A vida secreta dos livros de registro

Quando ingressei na vida cartorária, há mais de meio século, conheci um velho escrevente que era chamado de Chico Cachoeira. Homem singular, observador, dono de insuperável senso de humor, tiradas hilárias, às vezes misteriosas, sempre dava bons conselhos embalados por sua enérgica voz de tenor. Diziam que o apelido “cachoeira” se devia ao fato de ele ter nascido ao lado de uma grande queda d’água. Em sua casa, todos gritavam uns com os outros e até mesmo com estranhos.

Cachoeira me recebeu de braços abertos no primeiro dia de trabalho, e o fez lançando uma advertência gravosa e sonora que calou fundo no meu espírito:

– Alemão (todos recebiam um novo nome na iniciação cartorária), ouça-me muito bem: O diabo mora nos detalhes. Observe: um mundo paralelo ocorre bem diante dos nossos olhos e raramente o enxergamos.

Aquilo me parecia estranho. O fato é que me tornei amigo do Chicão.

Às vezes, almoçávamos juntos; outras, tomávamos o lanche da tarde, e a conversa sempre fluía rica e diversificada. Ele era um homem culto, expressava uma espiritualidade singular. Um dia ele me disse:

– Preste atenção, Alemão. Os livros de registro são entes vivos. Parecem repousar num sono impassível, mas o tempo dos livros não é o tempo dos homens. Fosse dado ouvir o que eles sussurram na calada da noite, ficaríamos maravilhados – ou aterrorizados. Digo-lhe: é um canto misterioso, melancólico, profundo – como o eco que reverbera nas paredes escarpadas de velhas montanhas. Os mais plangentes são os livros de inscrição hipotecária. Sua melodia triste e dolorosa faz estremecer a alma…

Fiquei pensando naquilo tudo por longas semanas. Não queria mais ficar a sós na sala onde os volumes ficavam empilhados na estante. Temia ouvir a sinfonia inacabada dos livros insones e melancólicos.

Certa feita, emiti uma certidão incompleta. Esquecera-me de relatar um usufruto inscrito no Livro 4. Fiz apressadamente a certidão, de modo desatento, extraí os dados diretamente do extrato da transcrição, sem antes consultar o Livro 3 correspondente, como seria de praxe e de rigor. Foi uma desatenção. Quando percebi que firmara aquela certidão de propriedade, dando fé de que o bem se achava livre e desembaraçado de ônus e alienações, estremeci. Soube que a certidão seria usada dias depois para a lavratura de uma escritura pública de compra e venda do imóvel da Rua Marechal Deodoro, velho casarão que resistia impávido à onda de verticalização da cidade.

A usufrutuária era uma viúva que morava no velho sobrado. O marido, antigo comerciante de carvão, o construíra no começo do século, mas partira havia muitos anos. Seus filhos e netos raramente vinham visitá-la. A velha resistia à passagem do tempo. Todas as manhãs recolhia o orvalho que cobria as delicadas pétalas de rosas e artemísias, alimentava os pássaros e regava o canteiro de erva-de-são-joão, verbena e lavanda.

Naquela noite não pude dormir. Meu coração palpitava. Mal esperava o dia despontar para ir ter com o escrevente de Notas que lavraria a tal escritura definitiva.

Na manhã seguinte, estava eu postado à porta do tabelionato, à espera do Zé Gatão, escrevente conhecido por suas manhas e artimanhas. Porém, mal adentrei a saleta abafada, Zé veio falando com aquele seu sorriso sardônico:

– Salve, Alemão! Não se preocupe com a certidão, os filhos da velha desistiram da venda. O negócio gorou…

Devolveu-me a certidão de modo desdenhoso, a negativa sublinhada com tinta rubra para magnificar o meu sentimento de opróbrio. Suspirei aliviado, mas saí dali triste e cabisbaixo.

Mal chegava ao Registro e já me esperava o Cachoeira. Lançou-me um olhar severo e de censura. Foi logo dizendo:

– Alemão, os livros nos dão filhos que geram outros filhos. Por essa razão dizemos que algumas certidões são de “filiação”, embora todas elas tragam o registro de sua origem. Quando, por nosso intermédio, os livros dão à luz filhos imperfeitos, os defeitos se projetam como maldição à sua progenitura.

Fez-se um longo silêncio. Passei o dia meditando sobre o ocorrido e não me saía da cabeça a advertência inaugural de minha longa vida cartorária: “Alemão, o diabo mora nos detalhes”.

Todo o referido é verdade e dou fé.

Olhinhos azuis e o garfo de prata

Paola Giusti, e sua complexa relação com o passado e a herança de seu pai.

Paola Giusti, uma jovem arquiteta, recebeu um inesperado legado pelo falecimento de seu pai. Já não tinha contato com ele, haviam rompido por causa de reiterados desentendimentos, conflitos que tornaram a convivência simplesmente intolerável. “Relação tóxica”, dizia para si mesma e dava-se por justificada. Decidiu mudar-se para outro país, longe da família e dos poucos amigos que ainda mantinha.

Ao receber o legado – um importante cabedal – decidiu poupar os recursos e os aplicou num banco europeu. Para todos os seus amigos e poucos familiares (seus irmãos mais velhos) não dava satisfações. Havia rompido com todos, morava só num pequeno apartamento em Roma.

Pagava como podia suas obrigações. Algumas vezes, ficava inadimplente; outras, honrava as dívidas com grande esforço, mas jamais tocava nos recursos aplicados. Parece que imobilizara a herança como se pudesse, com isso, cristalizar as lembranças que despontavam no coração, dolorosa e inesperadamente.

Quando caminhava pelas ruas empoeiradas da cidade, por exemplo, lembrava-se de detalhes da infância – um plátano no outono, o perfume de um transeunte que cruza o seu caminho, as ruínas de uma igreja medieval, as aquarelas na estante da galeria… Então diminuía o passo, caminhava lentamente e seguia como se percorresse novamente os delicados tramos da infância longínqua e perdida.

Acabara de pedir o jantar. O funcionário do apart-hotel adentrou a sala e depositou os pratos e o vinho diretamente sobre a mesa. Ela havia indicado que o pagamento se achava no pequeno envelope, posto ao lado do aparador. Insistia em usar os raros euros que ainda circulam, não gostava de cartões de crédito.

Depois de um tempo, assentou-se e percebeu que o pequeno envelope se achava no mesmo lugar, intocado. Era detalhista. Estranhou. Levantou-se abruptamente e dirigiu-se ao quarto de dormir, revolveu, apalpou, revirou o travesseiro, teve intuições sombrias. Paralisou-se. O garfo de prata da infância, que ela guardava cuidadosamente no interior da fronha, havia sumido, certamente surrupiado.

Empalideceu. Sentiu vertigens, sentou-se à borda da cama e viu que de seu ventre brotavam livros, brinquedos, um violino, um ursinho, fraldas, pijaminhas, ouviu a voz maviosa da mãe sussurrando – “um olhinho, dois olhinhos, três olhinhos”… Suava. O coração disparava. Buscou recompor-se, respirou fundo, acionou o controle remoto e a TV iluminou as paredes do quarto, cobrindo-o de uma luz preternatural.

Lembrou-se da conta no banco suíço, dos plátanos no outono, das viagens ao deserto – onde o nada era tudo para seus olhinhos azuis e curiosos. Acalmou-se lentamente e adormeceu vestida com seu elegante tailleur de arquiteta moderna.

Um homem leigo e seus temores

A intervenção em cartórios é uma operação traumática. As serventias extrajudiciais são fiscalizadas de modo permanente, visitadas por juízes em correições ordinárias ou extraordinárias. Ao final, lavra-se no Livro de Atas de Visitas e Correições elogios, advertências, suspensões, podendo chegar até mesmo à perda da delegação.

Olavo Limoeiro era um Oficial da velha-guarda. Impunha-se pelo porte físico avantajado, voz tonitruante, era dono de um linguajar que alguns consideravam vulgar e inadequado. Homem duro e corajoso, sabia enfrentar desafios, mas era também um sujeito divertido, pescador, exímio contador de piadas, tinha extraordinária presença de espírito.

Olavão adorava organizar churrascos regados a cerveja à beira da represa. O juiz da comarca, o promotor, velhos advogados do foro, todos frequentavam o seu rancho arejado e bem cuidado. Embora não tivesse completado o segundo grau, seu nome era sempre lembrado pelos juízes quando a situação de determinado cartório era crítica e reclamava a decretação de intervenção, com o afastamento do titular.

Certa feita, Olavão foi nomeado pelo Corregedor-Geral de Justiça para intervir num cartório problemático da Alta Mogiana. As denúncias eram fartas: selos e verbas sonegados, longas ausências injustificadas, atecnia na lavratura dos atos, depósitos extraviados, atrasos no registro de títulos e muitas outras irregularidades. Todas elas seriam elencadas na ata de correição que foi publicada no DOJ (Diário da Justiça) para opróbrio do serventuário e de seus pares.

Mal chegando ele à cidade, e passados poucos dias, espalhou-se a notícia de que o interventor cancelaria todos os registros feitos pelo Dr. Peralva, o Oficial titular, sob o argumento de que eram nulos de pleno direito. Dizia-se que a Corregedoria faria uma razia nas inscrições, não restaria pedra sobre pedra. A notícia era falsa e fora propagada primeiramente pelo dono de um pasquim local, Chico Cachoeira, velho jornalista e amigo de infância do Oficial, parceiro de noitadas num certo lupanário da região. E depois, como se não bastasse, a notícia se alastraria feito fogo pela rádio de um político local, aumentando ainda mais a confusão.

As pessoas acorreram ao Cartório para certificar-se de que o seu registro não seria cancelado. Alguns diziam que as escrituras não tinham sido registradas porque o “safado do Peralva” consumira os selos e emolumentos em jogos de azar e noitadas no mal afamado “Espora de Prata”.

Foram dias tumultuados, gritarias no balcão, filas na calçada, pessoas passando mal, a polícia fora chamada. O cabo Aleixo aproveitaria o ensejo para certificar-se de que o registro do seu rancho não seria “cassado”.

Eu havia sido nomeado para auxiliar na intervenção e procurava ajudar Olavão como podia, mas a desconfiança da população parecia invencível. Forasteiro na cidade, eu me perguntava – que diabos eu vim fazer neste fim de mundo?

Numa sexta-feira, um velho postou-se ameaçadoramente num canto da recepção. Ali ficou plantado, observando o movimento, o entra e sai das partes, a algaravia, fitava tudo com ar sisudo, cara fechada, o chapéu enterrado na cabeça e as mãos enfiadas nos bolsos de um desbotado paletó ocre.

A verdade é que a figura começava a provocar certo receio no pessoal. Seria um pistoleiro contratado pelos fazendeiros? Um jagunço? Pensaria que o registro do sítio que recebera de herança seria cancelado?

No final do expediente, como o sujeito ainda persistisse no local, as escreventes esconderam-se no arquivo; outros refugiaram-se no banheiro, espiando pelas frestas da porta entreaberta. Tinham medo de sair, o expediente findava, escurecia.

Olavão, peito aprumado, lançou um olhar desafiador antes de enfrentar-se com o mal-encarado desconhecido que vinha em sua direção. Ao aproximar-se do balcão lentamente, as mãos socadas no bolso, o estranho fez um gesto inesperado, parecia inclinar-se, e com voz fina e desafinada, quase ao pé do ouvido de Olavão, disse:

Dotor, discurpa priguntá… É que sou meigo no assunto… 

Olavão desatou uma risada sonora e desbragada. O velho começou a rir também, sacudia o paletó terroso e o corpo desajeitado, as mãos tapavam o sorriso desdentado, os funcionários respiraram aliviados.

Encerramos o expediente, apagamos as luzes, fechamos o cartório e Olavão foi tomar umas cervejas no boteco acompanhado do velho mal-encarado.

Pouco a pouco, a paz voltaria ao cartório. Os registros não foram cancelados, o Dr. Peralva foi aposentado e a vida da comarca retomou o seu modorrento ritmo normal.

Sobre o velho, jamais pude saber o seu nome, apenas que era um cidadão leigo nos assuntos de cartório. O referido é verdade do que dou fé.

Sérgio Jacomino. A crônica foi originalmente publicada no Migalhas Notariais e Registrais: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/397599/um-homem-leigo-e-seus-temores–secao-tudo-e-verdade-e-dou-fe

O Oficial-Maior e o baixo-clero cartorário

Cartórios brasileiros

Seu Vitinho e seu terno surrado*

Seu Vitinho era o Oficial-Maior do Registro de Imóveis da comarca. Era um homem de meia idade, atarracado, nervoso, mal cabia no terno cinza surrado e camisas puídas e amareladas. A gravata era verde esmeralda, destoava do conjunto, mas sempre lhe pareceu que o complemento o tornava ainda maior. Afinal, ele era o Oficial “Maior” da Serventia.

Já Seu João Arconte era o Oficial do Registro de Imóveis. Homem bonachão, bondoso, tímido, de poucas palavras. Não tinha filhos. Era casado com Dona Rutinha Arconte, de quem se dizia ter sido escrevente autorizada em priscas eras. Era uma mulher de “boa família e fina estampa”, diziam os que um dia a conheceram. Com sorte se podia encontrar sua letrinha miúda e caprichada perenizada nalgum livro de transcrição das transmissões. Os mais velhos juravam que se devia a ela o fato de o Cartório jamais contratar mulheres.

Seu João Arconte havia acedido ao cargo de Oficial ainda na década de 50, por concurso público, nomeado pelo Governador do Estado. Encontrou o Cartório como o deixara o antecessor, importante figura da Primeira República. Mantinha o mobiliário que vinha de outras gerações de notários, escrivães, depois registradores. Ali havia carimbos, penas, mata-borrões, tinteiros, sovelas, prensa, mimeógrafos… O cartório terá sido sempre assim, cravado no mesmo lugar, imune à passagem de corregedores, promotores, advogados e do próprio tempo, que fluía lenta e preguiçosamente.

O prédio do Registro de Imóveis era um casarão de várias salas, cada qual com sua especialização: havia a sala de conferência, exame e extrato, a de certidão, a de transcrição. Os escreventes lavravam atos manuscritos por cópia dos extratos que eram redigidos pelos mais experientes. Havia ainda o arquivo, a sala do café e o balcão de atendimento das “partes”. No final do corredor, bem escondidinho, achava-se a saleta do Oficial. Seu João se deliciava em ouvir os clássicos na Rádio Eldorado enquanto prenotava os títulos, sempre munido de sua Parker 51 e de seus indefectíveis óculos Persol 649.

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