Espiritualidade e as novas tecnologias

Aldous Huxley by Fabrizio Cassetta

Aldous Huxley sempre me surpreende. O admirável mundo novo se assenta sobre a ideia da servidão voluntária. Como o Estado despótico a obtém dos súditos? Por meio de sexo, drogas e música eletrônica.

Em 1946 ele dizia: “Dentro de alguns anos, sem dúvida, passar-se-ão licenças de casamento como se passam licenças de cães, válidas para um período de doze meses, sem nenhum regulamento que proíba a troca do cão ou a posse de mais de um animal de cada vez. À medida que a liberdade econômica e política diminui, a liberdade sexual tem tendência para aumentar, como compensação”. E arremata: “juntamente com a liberdade de sonhar em pleno dia sob a influência de drogas, do cinema e da rádio, ela contribuirá para reconciliar seus súditos com a servidão que lhes é destinada”.

A “cerimônia da solidariedade” (Cap. V) é uma paródia de uma liturgia cristã. Como uma espécie de simulacro, Huxley cria uma ambiência numinosa a partir de um ritual decalcado do rito eucarístico. Conduzidos por Morgana Rothschild (note o nome), os 12 partícipes (olhe o número) são embalados por drogas, sexo, música, inspirados por um ente assustador que se não revela inteiramente no livro, mas está presente na orgia-folia (orgy-porgy):

Ford and fun
Kiss the girls and make them One.
Boys at 0ne with girls at peace;
Orgy-porgy gives release.
Kiss the girls and make them One.
Boys at 0ne with girls at peace;
Orgy-porgy gives release”.

O livro é revelador do declínio da espiritualidade ocidental que se rende a simulacros e à satisfação de prazeres sensoriais.

É possível empreender uma leitura iniciática desse livro. Resta-nos lamentar que Huxley termine a obra sem nos dar ou revelar alternativas. Entre a loucura hipermaterialista do mundo tecnológico e a vida tisnada pela dor e sofrimento, não há mais nada, nonadas, quando sabemos que há, certamente, um infinito e além.

Este pequeno texto foi originalmente postado noutra parte em 10/5/2016. Hoje lembrei-me dele por conta de um encontro em que se discutiu o impacto de novas tecnologias na sociedade. Fica aqui a lembrança, certo de que o tema poderia render uma nova rodada de discussões, agora com o ajuste do foco que, a meu sentir, deveria ser a espiritualidade e as novas tecnologias. (SJ)

2 comentários sobre “Espiritualidade e as novas tecnologias

  1. Caro SJ, às vezes penso: o cara é um bibliófilo, um filósofo que vive em uma megalópole e lida com registros públicos. Qual deles se salvará? Respondo: ambos, talvez. Mas, para o bem do registro de imóveis no Brasil, existe um escrevinhador (no sentido lloseano) genial como você! Parabéns! Fiquei com vontade de reler Huxley, que estranhamente conheci após ler sobre Mark Twain em uma revista literária americana… há anos.

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