Um amor fugaz

O Cartório de Registro de Imóveis era multifacetado, agregava anexos como a Corregedoria Permanente, os Cartórios do Júri e o de Menores. Trabalhar nos anexos era diferente e poucos se interessavam. Havia processos administrativos disciplinares, sindicâncias, expedição de alvarás para menores frequentarem bailes nos finais de semana, mas havia uma parte sinistra que suscitava a curiosidade mórbida de alguns escreventes: os processos do júri, com suas horripilantes fotos em preto e branco. Viam-se pobres vítimas assassinadas de muitas maneiras – a machadadas, enforcadas, esfaqueadas, baleadas, até mesmo decapitadas. As fotos jaziam entre as folhas amareladas dos autos e o pequeno auxiliar de cartório sempre as espiava de soslaio quando tinha que numerar e rubricar as folhas dos autos. As fotos metiam-lhe medo e repugnância, às vezes pesadelos.

Os homicidas eram levados a júri e as  sessões eram sempre muito concorridas. As pessoas se aboletavam no grande salão do tribunal para acompanhar os debates travados entre o Dr. Raposo Mendez, um refinado velhacaz, e o promotor de justiça da comarca, Dr. Eustáquio da Silveira. Os debates se tornariam antológicos, mas o que mais impressionava o jovem cartorário era a perícia do escrivão do júri, o “Seu” João Penaforte. Ele reduzia os momentos importantes do julgamento em elegantes termos de audiência e o fazia com rapidez faiscante, dedilhando o teclado estilizado de uma Remington 19. Era como se a máquina fosse uma extensão de si mesmo. João antecipava-se ao comando do juiz, adivinhava-lhe os pensamentos, intuía suas intenções, era como se conduzisse, ele próprio, o curso da sessão. Quem trabalhou nas comarcas do interior sabe muito bem o valor dos escrivães experimentados e certamente terá ouvido falar do grande João Penaforte, o escrivão do Tribunal do Júri.

Dr. Bartolo Feliciano Alves era um juiz de direito experiente, provado na faina forense. Era um homenzarrão desajeitado, caminhava como quem ponderasse cada passo, assentava-se como sumo-sacerdote no grande salão. Lia Aristóteles, Machado e Tomás de Aquino. Quando chegou à comarca, instalou sua biblioteca pessoal numa imensa sala do Fórum, anexa ao seu gabinete. Era seu refúgio depois do expediente. Os contínuos asseguravam que avançava noite adentro, absorto na leitura dos processos. Na biblioteca, havia clássicos da literatura universal, tomos de religião e de filosofia, crônicas de viagem, volumes que eram dispostos ao lado de civilistas portugueses e italianos. As lombadas pretas ou vermelhas, com rutilante douração, encantavam o jovem auxiliar de cartório que debutava nos anexos do Registro de Imóveis.

Certa feita, o comissário de menores da comarca levou à presença do Dr. Bartolo uma linda garota que não deveria ter mais do que 15 ou 16 anos. Era uma jovem delicada, corpo delgado, tez alva e trejeitos graciosos. Segundo o comissário, a menina deambulava pelas ruas da comarca quando foi apreendida e levada à presença do juiz. Aonde pretendia ir? Por que estava desacompanhada? Onde morava? Quem eram os seus pais? Estudava? Nada se sabia da graciosa garota, apenas que errava pela cidade.

Posta aos cuidados do escrivão, este logo encarregaria o menino aprendiz de entretê-la, enquanto se decidia o que fazer. Havia um impasse. Ao comissário ela dissera que queria “ver o mar”. Confessou que era órfã e morava na casa de uma avó no interior do estado. Não tinha dinheiro, nem documento, não sabia onde repousar, porém não manifestava qualquer receio ou insegurança, apenas “queria ver o mar”. O que fazer? O comissário não sabia; tampouco o escrivão. Dr. Bartolo sopesava, refletia, ponderava.

O menino se encantava com a jovem. Ela era inteligente e loquaz, ele curioso e ingênuo. Logo se viram inesperadamente atraídos um pelo outro e descobriam, entre os processos criminais e fotos funestas, um mar profundo de sentimentos turvos até então desconhecidos.

Caia a tarde, era preciso decidir o que fazer com a menor apreendida. O juiz então determinou que a kombi do fórum a levasse às dependências do Juizado de Menores da capital, um prédio arruinado localizado na Rua Joaquim Nabuco. Lá seria encaminhada e entregue à avó. Era o melhor a fazer, concluiu.

O jovem auxiliar rapidamente se prontificou a acompanhar a diligência. O comissário desaconselhava, o escrivão calava, o Dr. Bartolo sopesava, refletia, ponderava. Depois de um certo tempo, acabou autorizando. Parecia saber o que ia no coração do jovem. “Vistos etc… Cumpra-se. Após ao arquivo, d. s.”.

Assim se fez, menina e o menino no banco traseiro, comissário e motorista à frente, e a velha kombi disparava para o centro da cidade, sacolejando os meninos que iam de mãos dadas e bem apertadas.

Entretanto, logo chegariam ao destino. A despedida seria breve, burocrática. Assinaturas lá e cá; recibo de entrega, firmas, carimbos, rubricas etc. Logo se despediam, montavam a viatura, o comissário e o motorista à frente, o jovem ensimesmado atrás. A perua roncava e rangia no trajeto de volta, os passageiros vinham em silêncio, mas tudo parecia ter mudado. Um oceano secara e o profundo vazio agora se instalara no coração do jovem aprendiz de cartório.

Já em casa, remontava cada cena, repetia cada palavra, sentia de novo o toque da mão suada… seu coração disparava… relembrava o pequeno pingente colgado numa correntinha de ouro… suspirava… o vestido celeste pregueado dançava… revirava-se na cama… vinha-lhe o perfume que não fora mais do que emanação daquele corpinho frágil e delicado.

Tudo se tornara sagrado, intangível, misterioso. De repente, lembrou-se de um detalhe: ela teria dito ao escrivão que sua tia morava na Praça Marechal Deodoro. Não sabia o número, nem o nome da tia, mal sabia onde era a praça, temia que mentira no depoimento, mas nada mais importava, isto haveria de ser uma senha, sim, era um sinal, repetia para si mesmo.

No domingo seguinte, pôs-se a caminho. Tomou o expressinho amarelo e logo abalava-se de prédio em prédio, de portaria a portaria, ia e vinha, inquiria quem soubesse de uma pequena menina e seu vestidinho azul-celeste que teria vindo do interior, sua tia…

O pequeno auxiliar de cartório jamais reencontraria a jovem. A sua passagem pela comarca deixaria um pequeno e discreto rastro nas folhas de uma sindicância capeada por cartolina ocre e colchetes dourados. Os anexos se foram, com eles a sindicância, os colchetes, o nome da menina, as fotos amarelecidas… foram tragados pelo abismo onde todas as coisas esquecidas ou perdidas acham-se cuidadosamente conservadas.

Hoje, já retirado, o velho Oficial de Registro de Imóveis posta-se diante do mar e sente a brisa acariciar-lhe as cãs. Quando estende seu olhar cansado para a imensidão que se revela lentamente no lusco-fusco, pensa que aquele encontro do acaso revelara a chama divina em forma de um verdadeiro amor. Um amor fugaz. Todo o referido é verdade e dou fé.

Um comentário sobre “Um amor fugaz

  1. Quando entrei no Cartório, varria e passava espanador, além de trocar mata-borrão entre entras coisas. Quando havia processos com fotos, eu ia mais cedo para poder folhear os autos. Com relação às paixões, quantas vítimas de sedução que nos seduziram com seus depoimentos pormenorizados e a “carinha” de vítima.

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