Veio a lume a MP 992, de 16 de julho de 2020 que entre outros temas dispôs sobre “o compartilhamento de alienação fiduciária”, alterando a Lei 13.476, de/8/2017, a Lei 13.097, de 19/1/2015 e a Lei 6.015, de 31/12/1973.
A conversão em lei aparentemente vai preservar e sancionar os elementos que despontam como representativos dos interesses do mercado financeiro e do crédito imobiliário – além da repercussão no processo de registro –, razão pela qual lanço alguns tópicos para debates e discussões.
Resolvi fazer pequenas resenhas a partir de alguns dispositivos que interessam aos registradores. No dia em que escrevo, encerrado o prazo para apresentação de emendas, verifico que foram 116 apresentadas. Não tive tempo de me dedicar a cada uma delas, o que fica para os comentários que mais à frente se farão se e quando a medida provisória for convertida em lei. Até lá ficam registradas aqui as primeiras impressões.
A redação dada pelo o art. 14 da Lei 13.476/2017 passa a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 9º-A Fica permitido ao fiduciante [1], com a anuência do credor fiduciário [2], utilizar o bem imóvel alienado fiduciariamente como garantia de novas e autônomas operações de crédito de qualquer natureza [3], desde que contratadas com o credor fiduciário da operação de crédito original [4].
[1] – Todo e qualquer fiduciante?
Ou somente os que contratam operações da Lei 13.476/2017? A lei que ora se altera prevê requisitos para contratos de “abertura de limite de crédito”. Diz o seu art. 3º:
A contratação, no âmbito do sistema financeiro nacional, de abertura de limite de crédito, as operações financeiras derivadas do limite de crédito e a abrangência de suas garantias obedecerão ao disposto nesta Lei.
Como se vê, são disposições bem específicas, com regras e disposições exceptivas em relação à Lei 9.541/1997 e ao próprio CC (art. 1.368-B). Por ex., diz o art. 7º que o “registro das garantias constituídas no instrumento de abertura de limite de crédito deverá ser efetuado na forma prevista na legislação que trata de cada modalidade da garantia, real ou pessoal, e serão inaplicáveis os requisitos legais indicados nos seguintes dispositivos legais [e cita artigos e incisos da Lei 9.514/1997]”.
Poder-se-ia entender que a regra do art. 9º-A também se aplicaria de modo restritivo, mas não parecer ser o caso. Vide, por exemplo, os comentários ao § 1º, infra.
[2] Credor fiduciário – anuência.
Credor originário ou atual? Ou ambas figuras se confundem? A redação é defectiva e aponta para a limitação da operação com os mesmos – credor e devedor.
A anuência referida no caput é do credor originário? Se não é, a posição contratual não será de mero anuente. Além disso, a parte final do dispositivo – “desde que contratadas com o credor fiduciário da operação de crédito original” – parece indicar que a operação se dará entre os mesmos credor e devedor originais.
A impressão se robustece ainda mais com a leitura do inc. VII do § 1º do art. 9º-B, abaixo comentado. Fica-se com a impressão de que a lei se refere unicamente ao mesmo credor fiduciário, pois somente ele poderia contratar novas e autônomas operações de crédito de qualquer natureza. Além disso, não há previsão de fixação de grau entre as operações, mas apenas compartilhamento.
[3] Créditos de qualquer natureza.
Ou o dispositivo é iluminado pelo contexto da Lei 13.476/2017 ou “liberou geral”! Penso que podemos interpretar que estamos diante de operações de crédito de qualquer natureza, além dos contratos de “abertura de limite de crédito”.
[4] – Credor original. Contratação de novas garantias com o mesmo credor original? Os comentários supra já revelam a redação escorregadia da disposição legal.
§ 1º O compartilhamento [1] da alienação fiduciária de que trata o caput somente poderá ser contratado, por pessoa natural ou jurídica [3], no âmbito do Sistema Financeiro Nacional [2].
[1] – Compartilhamento.
A expressão soa bastante extravagante. O compartilhamento de garantias denota outros cenários – como alocação de riscos onde várias instituições financeiras concorrem para robustecer as garantias nas operações financeiras sem definição de graus ou de preferências.
No caso aqui tratado, em que as partes são as mesmas, o compartilhamento da garantia se dará com quem? Quem compartilha algo, com alguém o comparte. A ideia não tem sentido se a regra do dispositivo se aplicar às mesmas partes.
Penso que se trate simplesmente de autorização legal para constituição de novas garantias fiduciárias autônomas sobre o mesmo bem e que elas coexistirão, sem gradação e preferência, no contexto negocial dos mesmos devedores e credores. Não estamos diante de uma típica operação “guarda-chuva”, em que a mesma garantia sustenta várias operações de crédito (art. 6º da Lei 13.476, de/8/2017).
A MP não prevê a garantia do mesmo imóvel em mais de um financiamento, por instituições financeiras distintas e com juros, condições, prazos diversos – em que o mesmo objeto da garantia será compartilhado com vários credores.
Depois de ter refletido um tanto, entrei em contato com alguns colegas que me confiaram suas impressões. São bons juristas e experientes advogados que vão propor aos parlamentares a alteração do art. 9º-B, como se indicará abaixo. A crítica deles se cinge ao seguinte:
“O compartilhamento é consequência (e não causa) da averbação. Esclarecimento quanto à natureza do título a ser apresentado. Esclarecimento quanto à ordem de prioridade/pagamento entre as diversas dívidas (necessário mesmo que haja um único credor, de modo a alocar corretamente o inadimplemento caso haja insuficiência superveniente do valor do imóvel)” [1].
Por outro lado, admitido que a modalidade, tratada nesta MP, represente uma nova obrigação e garantia acessória, com credores distintos, faz algum sentido a expressão compartilhamento, já que mais de um credor vai compartilhar o mesmo objeto da garantia.
[2] – Sistema Financeiro Nacional.
O SFN é formado por um conjunto de instituições, financeiras ou não, sob a regulação e fiscalização do Conselho Monetário Nacional, Banco Central do Brasil e CVM – Comissão de Valores Mobiliários. Além dos órgãos normativos e entidades supervisoras, temos os operadores financeiros: Banco do Brasil, CEF, bancos múltiplos, associações de poupança e empréstimo e de crédito hipotecário etc.
Aparentemente, a lei não se aplica para as modalidades de contratação entre pessoas privadas.
A alteração reprisa o art. 3º da Lei 13.476, de/8/2017.
[3] – Pessoa natural ou jurídica.
O credor só pode ser uma pessoa jurídica ou pessoa física que exerça quaisquer das atividades previstas no art. 17 da Lei 4.595/1964. A lei considera “instituições financeiras” as “que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros”.
Já o devedor-fiduciante pode ser pessoa natural ou jurídica.
§ 2º O fiduciante pessoa natural somente poderá contratar as operações de crédito de que trata o caput em benefício próprio ou de sua entidade familiar [1], mediante a apresentação de declaração contratual destinada a esse fim [2]. (NR)
[1] – Uso próprio ou entidade familiar.
O empresário individual equipara-se às limitadas e pode contratar (§ 6º do art. 980-A do CC). De outro modo, não poderia usar a faculdade legal para capitalizar e financiar a sua atividade econômica.
Alguns entendem que esse parágrafo deve ser suprimido. O tema deve ser tratado no âmbito da Lei 8.009/1990, em face dos riscos a que estão sujeitos os agentes financeiros que concedem financiamentos a “entidades familiares”, conceito aberto e repleto de equivocidades.
[2] – Declaração contratual.
Veremos que a declaração deve anteceder a contratação da garantia. V. inc. IV do § 1º abaixo.
“Art. 9º-B [1] O compartilhamento da alienação fiduciária de coisa imóvel deverá ser averbado [2] no cartório de registro de imóveis competente.
[1] – Nova redação.
Meus colegas de estudo propuseram uma nova redação para o artigo supra. Ei-la: “Art. 9º-B A nova dívida garantida pela alienação fiduciária de coisa imóvel deverá ser averbada no cartório de registro de imóveis competente, mediante a apresentação do título respectivo, ordenando-se em prioridade as obrigações garantidas, após a primeira, pelo tempo da respectiva averbação”.
[2] – Averbação.
A noção de principalidade e acessoriedade, tão debatidas na doutrina [2], perdeu completamente o sentido e nada justifica insistir no rigor da classificação metodológica dos atos de registro. Salvo a ideia generalizada de que os custos da averbação são em regra menores do que do registro — o que é óbvio, por se tratar de mero ato acessório –, a distinção já não tem sentido algum. Tanto faz, quanto fez.
Talvez os registradores devam abrir os olhos para o fato de que a sociedade enxerga o sistema registral – “cartorial” –como um aparato custoso e excessivamente burocrático. O processo é complexo e intrincado e se ajusta de modo moroso em face das novas demandas eletrônicas, que tendem a diminuir custos, agilizar e racionalizar processos, a dar velocidade e segurança às transações e atividades registrais.
Paradoxalmente, na sociedade digital só os Registros de Imóveis ditos “eletrônicos” são mais caros que os feitos no balcão das serventias…
§ 1º O instrumento de que trata o caput, que serve de título ao compartilhamento da alienação fiduciária, deverá conter [1]:
[1] – Redação.
Uma vez mais, meus colegas de estudo sugerem uma nova redação, já que ocorre aqui, uma vez mais, a expressão compartilhamento. Vejamos como apresentam uma redação mais enxuta: “§ 1º O título de extensão da alienação fiduciária deverá conter”.
I – valor principal da nova operação de crédito;
II – taxa de juros e encargos incidentes;
III – prazo e condições de reposição do empréstimo ou do crédito do credor fiduciário;
IV – declaração do fiduciante [1], de que trata o § 2º do art. 9-A, quando pessoa natural;
[1] – Declaração do fiduciante.
A declaração é parte integrante do contrato. Como a limitação é de acesso, anterior à concessão do crédito, penso que não pode ser admitida em documento à parte ou apresentada após a contratação (p. ex. no ato de registro).
V – prazo de carência, após o qual será expedida a intimação para constituição em mora do fiduciante;
VI – cláusula com a previsão de que, enquanto o fiduciante estiver adimplente, este poderá utilizar livremente [1], por sua conta e risco, o imóvel objeto da alienação fiduciária;
[1] – Natureza do direito real de garantia.
Essa cláusula é especificação da própria natureza da garantia real. Seria, realmente, necessária? Sem ela o fiduciante não poderia usar livremente do bem gravado?
VII – cláusula com a previsão de que o inadimplemento e a ausência de purgação da mora, de que trata o art. 26 da Lei nº 9.514, de 1997, em relação a quaisquer das operações de crédito [1], faculta ao credor fiduciário considerar vencidas antecipadamente as demais operações de crédito contratadas no âmbito do compartilhamento da alienação fiduciária, situação em que será exigível a totalidade da dívida para todos os efeitos legais; e
[1] – Teoria do dominó – cai uma, caem todas.
O inadimplemento e ausência de purgação de mora de qualquer das obrigações garantidas tornam vencidas antecipadamente, e exigíveis, as demais obrigações na totalidade.
VIII – cláusula com a previsão de que as disposições e os requisitos de que trata o art. 27 [1] da Lei nº 9.514, de 1997, deverão ser cumpridos.
[1] – Requisitos de validade.
Aparentemente, há um equívoco. A indicação do art. 27 da Lei 9.514/1997 trata dos providências sucessivas à consolidação da propriedade. Não ocorrendo qualquer modificação, é recomendável deixar a própria Lei 9.514/1997 tratar da matéria.
§ 2º As operações de crédito, no âmbito do compartilhamento da alienação fiduciária, poderão ser celebradas por instrumento público ou particular [1], mediante a manifestação de vontade do fiduciante e do credor fiduciário, pelas formas admitidas na legislação em vigor, inclusive por meio eletrônico [2].
[1] – A forma não importa.
Tanto faz para o legislador a forma do título – que deixou há muito de ser um requisito substancial dos contratos de garantias reais.
[2] – Títulos eletrônicos.
Ia implicar com a expressão “meio”, que é suporte, via de acesso ou de armazenamento de dados (v. definições do art. 1º da Lei 11.419/2006). Confunde-se o continente com o conteúdo. O meio dos animais marinhos é a água, o do primata é o ar. Mas vá lá, celebração de instrumento eletrônico ou por meio eletrônico acaba dando no mesmo. Melhor seria grafar que o título poderá ser formalizado por instrumento público ou particular, admitida a forma eletrônica.
A questão central, aqui, é a dispensa da garantia de autenticidade (i. e. de autoria), que somente os certificados digitais, previstos no § 1º do art. 10º da MP 2.200-2/2002, ou no inc. I, § 2º, do art. 3º da MP 983/2020 (assinatura qualificada) ou o reconhecimento de firma permitem aferir e autenticar.
§ 3º As disposições do inciso II do caput do art. 221 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, aplicam-se à dispensa do reconhecimento de firmas e às operações garantidas pelo compartilhamento da alienação fiduciária [1].
[1] – Até que enfim alguém percebeu.
Os instrumentos celebrados por instituições que atuam no âmbito do SFH (e que integram o SFN) não necessitavam da autenticação (inc. II, in fine, do art. 221 da LRP). Teoricamente, somente esses instrumentos escapavam do preenchimento do pré-requisito do reconhecimento de firma ou de autenticação. Alguém muito bem informado resolveu o problema. Mas o resolveu de modo defectivo. A contrario, todos os demais contratos de alienação fiduciária, celebrados fora do contexto do SFH, devem ter a firma reconhecida.
“Art. 9º-C Constituído o compartilhamento da alienação fiduciária, a liquidação antecipada de quaisquer das operações de crédito, original ou derivada, não obriga o fiduciante a liquidar antecipadamente as demais operações de crédito vinculadas à mesma garantia, hipótese em que permanecerão vigentes as condições e os prazos nelas convencionados [1].
[1] – Texto rebarbativo.
Novamente a expressão compartilhamento, tão extravagante e inamistosa para os ouvidos dos juristas.
I – ao credor expedir o termo de quitação relacionado exclusivamente à operação de crédito liquidada; e
II – ao oficial do registro de imóveis competente fazer a averbação na matrícula do imóvel.[1]” (NR)
[1] – Averbação de cancelamento
O inciso I do art. 251 da LRP trata especificamente do cancelamento da hipoteca. Em vez de inserir na própria LRP as disposições relativas ao processo de registro, preferiu a MP investir na profusão assistemática de disposições concernentes ao processo registral. Notem que o reconhecimento de firma não está dispensado, mesmo quando a quitação provenha do agente financeiro e por meio eletrônico; vigora, portanto, o disposto no inc. II do art. 221 da LRP.
“Art. 9º-D Na hipótese de inadimplemento e ausência de purgação da mora, de que trata o art. 26 da Lei nº 9.514, de 1997, em relação a quaisquer das operações de crédito, independentemente de seu valor, o credor fiduciário poderá considerar vencidas antecipadamente todas as demais operações de crédito contratadas no âmbito do compartilhamento da alienação fiduciária, situação em que será exigível a totalidade da dívida para todos os efeitos legais [1].
[1] – Mesmo credor?
V. inc. VII, § 1º do art. 9-A supra.
§ 1º Na hipótese prevista no caput, após o vencimento antecipado de todas as operações de crédito, o credor fiduciário promoverá os demais procedimentos de consolidação da propriedade e de leilão de que tratam os art. 26 e art. 27 da Lei nº 9.514, de 1997.
§ 2º A informação sobre o exercício, pelo credor fiduciário, da faculdade de considerar vencidas todas as operações contratadas no âmbito do compartilhamento da alienação fiduciária, nos termos do disposto no caput, deverá constar da intimação[1] de que trata o § 1º do art. 26 da Lei nº 9.514, de 1997.
[1] – Intimação – faculdade do credor.
Diz o § 1º do art. 26 da Lei 9.514/1997 que, a requerimento do fiduciário, o oficial do Registro de Imóveis intimará o fiduciante, ou seu representante legal ou procurador regularmente constituído, a satisfazer a prestação vencida e as que se vencerem.
O Oficial deverá destacar a informação sobre a faculdade concedida pela lei ao credor.
Mas cá entre nós: informar que o credor tem a faculdade de exercitar o direito ou que o exercerá contra o devedor fiduciante no caso concreto são coisas distintas, já que essa faculdade vem explicitada no contrato (inc. VII, § 1º do art. 9º -B).
§ 3º Serão incluídos no conceito de dívida de que trata o inciso I do § 3º do art. 27 da Lei nº 9.514, de 1997, os saldos devedores de todas as operações de crédito garantidas pelo compartilhamento da alienação fiduciária.
§ 4º O disposto no § 5º do art. 27 da Lei nº 9.514, de 1997[1], não se aplica às operações garantidas pelo compartilhamento da alienação fiduciária, hipótese em que o credor fiduciário poderá exigir o saldo remanescente, exceto quando uma ou mais operações tenham natureza de financiamento imobiliário habitacional contratado por pessoa natural[2].
[1] – Extinção da dívida.
Reza o “§ 5º: Se, no segundo leilão, o maior lance oferecido não for igual ou superior ao valor referido no § 2º, considerar-se-á extinta a dívida e exonerado o credor da obrigação de que trata o § 4º”…
[2] – Exceto… “quando uma ou mais operações tenham natureza de financiamento imobiliário habitacional contratado por pessoa natural”. Eis o contubérnio negocial (crédito imobiliário + “abertura de limite de crédito”) que pode ocorrer com o compartilhamento do objeto da garantia. Nesse caso – e o registrador deve estar atento a isso – não pode ser cobrado o saldo remanescente.
§ 5º O disposto no art. 54 da Lei nº 13.097, de 2015[1] [2], aplica-se às contratações decorrentes do compartilhamento de alienação fiduciária.” (NR)
[1] – Concentração na matrícula.
Reza a Lei nº 13.097, de 2015: “Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações”
[…].
[2] – “Pegar no tranco”.
Curioso o ecossistema do direito processual brasileiro. Certas disposições claríssimas da lei não são percebidas pelos operadores que têm a visão aparentemente obscurecida pela praxe processual viciada por decisões iterativas que ignoram dispositivos legais longevos que consagram a eficácia do registro e a inoponibilidade dos fatos não inscritos.
O que se haverá de entender por “negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis”? Será necessário dizer acacianamente que um direito real de garantia é um direito real de garantia? A melhor maneira de reforçar a “eficácia” da inscrição registral (outra expressão que se acha no art. 54 da lei citada) é modificar a forma da publicidade registral, que deve revelar claramente a situação jurídica dos titulares de direitos sobre bens imóveis, sem embalar, nas profusas certidões expedidas em forma reprográfica, as vicissitudes e circunstâncias que já não vigem, como atos cancelados direta ou indiretamente, anotações, averbações esclarecedoras, de cancelamento etc.
[2-a] – Babel informativa.
Essa babel informativa será potencializada se for aceita a emenda 286 oferecida ao PLC 20, de 2020, da Medida Provisória 944/2020, que passaria a vigorar acrescido do seguinte:
“Art. 18-A. O credor ou apresentante poderá solicitar ao tabelião de protestos, diretamente ou por intermédio de sua Central Nacional de Serviços Eletrônicos Compartilhados, o envio da anotação e registro do débito protestado, mediante pagamento dos valores dos emolumentos nas mesmas bases dos valores exigidos para o ato elisivo do protesto e demais despesas, inclusive aquelas exigidas para integração de dados e derivados, relativos à remuneração e custos operacionais devidos à manutenção, gestão e ao permanente aprimoramento do sistema e estrutura da Central Nacional de Serviços Eletrônicos Compartilhados, para averbação na matrícula dos bens imóveis de sua propriedade plena e nos órgãos ou sistemas de registros de propriedade e gravames veiculares e de outros bens móveis, por ele indicados, para preservação da exigibilidade do crédito protestado e elidir prejuízos a terceiros de boa fé, observando-se o seguinte:
I – será expedida nova intimação ao devedor, nos termos dos artigos 14 e 15 da Lei n 9492, de 10 de setembro de 1997, dando-lhe o prazo de 15 dias úteis para saldar o débito, e requerer o cancelamento do protesto, sob pena das averbações de anotações requeridas;
II – não atendida a intimação, ou não havendo questionamento judicial dentro desse prazo, o débito protestado será enviado para as averbações e anotações solicitadas;
III – O cancelamento das averbações realizadas pelos cartórios de registro de imóveis ou as anotações pelas entidades ou órgãos dos débitos protestados, depende do prévio cancelamento do protesto comunicado pelo tabelionato de protestos
Haverá expressão mais nítida de subversão do sistema registral (e notarial) do que este? Abstenho-me de comentar essa aberração jurídica. Certamente não passará desapercebida aos que ainda se mantêm sãos nesse “novo normal” que nos impõe a pandemia.
Art. 15. A Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 167. …………………………………………………………………………………………..
II – ………………………………………………………………………………………………..
33. do compartilhamento de alienação fiduciária por nova operação de crédito contratada com o mesmo credor, na forma prevista na Lei nº 13.476, de 28 de agosto de 2017.”[1] (NR)
[1] – O acessório que virou principal.
Tenho qualificado de “mixórdia registral” as recentes reformas legais e normativas que, muitas delas, são impulsionadas pelos próprios registradores imobiliários. O mistifório registral decorre da geleia geral da cultura jurídica brasileira. Nosso caso revela um subproduto desse fenômeno. O melhor seria qualificar todos os atos registrais – averbações e registros – como “inscrições” e com isso acabar com a babel classificatória.
A expressão “averbação” remonta às origens do regime da publicidade hipotecária [3]. Afrânio de Carvalho nos lembra que a averbação sempre ostentou uma posição fixa no direito formal, “isto é, à margem do assento sobre o qual o ato modificativo influi, o que bem se compreende por ser um assento por verba” [4]. É um elemento acessório e que sempre pressupôs a existência do ato principal, à margem do qual se alocava a verba. Diz ainda que “não é ontológica a diferença entre a inscrição e a averbação, que surgiu devido ao modelo do livro, dotado de margem para aposição de verba” [5].
A importância dos meios de suporte material na configuração dos processos de registro é patente. Se já não havia qualquer sentido acolher a expressão averbação na Lei 6.015/1973, já que não há “margem” na matrícula para situar o ato acessório, com muito mais razão ainda a sua manutenção no âmbito do SREI é simplesmente arcaísmo que resiste bravamente unicamente em razão da tradição.
NOTAS
[1] Os colegas se manifestaram em comunicação privada com o editor do Observatório do Registro e autorizaram a veiculação de suas críticas e opiniões. Oportunamente eles produzirão material de caráter doutrinário sobre os temas tratados nesta medida provisória.
[2] SERPA LOPES distinguia muito bem as hipótese. Depois de tratar da transcrição e da inscrição (atos principais), disse que temos “a averbação, quando se cogita de atos ou fatos, fora das duas categorias principais supracitadas, mas que, nada obstante, possam ou modificar a situação jurídica normal dos titulares de direito real ou mesmo a própria situação física do imóvel, como a mudança de numeração, a transformação em edifício de apartamento, etc.”. SERPA LOPES. Tratado. Vol. I. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960, p. 27.
[3] V. art. 18 e ss. do Decreto 482, de 1846.
[4] CARVALHO. Afrânio. Registro de Imóveis. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982.
[5] Idem, ibidem.