Um velhacaz refinadíssimo e contumaz

Disputatio 1

Vivemos a “era do barraco” nos balcões de atendimento dos Registros e das Notas brasileiros.

Este traço da cultura brasileira – que se tornou o tema de uma época de barbárie – se espalhou como expressão de uma deformação dos costumes. Algo parecido ocorre com a irrupção violenta de episódios de coprolalia nas artes em geral, na imprensa, na TV, cinema, etc. Vivemos a época do apelo às pulsões, à exploração de baixos instintos, do mal gosto e da fealdade.

Dr. F. é registrador numa pequena e aprazível cidade do interior de São Paulo. Relatou-nos, em postagem feita em grupo privado de discussão, que foi afrontado por um advogado que, não se conformando com a exigência feita pelo Cartório, detratou funcionários e o próprio Oficial.

Todos os colegas que se pronunciaram naquele ambiente protegido recomendaram paciência e uma certa dose de resignação. Não valeria a pena recalcitrar o causídico ou representá-lo na Ordem respectiva; nem tomar qualquer outro tipo de providência judicial. Todos testemunharam que haviam passado por situações semelhantes, chegando à conclusão de que a atitude recomendável – além da urbanidade, respeito e profissionalismo que timbra a atividade – deveria ser de um certo desdém sobranceiro. A burrice é invencível, já dizia o poeta.

Também subscrevi recomendação de prudência e cautela.

​Olá Dr. F.

​Parece que se fez unânime entre todos a recomendação de resignação e docilidade. É prudente, de fato, o conselho dos maiores e eu subscrevo serenamente a exortação.

Quantos absurdos já experimentei… Deus sabe, querido colega, quantos sapos engoli ao longo desta jornada que se faz longa, mercê de Deus.

Ainda ontem, depois da entrevista coletiva com o des. Ricardo DIP, visitei um querido amigo, o Dr. Ermitânio Prado.

Alguns o conhecem pessoalmente. Outros dele tiveram notícia pela opinião extravasada nestas páginas, tingida pela rabugice empedernida do velho jurista. Iniciei uma profunda amizade com este advogado aposentado no exato momento em que prenotava um pedido de cancelamento de hipoteca, perempta havia pelo menos 20 anos. Rogava, com sua verba peculiar, o cancelamento do “ônus que pesava como sombra vetusta sobre a inscrição dominial”. Apaixonei-me pela personalidade cativante daquele velho homem cujas cãs inspiravam respeito e consideração.

Desde então, visito-o regularmente. O Velho inspira cuidados. Penso que sou o único a visitar-lhe nestes dias pardacentos de muita fealdade e ruídos.

O Velho estava ali, onde parece ter estado desde sempre, esfalfado, quase assimilado ao cenário art déco de seu apartamento. Quando adentrei o vestíbulo, vi que estava entretido com uma edição rara de Philonis Ivdaei, com glosa e comentários de Sigismundus Gelenius, ao abrigo de sua Sheriff (“peça original do Sérgio Rodrigues”, sempre resmunga).

Cumprimentei-o e confidenciei, logo à entrada, que estava estomagado com o tratamento desrespeitoso que temos recebido ultimamente no balcão dos cartórios.

Fez-se um longo silêncio. O Velho caiu naquele estado de arrebatamento febril. Reclinou a nuca sobre uma almofada de veludo encarnado e numa palração hipnótica começou a rumorar:

Os notários sofrem de um crônico padecimento que é sinal de baixa-estima. Desde a época d​o Brasil​ Colônia, quando os tabeliães ocupavam uma posição basal na pirâmide da burocracia seiscentista​,  desde a época em que “leterados”, alguns degredados, submetiam-se devotamente a regras ​revogadas ​das Ordenações​, era comum divisar nesses profissionais um sinal que inferia indignidade pessoal, ​nota censoria ​ infamante, inscrita na própria cútis.

Inclinou a face para o canto direito e observando o branco embaciado das paredes nuas deixou-se levar por um fluxo de pensamentos turvos.

Dr. Jacomino, eles tinham os lóbulos perfurados! Traziam o signo indelével gravado não só no próprio corpo, mas cerzido na alma, o que acabou tisnando a própria profissão. Lembra-me o querido amigo e mestre, Dr. Álvaro D´Ors, que traçou o percurso acidentado da palavra nota, da qual terá germinado a de notário. ​Apontou, na lavra erudita que empreendeu em busca do étimo, à acepção ​que dela se podia extrair: mancha na pele, sinal, natural ou não, que servia para distinguir uma pessoa, um animal, um objeto qualquer. Rafael Nuñez Lagos recitava que “no princípio foi o documento. E o documento criou o notário”. Muito bem, no nosso caso, essas notas indignas, bordadas e cifradas na própria pele, forjaram este tabelião cariboca, cujo aniversário de 450 anos se comemora neste ano da graça de NSJC. Mais do que qualquer outra carreira jurídica, os nossos tabeliães (e registradores), padecem, na expressão de Nelson Rodrigues​, do complexo de vira-lata.. Por essa razão não se dão o devido respeito.

“Calma lá!” – redargui. “Devagar com o andor, Dr. Prado!”. Disse-lhe que agora somos “profissionais do Direito”, temos a garantia legal da autonomia e da independência jurídica no exercício de nosso mister. Muitos de nós fomos provados por disputados concursos  públicos, somos talhados para o nobile officium. Não devemos nada a qualquer outro profissional do Direito!

Mas o Velho seguia impassivo. Num rumor fanho, claudicante, emitia um fiapo de voz, quase imperceptível:​

“Até quando os Srs. encarnarão o papel de bourgeois gentilhomme, encarnando a persona de nababos ilustrados e fartos à custa de prebenda? Até quando vão incorporar o estigma de Monsieur Bonnefoi, numa rabulice tocada pela prenda emolumentar? Até quando manterão na aura o pardacento signo infamante da sabujice típica de um contínuo? Ora, Dr. Jacomino, ora bolas! Reaja como um homem de brios!

O Velho se aborrece e irrita facilmente – especialmente quando percebe que o estigma da “sabujice típica de um contínuo” domina a praxe cartorária, impedindo-a de se firmar como atividade digna e respeitável. Na sua opinião, as entidades de classe deveriam reptar todo aquele que depreciasse ou afrontasse injustamente o profissional das Notas ou do Registro.

Falta energia para arrostar as invectivas calcadas em preconceito e inveja. Falta acionar judicialmente aqueles que afrontam os registradores de modo injusto e inadequado; falta buscar a reparação a danos morais. Somente a partir do instante em que os próprios notários e registradores livrarem-se do mal-estar e do pejo de ser o que se é, somente então é que se imporão como profissionais respeitados.

O Velho reconhece o assoalho sobre o qual se armam o despeito e a invídia.

Deixo-o fabulando e recontando as velhas histórias da burocracia colonial.

Já lhes disse que, além de advogado aposentado, o Velho é um especialista em legislação revogada e amante do direito notarial. Queria ser tabelião na velha Bracara Augusta. Agora mesmo se pôs a contar a história da atividade notarial na São Paulo colonial. Recita, para uma plateia invisível, a farsa do primeiro tabelião paulistano, “um velhacaz refinadíssimo e contumaz”, chamado Fructuoso da Costa.

Um dia, quem sabe, volto para lhes reportar o que me disse o Velho a respeito dessa figura pitoresca que tinge de opróbrio a história do tabeliado brasileiro, mas que lhe dá, por outro lado, um toque de encardida humanidade e nos convoca a uma tocante compaixão.

Deixem passar as efemérides comemorativas dos 450 anos do notariado brasileiro. E… que vivam os notários e registradores brasileiros!

4 comentários sobre “Um velhacaz refinadíssimo e contumaz

  1. O conselho dado ao colega Dr F. foi o primeiro que me ocorreu, mas reconheço que o seu amigo Dr. Prado tem um ponto: talvez nossa passividade contribua para a falta de respeito com que nos tratam.

  2. Isto é nossa história. Precisamos de mais relatos. Parabéns, mestre Sérgio, por nos brindar com essa peça para termos um melhor final de semana.

  3. O Velho tem razão! Apesar de nossa autonomia e independência jurídica, nos falta força (ou coragem) para combater injustiças e desmandos que partem, muitas vezes, de quem deveria orientar e fiscalizar.
    Parabéns pelos artigos Dr. Sérgio!

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