andaimaria de isopor e plástico

Ao depor o imperador Rômulo Augusto, em 476, Odoacro pôs fim ao Império Romano do Ocidente e se tornou o primeiro dos reis bárbaros de Roma.

Desci a Consolação na manhã fria desta primavera atípica de São Paulo. Queria visitar o Dr. Ermitânio Prado logo cedo e com ele tomar um bom café da manhã.

Enquanto descia, pensava na família do meu amigo. Não sei de seus pais, nem de seus filhos, já nem sei de outros amigos que porventura possa ter.

“Os filhos foram à forra”, diz, “soltos num mundo feito de estupidez e picho nos ombros e nos monumentos”.

Penso sempre na biografia deste homem que o tempo curva num delicado descenso honroso e gentil. O Velho jamais revela algo de si mesmo, de sua estirpe, de sua grei. Sei que é descendente de Eduardo Prado, de quem certamente herdou o talento para a diatribe. Um “homem contra um regime”, como alguém já escreveu a respeito de um grande brasileiro.

Vinha entretido com as mesmas ideias, refletindo sobre a conveniência e oportunidade de escrever uma pequena obra crítica sobre o “moderno” SERP, ora em fase de regulamentação. Causa-me perplexidade o fato de que se possa destruir uma extraordinária obra do gênio humano – como é o sistema notarial e registral brasileiro –, substituindo-a por uma “disforme andaimaria de isopor e plástico”. Lembrei-me de ter dito por aí que seus arautos se pavoneiam de ter ornado a vetusta LRP com contas de acrílico, cerzidas na marmórea tessitura normativa de um monumento erigido ainda no século XIX. “Flores de plásticos numa selva tropical”, concluí.

De corvo pennas pavonis inveniente… Diz rindo, sempre mordaz, o Velho.

Disforme andaimaria de isopor e plástico. É assim que o Dr. Ermitânio se refere às modernosas reformas encetadas pelo “gênio liberto de uma garrafa maldita”, criticando a deslatinização do notariado e do registro público brasileiros, reverberando as acertadas nótulas críticas que colheu do nosso Paysan de l’Andorre a propósito do tempo presente.

Acheguei-me e o aroma do café escapava pelas frestas das janelas que dão para a varanda espaçosa. Meus pensamentos se esvaíram imediatamente e uma sensação prazerosa invadiu-me a alma. “Não é o elixir de um Ibicaba, Escriba, mas confortemo-nos com um bom espresso”, foi logo dizendo e dispondo os acepipes especialmente preparados para o nosso encontro de todas as quintas. A conversa reata o fio de meus pensamentos e de tantos outros colóquios travados entre nós. Confidencio-lhe a intenção de escrever um livro sobre a Lei 14.382/2022, suas virtudes e defeitos.

– Escriba, veja bem. Fomos capazes de destruir, numa patranhada revolucionária, a história ininterrupta de nove séculos, pondo abaixo a única antiguidade americana[1]. Estas reformas registrais serão tão firmes quanto a perna fina e a bunda seca do Marechal…

Rimos de rebentar as ilhargas, o Velho e eu.

– Sim, Dr. Ermitânio, compreendo a analogia com a patuscada republicana. De igual maneira, todos nós assistimos bestializados à apressurada fundação de entidade corporativa… Ele me interrompe:

– …fruto acidental de coito intercrural! Era preciso vocalizar o mantra economicista da nouvelle vague registral. O ente espectral tomou forma na Internet antes de sua consagração num livro de Registro Público… Nihil est in intellectu quod non prius in sensu, atalha o velho com seu risinho mofador.

Confesso que hesito diante do argumento de que, afinal, nada se poderia fazer, senão aderir servilmente à onda avassaladora que partia do ventre da Nomenklatura financista de turno. A simples revogação da LRP seria atitude mais honesta em face da adoção despudorada das novas matrizes que orientaram confessadamente a reforma.

– Escriba, pense bem. Sempre haverá um Augústulo que se apequena diante de um Odoacro. Aquele se prestará à perfeita representação da inevitabilidade do destino de homens fúteis, refestelados pela prebenda generosa. Já o hérulo acabará por vencer e ser conduzido por uma cultura a que já não pode senão assimilar. Assim é o declínio das grandes instituições; podem soçobrar em face da ignorância ativa de uns poucos e o opróbrio de tantos, como na tragédia, entretanto, Roma æterna est!

Apercebo-me quando o Velho se apoquenta. Digo-lhe que dos escombros desta reforma aziaga haverá de brotar afinal uma flor…

– C´est la fleur du mal! – vocifera. A reforma é fruto de uma figueira estéril. Não torna a água à fonte, nem o perfume ao frasco…

Desvio o rumo da conversa. Falo do Tio Jacaré, dou notícias do front, falo dos concursos, recursos e de outras barbaridades. E demos muitas risadas inspirados por um bom digestivo.


Nota

[1] A passagem era deliciosamente mordaz e eu lhe perguntei a fonte. Ele não hesitou. Trata-se de célebre passagem de Capistrano de Abreu que se acha à p. 341 do seu Eduardo Prado in Ensaios e Estudos (Crítica e História) – 1ª série. Rio de Janeiro: Livraria Briguiet, 1931.

Gatos de botas e bacamartes

[Pequena ruminação sobre o incêndio da estátua de Borba Gato].

O Velho Leão do Jockey, Dr. Ermitânio Prado, mandou-me uma cartinha autografada num cartão amarfanhado com seu inefável dístico. Com sua letrinha redonda e caprichada, registrou:

Gatos de botas e bacamarte

“Gatinhos e gatões, boa tarde.

Isto tudo é pura diversão e perversão. Tradução e traição. Os idiotas acham que o Gato se vendeu como lebre no comércio das ideologias. Uma farsa histórica! ululam carbonários de falsa estola.

A crítica arremete feito cão lebréu sob o céu cravado de diamantes.

O Gato não foi Sardinha, entenderam basbaques? Nem Staden, nem Hyeronimus, um belo assado.

Erram em torno do próprio juízo e anacronizam com pirotecnia de fancarias.

Escriba! Eu acredito em gatos de botas e bacamartes. Somos todos sucupiras andando feito Jânios, passageiros nesta terra de cretinos. De nós contarão histórias, poucas memórias, mas todas fesceninas e algumas atrozes”.

Pobre homem atormentado. Quem liga quando se lixa feito lagartixa?

Ermitanices e o fim da gestão

Silêncio e recolhimento

Estes dias têm sido de silêncio e recolhimento, de incertezas, de assombros atávicos. Penso por instantes que o mundo liquidou o século XX num rápido golpe viral. A última centúria resistia numa longa agonia, o velho século de novas tecnologias jazia insepulto. E agora? – muitos se perguntam – o que nos revelará o Vale do Silício? O mercado nos livrará da peste? O que será da velha humanidade? O que será de mim, pobre mortal e pecador?

Afundo em pensamentos melancólicos. Como é difícil saber o silêncio. De repente, vejo um belo tucano-de-bico-verde que pousa sobre um ramo da magnólia-amarela. Lança-me um olhar furtivo e logo alça voo. Perde-se no azul profundo dos céus de outono tropical.

Volto aos meus pensamentos ordinários. Lembro-me de Aldous Huxley diante das portas da percepção quando descobre, desconsolado, que é apenas um homem ordinário, sofisticado intelectualmente, mas incapaz de perceber a magnificência dos elementos tangidos pela transcendência.

Desperto dos meus devaneios com a visita de um pica-pau-de-topete-vermelho que agora se farta dos carpelos da linda árvore. Como não o notei antes? O que sabe da pandemia? O que sabe de mim?

Tenho ficado em casa, como tanta gente. Começo a lembrar dos mais velhos, daqueles que já partiram, dos que ainda resistem nesta Terra dos Homens. Logo me vem à mente o pobre Dr. Ermitânio Prado. Como estará nestes dias tristes, em que suas caminhadas pelas reentrâncias do conjunto Zarvos e galerias da São Luís se interromperam?

Monsieur de Fontgibu e o pudim de passas

Divirto-me quando me recordo o quanto odeia atividades físicas. Sai pelas ruas porque aprecia o sol de outono acariciando sua pele alva. Lembro-me de sua voz rouca e gutural:

– Escriba! A luz outonal não se tinge do mefitismo local, nem se impregna dos miasmas do Baixo-Augusta infestado de ratos, putas e miseráveis tragados pela droga!

De repente, o telefone toca. Não, não é o celular; é um aparelho empoeirado que dormita num canto qualquer da casa. Logo me vem à mente a figura do Velho Leão do Jocquey. Só pode ser ele. Quem mais poderia ser? Uma simples coincidência que me chame justamente agora que cogito falar-lhe?

Num átimo, me vem à memória a célebre passagem de Monsieur de Fontgibu e o pudim de passas, contada por um C. G. Jung obscuro, enterrado nalguma reentrância da estante. Ali se descreve a cena de um ancião que, atônito, tem um irresistível impulso de adentrar em uma confeitaria e se vê integrado numa estranha trama de coincidências significativas de eventos acausais. Sincronicidades.

Mefitismo registral e o enxurdeiro corporativo

Atendo a ligação. É ele. Abre-se um longo silêncio. Ouço-lhe a respiração ofegante. Dou partida à conversa, digo-lhe de modo prosaico o quanto andava preocupado com sua saúde, coisa e tal… Logo me interrompe. Volta ao mesmo assunto, sempre o mesmo tema aborrecido que o entretém. Com a voz rouca diz:

– Iacominvs Cartaphilus, o mesmo fenômeno que verificamos na sociedade, projeta-se no microcosmo registral. Narrativas decalcadas de narrativas. Simulacros fundados sobre simulacros. Torções significativas neste mundo caleidoscópico da pós-modernidade…

Tento distender a conversa. Falo dos pássaros no beiral, da magnólia toda oferecida, do outono que acobreia os céus… Que nada! Segue a palração monocórdica sem se importar com as contingências e o próprio interlocutor.

– A patuleia ulula de modo plangente e padece a dor da perda de suas cédulas. Clama às hierarquias do sétimo selo burocrático, mas recebe o desprezo olímpico da nova ordem argentária…

Parece tomar fôlego e logo dispara:

– Mamon joga dados com o universo em bolha de moleques arrivistas! Arrivistas, isto é o que são! O que fazer, escriba? Escasseiam homens e pululam jovens sem vontade e virtudes. Largam-se à ilusão de que podem pôr ordem ao caos baixando aplicativos em smartphones. Creem-se demiurgos de um admirável mundo novo registral… e, no entanto, são meros passageiros da barca onzeneira conduzida por uma entidade diábola!

– Dr. Ermitânio, tenha paciência, são jovens – replico. Trazem ao mundo o impulso da renovação, estão conscientes do tempo presente. Sei que a expressão vai reverberar em seu espírito. Qual o quê! Eu ainda quis argumentar em defesa da nouvelle vague  registral, mas ele já parece não se importar. E segue com sua voz grave e arquejante:

– Escriba, o que é esse registro eletrônico? Será isto que se empluma feito a gralha ornada com as penas do pavão? Como se compõe tal sistema? Furtando as propriedades de diferentes objetos, de sobejo conhecidos, intentam um objeto ideal… Monstro de Horácio! Não se iluda, querido amigo, não se distraia! O sistema registral se dissolve e degenera numa mixórdia tecnológica, sem ordem, nem sistema, sem planejamento, nem objetivos. É cria de uma águia cega e adejante que se encrespa com os rebentos da ninhada alheia.

E sentencia:

– Criam ex nihilo um simulacro. Suas iniciativas lembram-me o Barão de Münchhausen. Afundando no pântano, o velho crava as esporas no cavalo e, puxando-se energicamente pelos próprios cabelos, põe-se a salvo – a si e a seu cavalo.

Com isso o velho Leão do Jocquey encerra o telefonema. Pobre homem atormentado. Que sobreviva a todos nós como expressão de inconformismo, de resistência às obviedades e com o seu saudável ceticismo.

História sem fim

O final de uma trajetória acidentada, porém exitosa, vi-me diante deste opúsculo que se fechava feito uma obra inacabada. Pensei que isto não poderia ficar assim. A última anotação se perdia nas sombras de uma cidade assustada e refém de um vírus.

O que posso averbar antes de lançar este opúsculo ao mar como mensagem numa garrafa?

Digo-lhes que, inesperadamente, o ONR se fez concreto pelo Provimento CNJ 89/2019; que surgiu um ato normativo dispondo sobre o Agente Regulador, tal e como previsto no § 4º do art. 76 da Lei 13.465/2017 (Provimento 109/2020); que se abriu um plexo de interesses (squads holocrásticos?) com base em atos normativos do CNJ; que o Manual Operacional do SINTER voltou à estaca zero para sua adequação à legislação superveniente (como aliás sempre defendemos). Enfim, que foram vencidas as várias batalhas travadas na tramitação e votação da MP 996/2020 que consagrará o custeio do ONR[1].

Devo lhes dizer que não pude deixar de experimentar uma sensação de dever cumprido. As propostas que foram lançadas na campanha à presidência do IRIB foram, todas elas, convertidas em realidade.

Mas esta história não tem fim, apenas recomeça. Demos um passo essencial para a criação de um ecossistema favorável para que as reformas do Registro de Imóveis possam medrar com segurança. A jornada continua e a seara reclama braços fortes, vontade e inteligência de homens e mulheres devotados à obra da regeneração do sistema registral brasileiro.

Amigos, eu passarei, mas as obras humanas ficam gravadas nos fundamentos do mundo. Tenho consciência de que o nosso trabalho não foi em vão.

Boa sorte!

São Paulo, 31 de dezembro de 2020.
SÉRGIO JACOMINO
Presidente.

Nota do editor. Esta mensagem acha-se no final de um relatório obscuro que dormita nos arquivos do IRIB. Trasladei o texto para cá para registro pessoal. Para acessar o documento no site do IRIB, pulse aqui. Para um site independente, aqui.


[1] NE. A MP 996/2020 foi convertida na Lei 14.118/2021 que previu o custeio do ONR nos §§ 9º e 10 inseridos no art. 76 da Lei 13.465/2017.