Adros de Cérbero

Cerberus
Cerberus

O Dr. Ermitânio Prado é um jurista enfadado da prática judiciária – “incluída, especialmente, a notarial e registral”, emenda rapidamente. Sempre o consulto sobre os assuntos do dia nas visitas semanais que faço em seu apartamento na Avenida São Luís, no centro de São Paulo, onde mora desde a década de 70 num confortável piso art déco. Homem solitário e doente (sofre da gota), talvez seja o único amigo a resistir ao seu humor ciclotímico e alucinado.

O velho é um atento observador. Não vê TV, nem será encontrado navegando nas redes sociais, mas é um contumaz leitor de jornais. Vejo espalhado pelo apartamento, ao lado de sua poltrona Sheriff – “peça original do Sérgio Rodrigues”, resmunga – exemplares desfolhados do Estadão, do Financial Times, The Economist, Folha de São Paulo, Corriere della Sera e tantos outros que não identifico.

O Velho está sempre disposto a discutir comigo temas de interesse comum, desde música clássica (ele adora Wagner) até religião (ultimamente anda embevecido pelas lendas do povo judeu compiladas por Mikhah Yosef Bin-Gorion). Nos interregnos, conversamos animadamente sobre direito registral, outra de suas manias. Confessou-me, certa feita, que adoraria ter sido tabelião em Portugal no século XIV. Coisas do velho que eu não compreendo, nem discuto.

Nesta semana encontrei-o especialmente excitado pela divulgação da Resolução BACEN 4.399, de 27/2/2015, que dispõe sobre o “registro de garantias constituídas sobre imóveis”. Eu estava feliz porque a peça regulamentar alterou, segundo alguns para melhor, a redação da anterior Resolução 4.088, de 24 de maio de 2012. Dizia-lhe, esperançoso, que a norma agora se referia a “registro de informações” – e não mais a “registro de garantias” – mantida a inscrição das garantias reais onde sempre estiveram: no Registro de Imóveis.

Mas a minha animação não o contagiou. Disse-me que a instituição registral sofre de uma doença crônica que a está minando, pouco a pouco, exaurindo-a das forças vitais. “O que é um ‘registro de informações’ sobre garantias reais que não um registro de caráter jurídico?”, perguntou-me.

Depois deitou falação sobre as distinções entre moléstias agudas e crônicas e entreteceu uma longa e confusa metáfora sobre a capacidade do organismo sadio de reagir com maior energia e eficácia às injúrias violentas e repentinas. “Ao contrário das moléstias agudas”, diz ele, “a enfermidade crônica dispensa seus agentes num sórdido ataque sub-reptício, instalando-se nas reentrâncias do organismo hígido e esgotando a sua capacidade de reação natural”. Concluiu, de modo sinistro: “o câncer é como uma guerrilha travada no coração da cidade. A vitória se desenha exatamente quando ainda é difícil distinguir o inimigo das forças leais ao príncipe”.

Não sou dado a metáforas. Sou um homem prático. Trouxe à tona o Velho que mergulhava num extático solilóquio. “Aos fatos, Dr. Ermitânio, aos fatos!”.

“Pois bem, caro amanuense!” – sempre inicia a oração assim para me irritar. “Esses registros extravagantes vêm ocupando importantes lacunas deixadas pelos próprios registros públicos brasileiros. Primeiro foi o RTD, com seus registros de alienação fiduciária e de garantia de bens móveis, de cauções em garantia de cumprimento de obrigações, etc. Foi o primeiro a tombar em face da investida político-burocrático-tecnológica desses registros “público-privados” espúrios. Que importância terá, para os tribunais superiores, o fato de que o registro da alienação fiduciária no RTD ostente o caráter constitutivo do próprio direito? Bah! Filigranas jurídicas que já não convencem os práticos operadores do direito de alto coturno. Como dizia o camarada Xiaoping, ‘não importa se o gato é preto ou branco, desde que cace os ratos’. Esse pragmatismo interessado leva à desestruturação do sistema. Consumado que foi o solapamento do RTD, as baterias agora se voltam para o Registro de Imóveis”.

Redargui, dizendo que a inovação não era assim tão inovadora, já que vinha prevista desde a década de 90 no § 1º do art. 7º da Lei 9.514/1997 e mesmo os chamados “sistemas de registro e liquidação financeira de títulos privados”, custodiavam as CCI´s, conforme previsto no § 4º do art. 18 da Lei 10.931/2004. Disse ao Velho que havia escrito sobre as anomalias da transmissão da propriedade fiduciária pela cessão de crédito realizada nesses sistemas registrais alternativos. E aí? Nada de novo no front… O Velho estava inflexível:

“Escriba! Os registros públicos tradicionais acham-se no eixo de uma grande guerra pela ocupação das trincheiras institucionais dedicados à publicidade de situações jurídicas. O passe recente do BACEN indica um movimento de peças importante. Vale a pena refletir um bocado. De um lado, temos a visão ideológica (geralmente estúpida) daqueles que entendem que Registro, sendo público por definição, não se o pode delegar ao privado. O Estado deve prover todas as necessidades do cidadão – inclusive tutelar, como a incapazes, e sem que seja rogado, os seus interesses privados. Deste bando fazem parte barnabés ingênuos e ideólogos malformados de todas as latitudes. Já na outra banda, encontramos as grandes potestades econômicas, geralmente representadas pelo capital multinacional em contubérnio com os financistas tupiniquins. Note: as recentes aquisições de tais registros extravagantes foi feita por cifras estratosféricas (bilhões de dólares)”.

E seguiu, de olhos fechados, divagando:

“Aqui, as paralelas se encontram muito aquém do infinito. Alguns ideólogos, feito cracas incrustadas na crosta intestina da máquina estatal, agitam suas penas com a rabulice ágil e solerte de ladinos a decretar o desmonte dos Registros Públicos. Adrede, arreganham-se em gostosas concessões de gratuidades plenárias, fundando-se em flatos de péssima doutrina e pior tenção. Já os financistas capturam as instâncias regulatórias, feitas radiolas de ventríloquos, a palrear desígnios normativos num transe hipnótico. Deitam-se, à tarde, no tálamo barregão e fumam vagarosamente seus Spud Menthol Cooled Cigarettes e bebem, e fartam-se e bendizem o santo dia da regulação”.

“Dr. Emitânio!” – chamo-o pelo nome como quem resgata a um náufrago.  “Volte, Dr. Ermitânio!”. Debalde. Deixo-o livre para exercitar a sua verbosidade febril.

“O art. 1º da Resolução agora prevê que o tal registro, antes cometido exclusivamente a instituições financeiras e demais instituições autorizadas pelo Banco Central do Brasil, agora pode ser mantido por entidade que exerça a ‘atividade de registro de ativos financeiros’. Isto quer dizer, simplesmente, que foram escancaradas as portas para exploração do mercado de publicidade de situações jurídico-reais, não só quando estas decorram da mobilização do crédito. Colhem-se e se publicitam os próprios direitos de garantia”.

O velho não se deteve. Seguiu pontificando sobre os desastres institucionais ocorridos ao longo do tempo e reiterando a ideia de que esta Resolução representa uma etapa importante na reengenharia do sistema de publicidade registral do país.

Disse-me que essas mudanças são calculadamente graduais e envolvem um traçado estratégico que visa à progressiva substituição dos pesados e anacrônicos registros tradicionais por modernos sistemas centralizados. Lembrou que esse repositório deve ser de âmbito nacional (inciso I, § único, do art. 1º da Resolução 4.088, de 24/5/2012) e que os dados devem se basear em informações que serão requeridas aos registros de imóveis ou mesmo dos bancos (inc. I do art. 3º da dita resolução). Ou seja: segundo o Velho, está estabelecida a concorrência entre os sistemas de registro. De um lado, registros centralizados, criados e mantidos inteiramente em meios eletrônicos, autofinanciados e autorregulados por regras de mercado e supervisionados pelo Banco Central do Brasil. De outro, os Registros Imobiliários tradicionais, anacrônicos, burocráticos, mantidos em meios cartáceos, descentralizados, desconectados e regulados de modo assimétrico (inc. XV do art. 30 da Lei 8.935/1994).

Segundo o Velho, o fato desses órgãos ou instituições se intitularem “registro” e não “cadastro” – como eventualmente seria conveniente e adequado – aponta para a progressiva assimilação de típicas atribuições dos registros de direitos. “Até mesmo os atributos de publicidade e eficácia – palavras-chaves no âmbito dos registros públicos de direitos – foram furtados alhures, como um rapto prometeico” (art. 63-A da Lei 10.931/2004)”.

Obtemperei que o perfil desse registro privado é mais limitado que o tradicional e que, afinal, objetiva outras finalidades. Mas o velho segue impassível: “limitado, bulista? Na verdade, está ampliado, com a previsão de dados e elementos especializantes que servirão, às maravilhas, ao tráfico jurídico-imobiliário, como, por exemplo, o estado de conservação e padrão de acabamento do imóvel – além de dados estatísticos que os próprios registros públicos poderiam prover. Não nos esqueçamos que o RTD perdeu o registro de veículos automotores para essas mesmas entidades porque estava (e está!) organizado precariamente, seguindo o espartilho institucional engendrado do século XIX, com registros atomizados e descentralizados, assíncronos, assimétricos, inacessíveis em redes eletrônicas e, principalmente, não contavam com índices que permitiam a especialização dos bens pelos seus atributos e elementos identificadores essenciais. O Registro de Imóveis não está muito longe disso! Se a territorialidade ainda lhe oferece uma certa vantagem em relação ao RTD, não podemos nos esquecer que essa regra operativa acaba de ser suplantada por modelos eletrônicos em que a independência jurídica do registrador fica garantida pela distribuição aleatória dos títulos”.

Lembrei ao Dr. Ermitânio Prado que o registro agora criado aplica-se às “operações de financiamento para a aquisição de imóvel residencial e de empréstimo a pessoa natural garantido por imóvel residencial”, inclusive nos casos de portabilidade e que o cadastro deverá conter a indicação do número da matrícula e do registro da garantia (Circular Bacen 3.747, de 27.2.2015). Isto, disse-lhe, afastaria a ideia de substituição de um sistema por outro. Depois, à guisa de conclusão, disse que esses dados centralizados em instituição fiscalizada pelo Banco Central e pela CVM são uma garantia de que não ocorra, aqui, o fenômeno do subprime que desencadeou a crise financeira nos Estados Unidos.

Mas a implicação do velho é enorme: “isto é uma grande besteira, hypomnemata! Se o Sr. estudasse atentamente o fenômeno do subprime verificaria que o colapso ocorreu em virtude de inacreditável erro de cálculo de matemática financeira no espraiamento de riscos oriundos da originação e da circulação de créditos no mercado secundário. Penso que o colapso é fruto do acaso e de interesses – ainda que a ideia lhe soe paradoxal. Muitos perdem; alguns ganham, se é que me entende, exceptor. Depois, o MERS [Mortgage Eletronic Registry System] progressivamente foi substituindo os anacrônicos registros feitos em alguns condados de modo que, em pouco tempo, já não havia sentido algum em se fazer um registro duplicado. Seria um custoso bis in idem.

Seguiu seu discurso monocórdio, metaforizando febrilmente e vaticinando cenários funestos para o sistema registral.

Deixei-o imerso em seus pesados devaneios. Ao cerrar a porta, ainda o ouvi imprecando contra as entidades de classe, dizendo que já vislumbrava Cérbero nos átrios infernais, “recepcionando as cigarras tonitruantes a cantar: “Ó abre alas que eu quero passar / Ó abre alas que eu quero passar / Eu sou da lira não posso negar”.

Um comentário sobre “Adros de Cérbero

  1. Melhor que comentar é meditar. Meditar muito sobre a visão do velho, Dr. Ermitânio, que parece ter razão nas suas verdadeiras manifestações proféticas. Astuto e sisudo. Já não existimos. Estamos vivendo a inocência, sem estratégia, acreditando que tudo está muito bem, embora, no íntimo, cada um sinta uma ponta de desesperança e de ausência de representatividade pensante. Estamos carentes do Dr. Ermitânio a nos representar.

Deixe uma resposta