Um amor fugaz

O Cartório de Registro de Imóveis era multifacetado, agregava anexos como a Corregedoria Permanente, os Cartórios do Júri e o de Menores. Trabalhar nos anexos era diferente e poucos se interessavam. Havia processos administrativos disciplinares, sindicâncias, expedição de alvarás para menores frequentarem bailes nos finais de semana, mas havia uma parte sinistra que suscitava a curiosidade mórbida de alguns escreventes: os processos do júri, com suas horripilantes fotos em preto e branco. Viam-se pobres vítimas assassinadas de muitas maneiras – a machadadas, enforcadas, esfaqueadas, baleadas, até mesmo decapitadas. As fotos jaziam entre as folhas amareladas dos autos e o pequeno auxiliar de cartório sempre as espiava de soslaio quando tinha que numerar e rubricar as folhas dos autos. As fotos metiam-lhe medo e repugnância, às vezes pesadelos.

Os homicidas eram levados a júri e as  sessões eram sempre muito concorridas. As pessoas se aboletavam no grande salão do tribunal para acompanhar os debates travados entre o Dr. Raposo Mendez, um refinado velhacaz, e o promotor de justiça da comarca, Dr. Eustáquio da Silveira. Os debates se tornariam antológicos, mas o que mais impressionava o jovem cartorário era a perícia do escrivão do júri, o “Seu” João Penaforte. Ele reduzia os momentos importantes do julgamento em elegantes termos de audiência e o fazia com rapidez faiscante, dedilhando o teclado estilizado de uma Remington 19. Era como se a máquina fosse uma extensão de si mesmo. João antecipava-se ao comando do juiz, adivinhava-lhe os pensamentos, intuía suas intenções, era como se conduzisse, ele próprio, o curso da sessão. Quem trabalhou nas comarcas do interior sabe muito bem o valor dos escrivães experimentados e certamente terá ouvido falar do grande João Penaforte, o escrivão do Tribunal do Júri.

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O Oficial-Maior e o baixo-clero cartorário

Cartórios brasileiros

Seu Vitinho e seu terno surrado*

Seu Vitinho era o Oficial-Maior do Registro de Imóveis da comarca. Era um homem de meia idade, atarracado, nervoso, mal cabia no terno cinza surrado e camisas puídas e amareladas. A gravata era verde esmeralda, destoava do conjunto, mas sempre lhe pareceu que o complemento o tornava ainda maior. Afinal, ele era o Oficial “Maior” da Serventia.

Já Seu João Arconte era o Oficial do Registro de Imóveis. Homem bonachão, bondoso, tímido, de poucas palavras. Não tinha filhos. Era casado com Dona Rutinha Arconte, de quem se dizia ter sido escrevente autorizada em priscas eras. Era uma mulher de “boa família e fina estampa”, diziam os que um dia a conheceram. Com sorte se podia encontrar sua letrinha miúda e caprichada perenizada nalgum livro de transcrição das transmissões. Os mais velhos juravam que se devia a ela o fato de o Cartório jamais contratar mulheres.

Seu João Arconte havia acedido ao cargo de Oficial ainda na década de 50, por concurso público, nomeado pelo Governador do Estado. Encontrou o Cartório como o deixara o antecessor, importante figura da Primeira República. Mantinha o mobiliário que vinha de outras gerações de notários, escrivães, depois registradores. Ali havia carimbos, penas, mata-borrões, tinteiros, sovelas, prensa, mimeógrafos… O cartório terá sido sempre assim, cravado no mesmo lugar, imune à passagem de corregedores, promotores, advogados e do próprio tempo, que fluía lenta e preguiçosamente.

O prédio do Registro de Imóveis era um casarão de várias salas, cada qual com sua especialização: havia a sala de conferência, exame e extrato, a de certidão, a de transcrição. Os escreventes lavravam atos manuscritos por cópia dos extratos que eram redigidos pelos mais experientes. Havia ainda o arquivo, a sala do café e o balcão de atendimento das “partes”. No final do corredor, bem escondidinho, achava-se a saleta do Oficial. Seu João se deliciava em ouvir os clássicos na Rádio Eldorado enquanto prenotava os títulos, sempre munido de sua Parker 51 e de seus indefectíveis óculos Persol 649.

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7º Concurso Público de Provas e Títulos para Outorga de Delegações de Notas e de Registro

TJSP agenda provas para os dias 20 e 27 de fevereiro

Começa neste domingo, dia 20 de fevereiro de 2011, a maratona de provas de seleção para o 7º Concurso Público de Provas e Títulos para Outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de São Paulo.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo agendou a prova para os candidatos a remoção no dia 20/02. E no dia 27/02 será realizada a prova para os candidatos a provimento, que concorrem ao ingresso na carreira. Continuar lendo

Cartórios brasileiros: por que não mudar?

Respondendo ao repto do Procurador Edmundo A. Dias (Tendências & debates, FSP, 15/6) afirmamos: os cartórios concordam que é preciso mudar! Mas é previso mudar para melhor, aperfeiçoar, e o receituário por ele proposto significa simplesmente a rota do inferno burocrático, uma estrada acidentada que o país deveria a todo custo evitar.

É preciso centrar a crítica conhecendo o objeto. Quando se refere a privilégios, o articulista confunde agentes políticos com delegatários de serviço público. Grosso modo, seria como colocar no mesmo balaio tradutores juramentados e vereadores, notários e escriturários, leiloeiros públicos e deputados, concessionários de serviços públicos e escrivães judiciais.

No fundo, ele acena com a estatização dos serviços como uma medida higiênica, “republicana”, como diz. Ora, a estatização já está consumada em Estados como a Bahia, por exemplo, onde, justamente, os serviços padecem de graves deficiências estruturais e figuram entre os piores no ranking nacional, em posição inversa ao que se verifica em estados como São Paulo, por exemplo.

Ora, as recentes decisões do CNJ visaram, justamente, colocar a atividade em perfeita harmonia com o diapasão constitucional. O que se apurou nas visitas promovidas pelo órgão é a mais completa desordem na prestação dos serviços em regiões onde ainda impera a atuação direta do Estado, por meio de seus arcos burocráticos, perpetuando-se sem concursos públicos e fiscalização efetivos. Aqui, sim, pode-se propriamente falar em regime patrimonialista, com notários e registradores atuando por indicação política, custeando diretamente despesas públicas e sem a mínima qualificação profissional.

Por fim, é preciso muito cuidado ao manejar dados econômicos de uma realidade que não se conhece. As informações colhidas no CNJ precisam ser corretamente interpretadas. As declarações que consubstanciam a sua base de dados foram formadas a partir de declarações unilaterais e envolvem variáveis que não foram consideradas na totalização.

Os cartórios estão preparados para os desafios do novo milênio. É preciso somente cumprir a Constituição Federal e que os profissionais do Direito possam fazer um esforço para conhecê-los e compreender que desempenham um importante papel na consumação da segurança jurídica preventiva.

Dormi motoboy, acordei empresário!

No dia 6 de abril passado, postei aqui mesmo uma pequena nota sobre as fraudes identificadas na constituição de empresas na Junta Comercial do Estado de São Paulo – No Brasil, fraude é destino.

O caso é alarmante e motivou uma reportagem no Jornal Nacional do mesmo dia.

Na semana seguinte, procurei o Defensor Público do Estado de São Paulo, Dr. Luiz Rascovski, que nos concedeu a entrevista adiante reproduzida.

Dr. Rascovski é defensor público concursado e aluno regular do Programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Tem se destacado à frente da Defensoria Pública do Estado, com iniciativas que colocam a instituição que representa no centro das questões mais importantes relacionadas com a garantia dos direitos da população mais carente do Estado.

Vale a pena conferir a entrevista que denota conhecimento técnico e jurídico mas, acima de tudo, expressa isenção e independência na formação de suas convicções.

SJ – Como surgiu a constatação de que estamos vivendo uma epidemia de falsificações de identidade? Como o senhor identificou esse fenômeno de roubo de identidades?

LR – Isso foi identificado em minha atuação como defensor público. Diariamente, dezenas de pessoas procuram a Defensoria Pública relatando esse problema, ou seja, que seus nomes foram inseridos de forma indevida como sócios de empresas.

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Não há mais metafísica no mundo senão chocolates…

chocolate

Deu no Estadão de hoje a triste nota com detalhes reveladores da Operação Naufrágio da Polícia Federal.

Como se suspeitava, os cartórios têm culpa no cartório.

Não deixa de ser simbólica essa operação.

Parafraseando Pessoa, não há mais idealismo e ingenuidade no mundo senão chocolates.

Vejamos se a prática temerária de criação de cartórios por singelo ato administrativo naufraga nessa procela capixaba.

Cumpriu-se o triste vaticínio. Por pior que seja o processo legislativo, a publicidade que guarda a tramitação de todos os projetos de leis é sempre uma garantia.

Enfim, o Brasil é complexo demais para ser alcançado pelas boas intenções gestadas em gabinetes dos grandes centros políticos e administrativos.

Confira a nota: Continuar lendo

Terra fria esquenta o mercado

Pode-se considerar histórica a fragilidade do sistema registral pátrio. A razão desse atraso institucional é singela e sempre foi perfeitamente conhecida pela doutrina especializada: o registro predial brasileiro se apóia no péssimo gerenciamento territorial decorrente de um mal funcionamento dos cadastros fundiários a cargo do Estado.

Quando a questão é a determinação física dos imóveis – papel desempenhado pelos cadastros físicos – o registro fica sem a sua contraparte autêntica. E à mingua de um bom cadastro, o Registro Imobiliário se rende às falsificações e leva a má fama pelos péssimos resultados que apresenta.

As investigações levadas a efeito pela Polícia Federal põem à mostra o que os profissionais do Registro e os juristas sabem há mais de um século: o problema das fraudes não se acha nos Cartórios, mas nas informações a cargo dos cadastros públicos. Usina de falsificações, produzem os documentos que vão fundamentar os registros. Que os Oficiais de Registro tenham culpa no cartório ou não, a Polícia Federal haverá de investigar.

O que importa é que a fraude se arma em titulação adulterada e certificada pelo Incra. Alguém ainda duvida de que o georreferenciamento colocará um elemento instabilizador na informações jurídicas que os cartórios proporcionam? Novilíngua matricial, o georreferenciamento é um código iniciático. Os registradores não são cartógrafos ou geodesistas e sempre vão argumentar que não entendem bulhufas da fieira interminável e intragável de variáveis matemáticas.

Estivessem os cadastros a cargo de profissionais integrando os quadros da administração delegada – como hoje estão os oficiais de registro – e os dados seriam ao menos fidedignos. Haveria responsabilização patrimonial direta desses profissionais.

Aliás, essa era a proposta que Afrânio de Carvalho apresentava a 12 de janeiro de 1948 ao Congresso Nacional. Versando sobre reforma agrária, o Projeto buscava conciliar duas instituições – cadastro e registro – o que seria um objetivo que o professor persegueria por toda a vida.

Esperanças baldadas, sonhos frustrados!

Quem duvida de que estamos inaugurando uma época de confusões, preste atenção na série de reportagens. Os cartórios entram no episódio como Pilatos no credo…

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Onã e o fideicomisso vicioso

Existem algumas fábulas que podem retratar a situação que hoje vivemos no interior das entidades que nos respresentam.

Não deixo de pensar que a mais impressiva delas é a passagem bíblica que nos relata como Onã, filho de Judá, recebe Tamar por esposa pela morte de Er, seu irmão. Diz Judá: “Vai, toma a mulher de teu irmão, cumpre teu dever de levirato e suscita uma posteridade a teu irmão”.

Judá pretende ligar os direitos de primogenitura que cabiam originalmente ao irmão. Se o casal gerasse um filho, a herança do primogênito a ele pertenceria; de outra forma, Onã ficaria com a primogenitura.

Um belo exemplo de um fideicomisso que se vê em Gênesis, Capítulo 38, versículos 7 a 10.

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Bahia – a desestatização que virou notícia

Muitas das iniciativas que são tomadas em prol da atividade notarial e registral nascem sem que se saiba quem são os seus verdadeiros artífices.

A desestatização dos cartórios da Bahia mereceu as manchetes dos blogues, listas de discussões, imprensa, etc. e muitos de nós não sabemos que essa obra é genuinamente coletiva.

Muito se tem dito a respeito do trabalho eficaz da Andecc e das entidades que lutam pelo aperfeiçoamento dos serviços e das formas de acesso à atividade.

Contudo, um documento foi decisivo para as importantes decisões tomadas no âmbito do CNJ e peça chave para as discussões. O Observatório publica aqui o tal documento para conhecimento dos colegas e da sociedade informada.

A finalidade do estudo, encomendado pela AnoregBR, por seu presidente Rogério Portugal Bacellar, foi a de apresentar uma proposta auto-sustentável para modernização dos Serviços Notariais e Registrais da Bahia.

Vale a pena ler o texto para que se saiba que há um esforço diligente e concentrado de muitos colegas para que essa chaga social, representada pelos péssimos serviços notariais e registrais prestados à sociedade baiana, possa, quem sabe, um dia, ser curada.

Triste Bahia, quão dessemelhante!

PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS N° 200810000021537
RELATOR:CONSELHEIRO JORGE ANTONIO MAURIQUE
REQUERENTE:CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA
REQUERIDO:TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA
INTERESSADA:ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE DEFESA DOS CONCURSOS PARA CARTÓRIOS
ASSUNTO:SERVENTIAS ESTRAJUDICIAISII – Diante do exposto, determino seja:

(a) declarada privatizadas todas as serventias extrajudiciais do TJBA, na medida em que seus titulares deixarem seus respectivos cargos;

(b) concedido ao Tribunal de Justiça da Bahia prazo de 120 dias para, acompanhado pela Comissão de Estatísticas e Gestão Estratégica do CNJ, elaborar plano e cronograma de efetivação da privatização, referida no item I;

(c) promovido e apresentado ao CNJ o levantamento das receitas das serventias extrajudiciais estatais, referidas no item I;

(d) encaminhada cópia da presente decisão à Procuradoria-Geral da República, para análise da normas dos arts. 222 e 223, da Lei estadual nº 3731/79 (Lei de Organização Judiciária do Estado da Bahia), e adoção de medida tendente a sanar eventual frustração do art. 236 da Constituição Federal de 1988.

É o voto.

Intimem-se e arquive-se.

Brasília, 21 de outubro de 2008.

Conselheiro JORGE ANTONIO MAURIQUE
Relator