Uma recente decisão da Primeira Vara de Registros Públicos de São Paulo enfrentou uma questão recorrente: a prenotação sucessiva realizada para o fim ilusório de promover o “bloqueio” do registro para o acesso de títulos contraditórios.
A decisão foi exarada pela Dra. Tânia Mara Ahualli no Processo 0005231-04.2020.8.26.0100 de cujo teor se extrai: “A prioridade de registro caracteriza-se pela preferência dos títulos na ordem de sua prenotação, de modo que, apresentados títulos contraditórios, aquele com número de protocolo anterior será registrado. Caso esgotado o prazo da prenotação de 30 dias, sem que tenham sido cumpridas as exigências, o título seguinte na ordem de prenotações será qualificado e, não havendo exigências, registrado”.
A decisão lembra um antigo artigo redigido pelo meu amigo JOSÉ ROBERTO FERREIRA GOUVÊA, quando ainda atuava como Promotor de Justiça na mesma Vara, lá pelos idos de 1992. O texto, tanto quanto saiba, é o primeiro a enfrentar o tema. Posteriormente, outros seguiram na mesma senda.
Posteriormente, na edição do Boletim do IRIB n. 268, de setembro de 1999, o Dr. Marcelo Terra enfrentaria o tema polêmico da discricionariedade do registrador na admissão (ou não) de títulos que padecem de insuperáveis imperfeições. Segundo ele, “o Oficial, nesses casos, tem dever de devolver o título sem o prenotar”. Remeto o leitor ao artigo referido nas nótulas que registrei aqui mesmo, neste Observatório: A prenotação e a discricionariedade do Registrador.
No artigo eu questionava: “pode o registrador negar-se a prenotar determinado título quando patente a intenção procrastinatória da inscrição vestibular? Poderá o registrador denegar discricionariamente o acesso ao título em virtude de deliberada prenotação iterativa?”. Com citação de jurisprudência, apoiava a tese esposada pelo Dr. Marcelo Terra.
Novamente o tema volta à baila e eu senti o impulso de compartilhar, como forma de homenagear o tabelião de protesto da Capital de São Paulo, o artigo que parece ter sido o primeiro a enfrentar o tema polêmico.
Ele foi veiculado no Boletim do IRIB 179, de abril de 1991 e o acesso ao original pode ser feito aqui: https://bit.ly/2V2jp6K.
NOTAS SOBRE A PRENOTAÇÃO
A importância do protocolo no Registro de Imóveis foi bem expressa na lei anterior (Decr. 4.857/89), que em seu art. 183 o designava chave do Registro Geral. Os sistemas de registro imobiliário fixam a solução dos conflitos decorrentes de direitos reais opostos ou contraditórios através da ordem das prenotações, cuja solução se impõe “por se harmonizar com um bom sistema de publicidade imobiliária e que, além disso, aparece como uma conseqüência do princípio do nascimento do direito real a partir da data de sua inscrição” (M.M.DE SERPA LOPES, Tratado dos Registros Públicos, 3.ª ed., Freitas Bastos, 1957, vol. lV, p. 328).
Esse princípio, denominado da prioridade, “significa que, num concurso de direitos reais sobre um imóvel, estes não ocupam todos o mesmo posto, mas se graduam ou classificam por uma relação de precedência fundada na ordem cronológica do seu aparecimento” (AFRANIO DE CARVALHO, Registro de Imóveis, 3.ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 1982, p. 216). O Conselho Superior da Magistratura já decidiu que “o único elemento que permite, entre dois títulos contraditórios, estabelecer o que tem prioridade é o número que tomaram no protocolo”, pois é essa regra cristalinamente estampada no art. 186 da Lei de Registros Públicos” (ap. cível 3.568-0).
A prenotação assegura, assim, a prioridade, que não se perde com a demora, dentro do prazo de trinta dias (LRP, art. 205), no cumprimento das exigências formuladas pelo registrador.
Garante-se ao primeiro título que nesse prazo não se examinará outro que lhe seja, contrário, posteriormente apresentado.
O art. 534 do Código Civil exprime a relevância da prenotação ao determinar que o registro datar-se-á do dia em que se apresentar o título ao oficial do registro, e este o prenotar no protocolo. O registro, com isso, retroage seus efeitos até a data da prenotação, como se nela o ato tivesse sido lavrado, o que poderá ser importante em eventual conflito com outro direito real, em razão do acolhimento, no direito brasileiro, da norma pela qual, em matéria de registro de imóveis, tempus regit actum (Código Civil, art. 833, par, único; LRP, arts. 12, 186 e 191). PONTES DE MIRANDA alertou que o adquirente, “desde a data em que … obtém a protocolização o imóvel é seu” (Tratado de Direito Privado, 4.ª ed., Rev. dos Tribunais, São Paulo, 1983, t. Xl, p. 330).
Os efeitos da prenotação, segundo o art. 205 da Lei de Registros Públicos, cessam “se, decorridos trinta dias do seu lançamento no Protocolo, o título não tiver sido registrado por omissão do interessado em atender às exigências legais”. A interpretação correta desse dispositivo exige, primeiramente, que se determine o dies a quo do prazo nele previsto.
De início, frise-se não ser possível fixá-lo, sempre, no dia do lançamento do título no protocolo, como uma apressada leitura do artigo poderia sugerir. O exame da legalidade do título impõe um considerável intervalo entre sua apresentação e o registro pretendido. AFRANIO DE CARVALHO lembra que “o estudo do contexto dos documentos consome longo tempo no cartório, onde o serventuário, em retrospecto mental e em inspeção ocular, recapitula, uma a uma, as possíveis irregularidades para embargá-las, visto como o livre trânsito delas envolve a sua responsabilidade civil” (op. cit., p. 271). Não se pode atribuir ao destinatário do prazo – que é o apresentante – a responsabilidade pela demora do registrador, sob pena de violação da regra mora no est, ubi nulla petitio est, consagrada no art. 963 do Código Civil, pela qual, “não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora”.
VALMIR PONTES advertiu ao fato de que “bastaria ao oficial retardar o registro por mais de trinta dias para deixar o apresentante sem direito àquela preferência” (Registro de Imóveis, Saraiva, São Paulo, 1982, p. 118).
O prazo, como claramente diz o dispositivo, é para que o interessado atenda às exigências legais, que lhe devem ser indicadas por escrito (LRP, art. 198) . Desse modo, enquanto ele não tem conhecimento dessas exigências, o prazo, evidentemente, não corre. Inicia-se ele no momento da devolução do título acompanhado da nota do oficial com as exigências.
O procedimento de registro exaure-se com a resignação do apresentante às razões aduzidas pelo oficial para a negativa do pretendido acesso ao Registro de Imóveis, o que é enunciável através de sua manifestação expressa ou, presumidamente, pelo decurso in albis do prazo de trinta dias. Pode também o apresentante não se conformar com as exigências e pretender submetê-las ao crivo do Juiz Corregedor da serventia, requerendo, para isso, a suscitação de dúvida ao oficial. Inaugura-se, nessa hipótese, uma nova fase no procedimento de registro, em que a prenotação continua a produzir seus efeitos e somente será cancelada quando a dúvida for julgada procedente (LRP, art. 203, inc. l), ou na pouco provável hipótese de o apresentante desinteressar-se pelo registro, deixando de tomar as providências do inc. ll do art. 203.
Enquanto o procedimento de registro não terminar, será negado o registro de outro título que, em relação ao primeiro, reflita direito real contraditório. Ainda que se verifique facilmente que o posterior seja hábil ao registro, seu exame e ingresso dependem da rejeição final do anterior, em função de não se admitir comparação entre o conteúdo de ambos a fim de se aferir a superior idoneidade de um sob o outro. O critério da precedência foi adotado com exclusividade pelo legislador.
O interessado no segundo título acha-se sujeito a aguardar o desfecho do pedido de registro do primeiro. Sua pretensão subordina-se ao resultado do procedimento em curso e somente com termo deste é que poderá o registrador proceder ao exame do título posterior e inaugurar outro procedimento. Isso significa que a prenotação do título posterior terá eficácia durante o procedimento concernente ao primeiro título e – da mesma maneira como ocorreu no procedimento anterior – até o decurso do prazo de trinta dias que se conferir ao apresentante para satisfazer as exigências do oficial ou até que a dúvida eventualmente suscitada seja julgada procedente. Enquanto isso não acontecer, a prenotação tem validade e produz seus efeitos.
O livro de protocolo não admite filtragem. Ao oficial não é lícito negar-lhe acesso, não importa sob que pretexto. O Conselho superior da Magistratura preveniu que sucessiva prenotação de um título não impede o exame e o registro de outro. Há, por assim dizer, uma fila de precedência; quem dela é excluído e considerado inabilitado poderá retornar, mas o fará após os outros, que nela já se encontravam no momento de sua desqualificação.
JOSÉ ROBERTO FERREIRA GOUVÊA
1.º Promotor de Justiça de Registros Públicos
da Capital de São Paulo