Registro de Imóveis eletrônico – perspectivas e desafios

Antônio Carlos Alves Braga Jr. (Foto: Carlos Petelinkar, 16/5/2018).

ONR – Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis.  Antonio Carlos Alves Braga Junior [1]

O sistema de registro de imóveis brasileiro está sedimentado em longa tradição europeia. O serviço de registro, prestado por meio de delegações previstas no art. 236 [2], da Constituição Federal, garante segurança aos negócios jurídicos e facilita a investigação da situação jurídica do imóvel. Basta comparar com o tão lembrado sistema norte americano, onde “não existem cartórios”.

Nos EUA não há cartórios

Lá, de fato, não há tabeliães, registro ou registradores. Advogados, com licença específica, formalizam os negócios imobiliários. Tal atividade impõe corresponsabilidade do advogado pela legalidade da negociação. Para se prevenirem de grandes reparações pecuniárias, estão sempre presentes vultosos contratos de seguro, como é próprio da cultura americana.

Como não há cartório, a apuração da situação jurídica do imóvel demanda uma investigação, que pode custar milhares de dólares. Muitas críticas são feitas sem conhecimento de que o sistema registral brasileiro em muito se assemelha ao da grande maioria dos países civilizados, de quem os Estados Unidos são uma notável exceção.

Sem os registros e sem as pesadas implicações pecuniárias do sistema americano, qualquer país se transforma num mar de insegurança e danos. O brasileiro colhe muitas vantagens de nossa sistemática, sem se dar conta. Acha caros os custos do registro, mas tem no registrador (e eventualmente no tabelião) um garantidor da legalidade e confiabilidade do negócio que está celebrando.

A cada delegação do serviço corresponde uma delimitação territorial. O serviço é pulverizado pelo território do país, em verdadeiras ilhas. Diante da transformação digital por que passa a sociedade humana, essa conformação não mais é aceitável.

O SREI – Sistema de Registro de Imóveis eletrônico

A Lei 11.977/2009 estabeleceu, dentre outras providências, a implantação, pelos registradores de imóveis, de um sistema de registro eletrônico. Fixou o prazo de cinco anos, vencido em 2014. Desde então, muito se discute sobre o efetivo significado da expressão registro eletrônico, e sobre as maneiras de implantação, uma vez que a lei foi bastante vaga e não forneceu conceitos precisos.

O Conselho Nacional de Justiça, no âmbito do Fórum Nacional de Assuntos Fundiários, instituído em 2009, deu início a estudos e medidas para orientar a efetivação da modernização.

Conceito de Registro eletrônico

A definição do conceito de registro eletrônico há de se dar a partir da perspectiva do usuário do serviço, que compreende de particulares a órgãos privados e governamentais. O comando da lei só estará atendido se factível a solicitação e a obtenção de serviços e informações por meio completamente eletrônico, mesmo que conviva com sistemas tradicionais de solicitação em balcão. Deste modo, o atendimento da lei não exige, necessariamente, a virtualização dos livros e da escrituração, ou seja, o registro pode continuar a ser escriturado no sistema de fichas de matrícula (em papel), desde que a interação com o solicitante se faça por meios eletrônicos. A escrituração eletrônica (matrícula eletrônica) é uma evolução, não um requisito, do registro eletrônico.

Por várias razões, não é caso de cada registrador de imóveis construir seu portal de atendimento na internet. Isso obrigaria o solicitante a percorrer inúmeros portais, se não dispuser de informações precisas sobre o que está buscando. Além disso, a dispersão de portais individuais favoreceria os falsos serviços: “cartórios digitais” que assim se apresentam na internet e que, de fato, são meros despachantes, serviços privados, sem fiscalização do poder público, e sem regulação dos valores que cobra pelo serviço.

Caráter nacional do SREI – serviços compartilhados

Ao dizer que deveria ser implantado, pelos próprios registradores, sistema de registro eletrônico, no singular, a lei 11.977 impôs a integração nacional. Não se disse que poderiam ser criados sistemas de registro eletrônico ou que o cartório deveria operar de modo eletrônico, do que decorreria a possibilidade de cada unidade modernizar-se de forma isolada.

Com vistas à integração, surgiu o conceito de Central de Serviços Eletrônicos Compartilhados. Os registros haveriam de integrar-se a tais centrais de modo que a porta de comunicação, entre registradores e solicitantes, fosse unificada.

A Central Nacional de Serviços Eletrônicos Compartilhados foi concebida, mas não chegou a ser instituída, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, para os registros de imóveis. Mas foi concebida, construída e instituída para as atividades notariais e de registro civil de pessoas naturais. Em 2012, por provimentos da Corregedoria Nacional, as duas centrais nacionais foram oficializadas. Naquele mesmo ano, seria implantada, no âmbito do Estado de São Paulo, pelo Provimento 42/2012 [3], da Corregedoria-Geral da Justiça, a Central Registradores de Imóveis [4].

Por força do Provimento 47/2015, da Corregedoria Nacional de Justiça, ficou determinado que todos os registradores do Brasil haveriam de constituir centrais em seus estados, às quais estariam necessária e exclusivamente vinculados. Os estados que não dispusessem de meios poderiam ter seus registradores vinculados, com exclusividade, à central de um outro estado. Fixou-se o prazo de 360 dias para que, dessa forma, se completasse a interligação de todos os registradores nacionais. Muito empenho tem havido, de parte dos registradores de todo o Brasil, mas o prazo expirou sem a desejada integração.

Descentralização versus Ecentralização

mbora, em termos tecnológicos, nada impeça a integração em um sistema descentralizado, de múltiplas centrais sem um órgão central, em termos práticos, ela é de dificílima concretização. Sem uma instância nacional, o atendimento das questões técnicas locais sempre terão atenção preferencial sobre as questões técnicas nacionais, e a integração acaba inviabilizada.

Hipoteticamente, com 27 centrais (uma para cada estado e uma para o Distrito Federal), cada uma haveria de construir e manter 26 integrações. O esforço e os custos de sustentação seriam proibitivos. O modelo de central nacional permite que todos apontem para um só endereço e adotem um só protocolo de comunicação.

O registro eletrônico foi retomado na Lei 13.465, de 11 de julho de 2017, que trata, dentre outros assuntos, da regularização fundiária urbana, rural e da região amazônica, e que é resultado da conversão da Medida Provisória 759/2016. A medida provisória, por sua vez, foi resultado das atividades do grupo de trabalho, instituído no âmbito do Ministério das Cidades, denominado Rumos da Política Nacional de Regularização Fundiária – GTRPNRF, criado pela Portaria 326, de 18/07/2016, que tivemos a honra de integrar [5].

ONR – Operador Nacional do SREI

A lei trouxe a figura do Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, o ONR.

Ficou claro o propósito de tornar realidade o ingresso do serviço registral na economia digital. E já não é sem tempo. O registro é etapa importante da circulação da riqueza. A facilidade ou dificuldade nessa etapa tem implicações diretas sobre o PIB. Inúmeras operações financeiras são lastreadas em imóveis. Quanto maior o tempo consumido com as etapas registrais, maiores as perdas financeiras para o país.

Estabelece o art. 76, da Lei 13.465/2017, que “O Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI) será implementado e operado, em âmbito nacional, pelo Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR).“ A relevância para a regularização fundiária está expressa no § 1: “O procedimento administrativo e os atos de registro decorrentes da Reurb serão feitos preferencialmente por meio eletrônico, na forma dos arts. 37 e 41 da Lei 11.977, de 7 de julho de 2009.

Registro eletrônico – implantação, gestão e manutenção

O registro eletrônico deve ser implantado, gerenciado e mantido pelos próprios registradores de imóveis, e por ninguém mais. Deve-se entender que a operação do registro eletrônico se inclui nas atividades delegadas pelo art. 236 da Constituição Federal. O regime constitucional é da delegação total e exclusiva. O serviço, que é público, é exercido exclusivamente por particulares investidos em delegações mediante aprovação em concurso público. O Estado não reservou para si, para prestação direta, nenhuma parcela do serviço registral. A atividade estatal é regulatória e fiscalizatória. O registro eletrônico nada mais é do que uma forma de prestar o serviço registral. A mudança com a imersão nos meios digitais é gigantesca, mas não há novidade na essência da atividade.

O ONR deve se constituir como pessoa jurídica (de direito privado, sem fins lucrativos), nos termos do § 2º, do art. 76. A situação é análoga à da Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados – CENSEC porque constituída, gerida e mantida exclusivamente por notários, ou da Central de Informações do Registro Civil – CRC, provida integralmente por registradores civis de pessoas naturais.

ONR – normalização não é normatização

O ONR é a entidade de onde partirá a normalização do registro eletrônico, ou seja, as normas técnicas afetas a aspectos operacionais. Tais normas técnicas, como não poderia deixar de ser, estarão obrigatoriamente submetidas às normas e decisões administrativas, provenientes das Corregedorias Gerais de Justiça (órgãos dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal) e do Conselho Nacional de Justiça, assim como submetidas a todo o sistema de normas da Constituição Federal e da legislação federal, estadual e municipal. A atividade normativa do ONR, em relação aos registradores de imóveis, posiciona-se na base da pirâmide do sistema jurídico brasileiro.

O serviço registral é privativo do delegatário. A relação que se estabelece é sempre entre o solicitante e o oficial registrador. A infraestrutura de rede e dados, assim como a estrutura incumbida da normalização da atividade, figuram como mera passagem.

O acervo registral, ou seja, o conjunto de informações da atividade registral (livros, classificadores, bancos de dados), é de guarda exclusiva do registrador. Apenas metadados, ou seja, dados sobre dados, que permitem o direcionamento das pesquisas e solicitações, poderão ficar armazenados na estrutura do ONR, tal como ocorre com as Centrais Estaduais de Serviços Eletrônicos Compartilhados que funcionam nos estados.

A construção deve orientar-se pela perspectiva do solicitante. Deverá ser possível solicitar serviço ou informação a qualquer registrador do Brasil a partir de um único ponto de comunicação, de uma única porta de entrada. Na mesma operação, deverá ser possível ao solicitante obter informes de um único cartório, de todos os cartórios de um município, de estado ou do país. Há de desaparecer a localização geográfica do solicitante, que poderá demandar serviços de qualquer lugar do planeta. A resposta haverá de seguir o mesmo trajeto, independentemente de onde partiu a consulta. Sem que se alcance tal configuração, não se estará efetivamente na era digital. Uma vez composta a espinha dorsal de toda a rede registral, inúmeras outras funcionalidades poderão ser agregadas, tais como a automatização de tarefas e o uso de inteligência artificial.

A implantação do ONR não ameaça a atividade do registrador, não invade a autonomia dos estados e não subtrai atividades de fiscalização e normatização pelo Poder Judiciário. De outro lado, promove a inserção do serviço registral no cenário nacional dos negócios, da economia, e das expectativas da sociedade.

ONR e as centrais estaduais

O ONR não substitui as Centrais Estaduais. De fato, funcionará como integrador.

Para a implantação, necessária a aprovação dos estatutos pelo Conselho Nacional de Justiça.

O registro de imóveis não conseguirá estar em dia com a economia digital a partir de esforços exclusivamente individuais ou de esforços concentrados nos Estados. A atuação descentralizada implica redundâncias e dispêndios várias ordens de grandeza maiores do que investimentos concentrados em uma só estrutura nacional. Sem padronização, haverá ineficiência e insegurança e alto risco de fraudes. A integração possibilitará ao registrador operar nacionalmente, de maneira rápida, padronizada, sem intermediários. O ONR é a porta dos registradores de imóveis para o futuro.


NOTAS

[1] Juiz de Direito Substituto em Segundo Grau, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

[2] Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. 

[3] http://bit.ly/2RulNnb. Kollemata: https://www.kollemata.com.br/25058

[4] https://www.registradores.org.br/

[5] http://www.irib.org.br/noticias/detalhes/mp-no-759-2016-texto-foi-elaborado-por-grupo-de-trabalho-instituido-pelo-ministerio-das-cidades

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