Redação original. [Art. 19] – § 5º As certidões extraídas dos registros públicos deverão ser fornecidas em papel e mediante escrita que permitam a sua reprodução por fotocópia, ou outro processo equivalente.
Modificação: § 5º As certidões extraídas dos registros públicos deverão ser fornecidas eletronicamente, com uso de tecnologia que permita a sua impressão pelo usuário, com mecanismo seguro de identificação de sua autenticidade, dispensada a sua materialização pelo oficial de registro (NR).
Justificativa: Adaptação da lei ao Registro Eletrônico de Imóveis, para a previsão expressa da obrigatoriedade da expedição eletrônica de certidões. O artigo se destina a registradores de imóveis, na emissão, e aos usuários, quanto à recepção e uso das certidões nesta forma.
Cartórios 4.0 – a nova onda notarial e registral
Quando li pela primeira vez as propostas veiculadas pelos §§ 5°, 6° e 7° do art. 19, dispersei-me entre as esquinas de uma redação assistemática e defeituosa.
Todavia é preciso reconhecer que pode haver, aqui, uma boa ideia. Mal expressa e em local inadequado, mas uma boa ideia.
Não é o caso de desenvolver de modo aprofundado aqui a ideia de que o sistema notarial e registral experimenta a sua 4ª onda de transformação. Isso fica para outra oportunidade. Todavia, para que se entenda o que quero dizer, permitam-me algumas linhas.
Vivemos um processo disruptivo que nos consome pelos seus efeitos, em geral mal compreendidos e que nos tem levado a buscar soluções inadequadas. Vejamos em retrospectiva.
A primeira onda registral é representada pela manuscrição – inscrição em meios perenes, reprodução apógrafa, públicas-formas etc. A segunda é representada pela mecanização e por seus desdobramentos em processos eletromecânicos como máquinas de escrever, tipos móveis, copiadoras e sistemas de reprografia etc. A terceira onda se relaciona com a informatização dos cartórios, com a introdução de técnicas de processamento de dados, uso de mainframe, depois microcomputadores etc. Estamos agora no limiar da quarta geração – cartórios 4.0 – em que o fator determinante é a existência de redes e meios eletrônicos que promovem a extrapolação dos limites físicos das serventias e inauguram uma nova forma de relacionamento entre os cartórios e os destinatários de seus serviços – estado, mercado, sociedade.
O surgimento dos novos meios eletrônicos transforma os conteúdos, como na boutade McLuhiana. Busquei apontar para esse fenômeno no pequeno artigo Electronic Registry – the explosion of Gutenberg’s Galaxy and the electronic folium[1], tema que seria aprofundando-o no transcurso do XLII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis realizado em 2016[2].
Um dos fenômenos que pode ser associados a esse processo é a derruição das fronteiras erigidas em meados do século XX e que definiram o que mais tarde chamaríamos de “especialidades” dos serviços notariais e registrais. Hoje há uma tendência de ultrapassagem dos limites das especialidades com a absorção de atribuições específicas de umas por outras.
Transcendência disruptiva – as infovias eletrônicas
Venho estudando o fenômeno e identifico, neste caso concreto, um belo exemplo de transcendência disruptiva.
Veremos que a proposta consubstanciada nestes parágrafos aponta para a suplantação dos limites físicos dos cartórios pelo acesso à informação por infovias eletrônicas. Será possível solicitar uma certidão ou informação de todo e qualquer cartório extrajudicial a partir de um ponto único na internet.
Isso era impensável há poucos anos. É disso que se trata a proposta, embora veiculada de modo inadequado. Toca-se num ponto essencial, mas não se responde com uma proposta adequada.
Perdoem-me a redundância: a solução passa por uma regulação uniforme, a cargo da Corregedoria Nacional de Justiça, órgão do Poder Judiciário. Cada unidade do extrajudicial poderá ser integrada num amplo círculo digital, sem que se destruam a singularidade e a especificidade de cada elemento dessa grande corrente da segurança jurídica.
É preciso construir o que venho há muitos anos indicando: o fenômeno da “molecularização” do sistema registral e notarial baseado em novos meios eletrônicos[3].
Ação e reação – na guerra é preciso estratégia
É preciso reconhecer que são imensas as ameaças que o sistema notarial e registral experimenta nos dias que correm. As novas tecnologias da informação e comunicação batem à nossa porta e os imensos desafios que a sociedade nos impõe não podem ser respondidos de maneira precipitada, açodada, afoita, improvisada.
Nos últimos anos, novos modelos de organização da informação registral foram se insinuando na atividade, destruindo, lentamente, a larga tradição do sistema registral brasileiro. SINTER, entidades registradoras, centrais estaduais (ligadas ou não a entidades ou empresas privadas), tudo isso representa a tendência de uma “fuga privatística” ou, no sentido inverso, a administrativização dos Registros Públicos com a assimilação progressiva das atividades delegadas pelo próprio ente delegante. Está em jogo dois modelos distintos: centralização versus descentralização.
Deixo para outra oportunidade o aprofundamento da crítica desse modelos. Consigno, de passagem, que a descentralização de dados no arco ou círculo registral é um modelo elegante, factível e consentâneo com a tradição.
A redação é matéria própria para regulamentação – como a quase esmagadora maioria das propostas aqui ventiladas.
Crítica analítica
Voltemos à redação proposta. Neste caso vamos empreender um exame analítico da redação proposta, com as críticas que considero pertinentes:
§ 5º As certidões extraídas dos registros públicos deverão ser fornecidas eletronicamente[1], com uso de tecnologia que permita a sua impressão pelo usuário[2], com mecanismo seguro de identificação de sua autenticidade[3], dispensada a sua materialização pelo oficial de registro[4]
O meio e a prova
[1] – Não se deve limitar os meios de suporte material da publicidade registral. O Oficial não pode ter o poder ou a faculdade de negar expedir certidão ou informação em qualquer meio – seja eletrônico ou em papel. Pense-se na certidão de nascimento e em centenas de outros exemplos em que a certidão expedida em papel ainda é simplesmente indispensável.
Não havendo suporte informático (ou mesmo energia elétrica) e a publicidade registral ficará impossibilitada?
É uma discriminação abominável. Obviamente, nada impede que a certidão seja expedida em meios eletrônicos, a critério do próprio interessado.
Impressão pelo próprio usuário?
[2] – A tarefa de imprimir a certidão ficará a cargo do próprio interessado? Qual é a tecnologia ou ferramenta que lhe permitirá reproduzir em papel a certidão eletrônica conservando-lhe os mesmos atributos de autenticidade e integridade ínsitos ao suporte material eletrônico?
Insinua-se aqui um processo de autenticação do autenticado. Explica-se: só tem sentido vedar a expedição originária da certidão em papel na suposição de que o interessado fará (ou rogará) a sua impressão. Mas como o fará? Responde-se: por intermédio de outro serventuário da fé pública (vide comentários ao § 6°). Será uma forma de autenticação extra notarial.
Se a certidão poderá ser emitida por qualquer unidade, por intermédio de centrais (como reza o mesmo § 6°) advinha-se que a cobrança será por ambas – emissão e impressão. É um bis in idem intolerável. Além disso, será preciso criar um livro de controle de impressão. De outra forma, como se provará que a certidão “materializada” na serventia localizada alhures conserva os mesmos elementos da original?
[3] – A expressão “mecanismo seguro de identificação de sua autenticidade” é rebarbativa. A autenticidade é atributo do documento eletrônico com assinatura qualificada. É a autenticidade que faz presumir, naturalmente, a integridade e identidade do firmante. Não se “identifica” a autenticidade, mas se a comprova por meios idôneos.
Além disso, não é necessário dizer-se na lei o que é ínsito e próprio à infraestrutura das assinaturas digitais qualificadas.
Os entes imateriais e a fé pública
[4] – Diz a regra que fica dispensada a “materialização” pelo oficial de registro. Essa dispensa não é tolerável. É direito do cidadão receber a certidão nos meios que melhor lhe aprouver. Além disso, deve-se evitar expressões equívocas como “materialização” da certidão – como se a certidão eletrônica fosse uma entidade “imaterial”. Apesar de corrente, devemos buscar uma definição substancial.
[1] Acesso no Observatório do Registro: https://cartorios.org/2012/06/28/electronic-registry-the-explosion-of-gutenbergs-galaxy-and-the-electronic-folium/
[2] O texto com pequenos ajustes pode ser visto aqui: https://www.academia.edu/37700224/.
[3] Vide o que já dizia em 2006 sobre o tema: JACOMINO. S. RTD – um registro da modernidade. In Observatório do Registro. Acesso: https://cartorios.org/2006/06/25/rtd-um-registro-da-modernidade/.