Disrupção parece ser a palavra-chave de uma nova ordem globalista. Nada há que não possa ou deva ser derruído por trombetas poderosas sopradas pelos arautos da boa nova. Eis que está prometida a fiéis e incréus uma nova Jerusalém eletrônica. Anima-os a esperança derradeira que haverá de resgatar, brasileiros e brasileiras, do pântano miasmático de leis, normas, regulamentos, formalidades, no qual todos chafurdam em pranto e com ranger de dentes.
A blockchain é a nova panaceia para todas as mazelas institucionais do país. O lema de seus defensores, alguns ingênuos, outros adrede interessados, parece ser este: “vamos enforcar o último burocrata com as tripas do último cartorário”.
Vamos enforcar o último burocrata com as tripas do último cartorário
“Senhores, vamos acabar com os cartórios. Vamos acabar com os cartórios. Vamos acabar!”. Quem o diz, com volúpia incontida, é um importante ator que se inebria com aplausos. Não há plateia que não se dobre ao encantamento deste tipo de convocação. Vamos acabar com os cartórios, e com eles a transparência nas transações, a regulação social, a fiscalização pelo Poder Judiciário, deixando a autenticação e a contratação privada entregues aos escaninhos da internet – quando não aninhadas nas brumas da Mariana´s Web. Na mesma toada poderíamos bradar: “vamos acabar com advogados, aderindo aos smart contracts”, vamos aposentar os médicos, assinando os protocolos do Watson. Vamos destruir as catedrais porque são o espírito de outro tempo e já não servem para mais nada além de ambiência romântica.
Livres do formalismo e do concerto social, tudo é válido, tudo é permitido, tudo é livre.
A tecnologia da blockchain parece ser o assunto da moda, aquilo de que falam todos e todas. O que será que “andam sussurrando em versos e trovas”? Será um hype? A solução para todos os nossos problemas atuais e futuros? Será a cornucópia da pós-modernidade ou o jarro de Pandora do globalismo? Todos aludem a suas cândidas virtudes quando se trata de substituir os terceiros garantes nas complexas relações interpessoais, especialmente aquelas relacionadas aos intercâmbios de bens imóveis. Trata-se de um novo otimismo, de uma nova esperança. Estamos diante de um Titã redivivo, sem nome, representante de um novo tempo que se consuma instantaneamente, aqui e agora. Sua obra será composta de atos despersonalizados, desterritorializados, atemporais, eternos e imutáveis como nossas arcaicas quimeras.
“Dr. Pangloss recomenda enfaticamente o uso da blockchain para registro de imóveis e tratamento de furúnculos”.
Confesso que fiquei verdadeiramente perplexo com as declarações de um jurista respeitável, diretor jurídico de uma instituição igualmente honorável, pontificando perante uma plateia não menos importante. O seu pronunciamento se deu no transcurso do Simpósio Nacional de Combate a Corrupção, promovido pela Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal – ADPF, com intuito de discutir o fenômeno da corrupção epidêmica que assola o país. O evento se realizou no dia 9/11/2017, no auditório das Faculdades Integradas Rio Branco.
Causou-me perplexidade e angústia. Afinal, as ideias lançadas de modo ligeiro podem levar a conclusões redondamente equivocadas. Construiu-se, na parolagem inflamada e pseudo-ilustrada, uma narrativa que encanta desavisados. Irresponsabilidade. Trata-se de um desserviço à sociedade e às instituições.
Dei-me ao trabalho de reduzir a fala do jurista no texto que o leitor pode apreciar abaixo. O acesso ao pronunciamento pode ser feito no seguinte endereço: https://youtu.be/sowb2IDRx6w?t=1h28m4s.
Os inter títulos não são do palestrante.
Enfim, adiro, inteiramente, à blague do Dr. Ermitânio Prado: “Dr. Pangloss recomenda enfaticamente o uso da blockchain para registro de imóveis e tratamento de furúnculos”.
4 bilhões de reais nos últimos 3 anos
Blockchain é uma grande oportunidade de novos negócios e de novas oportunidades de autenticação de documentos na internet.
Eu vi uma reportagem que os cartórios, com as atas notariais, faturaram 4 bilhões de reais nos últimos 3 anos. Eles removem os documentos da internet e fazem a ata notarial. Vamos supor que com a tecnologia blockchain – supor não, isto é uma realidade! – eu possa certificar esses documentos e dar fé e certeza a esses documentos. Nós não temos hoje as empresas (Certsign etc) empresas de certificação que fazem esse trabalho de forma privada (de certificação digital)? Porque a ADPF não pode montar, com tecnologia blockchain, um cartório virtual privado? (na Escola Nacional de Delegados, na OAB-SP), nós não tiramos xerox para os advogados? porque não podemos ir na sala de advocacia, e, com a tecnologia blockchain, certificar os documentos que serão utilizados (…) em juízo?
Senhores, vamos acabar com os cartórios. Vamos acabar com os cartórios. Vamos acabar! [aplausos].
Eu vou amanhecer boiando. [risos].
Post truth. A história será o que deseja seu narrador
A igreja fazia a certificação de documentos. O estado percebeu que isso era rentável e o rei pegou para si, depois a burguesia pegou para si… Mas isto tem que ser devolvido. A FIESP tem hoje convênios com a Junta Comercial para agilização de documentos. Porque a FIESP […] não pode fazer a certificação de documentos extraídos pela internet e isso virar receita para a indústria, receita para a advocacia, receita para os delegados? Esses 4 bilhões vão ficar só nas mãos dos cartórios? Por quê, se nós temos tecnologia para dar fé e certeza aos documentos?!
Somos todos delegados – de armas e de fé.
A Escola Nacional de Delegados a ADPF – Associação de Delegados de Polícia Federal, em Manaus, monta um grupo de trabalho misto, [composto] por advogados e delegados, dando fé a documentos. Isso vai gerar centenas, milhares de empregos no Brasil, transformando os cartórios, hoje tradicionais, migrando tudo isso para a iniciativa privada, porque já existe tecnologia para isso.
[…]
A Holanda está estudando a massificação do uso dessa tecnologia para certificação.
Eu estive na [nome de empresa] acompanhando um cliente e tinha lá o pessoal do blockchain. Eles disseram: “Doutor, daqui a algum tempo nós vamos fazer a escritura com o blockchain aqui dentro da empresa e nós mesmos arquivamos e não vamos fazer mais nada com cartórios”.
[…]
Chega de conversa e vamos ao que interessa…
Não vamos ter mais cartórios. Estamos estudando acabar com os Cartórios de Registro de Imóveis, pois temos tecnologia para dar fé, certeza e publicidade a esses documentos sem o uso cartorário.
Senhores, é a tecnologia! A “uberização” dos negócios, a economia compartilhada… Projeto para a ADPF para amanhã: ficar com um 1 bilhão dessa fatia. Como a Polícia Federal tem credibilidade basta montar um grupo de trabalho com tecnologia blockchain, com a FIESP, para dar fé e certeza a determinados documentos.
[A exposição segue. Para assistir a íntegra, acesse aqui: https://youtu.be/sowb2IDRx6w?t=1h28m4s]
INACREDITÁVEL. Só gostaria de saber, porque, no último concurso do Paraná, tivemos centenas de Advogados, Juízes, Delegados da Policia Federal (Deltan Dalagnol) e muitos outros profissionais? Onde está a licitude de um “pseudo transformador”, que não possui responsabilidade nem quaisquer outros requisitos para livrar os incautos das garras da insegurança que isso irá gerar? Lamentável.
A licitude está na ignorância, que é mãe do atrevimento, ambas personagens cultuadas com muita reverência no Brasil.
Muito sintético. Obrigado. Mas fico com o coração na mão. Até quando essa “cultuação” reverencial, o nosso cidadão ainda irá manter contra si mesmo? Nosso trabalho é sensacional, temos além de todo arsenal tecnológico, a gramática a prática e a fé pública, com muita responsabilidade. E pouco reconhecimento. Brasil Brasil… até quando caçarão culpados que não existem, e cultuando e reverenciando aquilo que irá lhes prejudicar?
[…] – Blockchain – pandora ou cornucópia da modernidade? Sérgio Jacomino. Neste pequeno artigo o registrador paulistano revela a densidade intelectual de importantes atores jurídicos que se dispõem a pontificar sobre a blockchain. […]