Registro em tempos de crise – IV

Nas nótulas anteriores visitamos o  Decreto Federal 10.278, de 18/3/2020, debruçando-nos sobre algumas hipóteses de autenticação extravagante de documentos e títulos inscritíveis. O objetivo é pavimentar o canal de intercâmbio de documentos eletrônicos criados pela ARISP em São Paulo.

Às pressas, e de modo um tanto improvisado – fato perfeitamente justificável em situações como as que estamos vivendo – vamos descobrindo que a maior dificuldade que talvez tenhamos que enfrentar é a cultura sedimentada ao longo de muitos anos na lida com documentos em papel.

É preciso encontrar meios de promover o aculturamento de processos tradicionais, substituindo-os por meios digitais.

É preciso reconstruir a doutrina registral – especialmente no que concerne à forma dos títulos inscritíveis.

Vão aqui algumas ideias, que podem – e serão – melhoradas no debate interno.

e-Protocolo – Síntese das hipóteses de acesso

  1. Instrumentos natodigitais:
    1. Extrato XML (emitido pelo Sistema Financeiro da Habitação e Sistema de Financiamento Imobiliário e Companhias de Habitação).
    2. Traslado eletrônico emitido pelo notário em XML.
    3. Instrumento particular natodigital em PDF/A assinado digitalmente por todas as partes (MP 2.200-2, art. 10º);
    4. Títulos judiciais oriundos do processo eletrônico assinados digitalmente segundo normas próprias do Processo Eletrônico.
  2. Títulos administrativos, assinados digitalmente pelo apresentante (quando administração pública – hipóteses do art. 221, V, da LRP).
  3. PDF-A digitalizado e assinado pelo apresentante.
    1. Instrumento Particular do SFH/SFI (PDF/A) assinado digitalmente pelo apresentante com certificado digital da ICP-Brasil.
    2. Títulos digitalizados (PDF) e assinados pelo interessado (inc. X do art. 3º da Lei Federal 13.874, de 20/9/2019 c.c. inc. I do art. 5º do Decreto Federal 10.278, de 18/3/2020).
    3. Títulos judiciais (averbações premonitórias, penhoras, arrestos, sequestros etc.) apresentados por advogados (inc. I do art. 5º do Decreto Federal 10.278, de 18/3/2020).
  4. Instrumentos digitalizados (PDF-A assinados digitalmente):
    1. Instrumento particular do SFI/SFH (digitalização facsimilar – PDF/A) assinado digitalmente por todas as partes com certificado digital ICP-Brasil.
    2. Traslado do notário digitalizado e por ele assinado digitalmente com certificado digital.
  5. Instrumentos particulares digitalizados, não assinados digitalmente.

Especificação e justificação

1.1 – Extrato XML emitido pelo agente do SFH/SFI.

Esta modalidade de título está prevista nas NSCGJSP (itens 111 e ss. do Cap. XX). A ideia geral que embasa a admissão dessa modalidade de extrato é a previsão dos artigos 60 e 61 da Lei 4.380, de 21/8/1964, dos quais se falará mais abaixo.

Sobre as companhias de habitação, citadas expressamente nas normas da Corregedoria paulista, v. comentários ao item 3.1.

1.2 – Traslado eletrônico emitido pelo notário em XML

A previsão da confecção do traslado em XML pelo notário vem prevista no item 198, Cap. XVI, das Normas de Serviço de SP [1].

Os notários, seus substitutos ou prepostos autorizados, podem encaminhar o título aos registros imobiliários por intermédio do e-Protocolo.

1.3 – Instrumento particular natodigital em PDF/A assinado digitalmente por todas as partes (MP 2.200-2, art. 10º);

Todo e qualquer documento, público ou privado, assinado eletronicamente pelas partes com a utilização do certificado digital, são considerados válidos e produzem os mesmos efeitos que os análogos em papel.

A Lei criou a presunção de autenticidade e integridade dos documentos (§ 1º do art. 10º da MP 2.200-2/2002). Os documentos eletrônicos assinados com certificados digitais presumem-se válidos, íntegros e eficazes.

É possível considerar que esses instrumentos particulares (“escritos particulares”), assinados pelas partes com certificados digitais da ICP-Brasil, dispensam o reconhecimento notarial das firmas em virtude da presunção de validade, autenticidade e eficácia que decorre diretamente da lei.

1.4 – Títulos judiciais oriundos do processo eletrônico assinados digitalmente segundo normas próprias do Processo Eletrônico.

As peças extraídas do processo judicial, observadas as regras estabelecidas pelos tribunais, podem ser autenticadas de modo muito fácil e cômodo pelo próprio órgão.

No caso do Estado de São Paulo, o acesso é livre às peças fundamentais do processo (decisões, sentenças, acórdãos, mandados, ofícios etc.) por intermédio da aba “Consultas Processuais”. Só com base nesse simples acesso, pode-se baixar peças fundamentais do processo judicial, salvo casos de segredo de justiça.

Ordens judiciais, por exemplo, podem ingressar diretamente no e-Protocolo e servir como títulos autênticos para a prática do ato mediante requerimento do interessado instruído com a peça judicial autenticada.

1.4.1 – títulos judiciais formalizados pelos notários e por registradores

No Estado de São Paulo, as cartas de sentença, formais de partilha, cartas de adjudicação e de arrematação, podem ser formalizados pelos notários, seus substitutos e prepostos autorizados, nos termos dos itens 214 e seguintes do capítulo XVI das NSCGJSP [2].

A chave de acesso para o processo judicial, de molde a propiciar a formação do título, será a senha atribuída às partes ou o certificado digital do advogado.

Nestes tempos de crise, o Tribunal poderia proporcionar a senha de acesso aos registradores para, a pedido dos interessados, formalizar o título e o submeter a registro imediatamente, sem qualquer risco à segurança jurídica [3].

2 – Títulos administrativos, assinados digitalmente pelo apresentante (quando administração pública – hipóteses do art. 221, V, da LRP). 

Os títulos (contratos ou termos administrativos) oriundos da administração pública e no âmbito de programas habitacionais de interesse social e de regularização fundiária, quando são partes a União, Estados, Municípios ou o Distrito Federal, tais instrumentos podem ser apresentados diretamente ao Registro, dispensado o reconhecimento de firma (inc. V do art. 221 da LRP).

Como veremos mais abaixo, os contratos em que forem partes “órgãos federais, estaduais e municipais, inclusive sociedades de economia mista em que haja participação majoritária do poder público, que operem (…) no financiamento de habitações e obras conexas ficam igualmente dispensadas da formalidade do instrumento público”. Os atos poderão “ser celebrados por instrumento particular, os quais poderão ser impressos” atribuindo-se-lhes o caráter de escritura pública para todos os fins de direito” [4].

Logo, nesses casos, o título poderá, desde logo, ser prenotado e o registro consumado.

3.1 – Instrumento Particular do SFH/SFI (PDF/A) assinado digitalmente pelo apresentante com certificado digital da ICP-Brasil.

Essa hipótese é rotineira e os cartórios recebem diuturnamente contratos desse tipo para registro acompanhados do extrato em XML. Basta a assinatura digital (ICP-Br) do apresentante.

Vejamos o elenco de entidades que se acham autorizadas a atuar no âmbito do SFH [5]:

  1. bancos múltiplos;
  2. bancos comerciais;
  3. caixas econômicas;
  4. sociedades de crédito imobiliário;
  5. associações de poupança e empréstimo;
  6. companhias hipotecárias;
  7. órgãos federais, estaduais e municipais, inclusive sociedades de economia mista em que haja participação majoritária do poder público, que operem, de acordo com o disposto nesta Lei, no financiamento de habitações e obras conexas;
  8. fundações, cooperativas e outras formas associativas para construção ou aquisição da casa própria sem finalidade de lucro, que se constituirão de acordo com as diretrizes desta Lei;
  9. caixas militares;
  10. entidades abertas de previdência complementar;
  11. companhias securitizadoras de crédito imobiliário; e
  12. outras instituições que venham a ser consideradas pelo Conselho Monetário Nacional como integrantes do Sistema Financeiro da Habitação.

Todas essas entidades estão abrigadas sob os dispositivos legais que dispensam a notarização titular, emprestando aos instrumentos particulares a força de escritura pública [6].

Não há a previsão legal de autenticação notarial de identidade e assinaturas das partes contratantes nos instrumentos particulares celebrados no âmbito do SFH/SFI. De acordo com o art. 221, inciso II, da LRP, os escritos particulares, autorizados em lei [7], serão assinados pelas partes contratantes e testemunhas, ficando dispensado “o reconhecimento quando se tratar de atos praticados por entidades vinculadas ao Sistema Financeiro da Habitação”.

É preciso reconhecer o seguinte: se não há a obrigatoriedade legal de intervenção notarial para aferir a identidade das partes, nem, tampouco, para a notarização dos firmantes (reconhecimento de firmas) no instrumento, não tem sentido exigir que todas as partes assinem com certificado digital os instrumentos que são endereçados ao Registro de Imóveis pelo e-Protocolo. Bastará que se afira, com segurança, a identidade do apresentante (agente do crédito imobiliário).

3.2 – Títulos digitalizados (PDF) e assinados pelo interessado (inc. X do art. 3º da Lei Federal 13.874, de 20/9/2019 c.c. inc. I do art. 5º do Decreto Federal 10.278, de 18/3/2020).

É preciso visitar o inc. I do art. 5º do  Decreto Federal 10.278, de 18/3/2020 e neste ponto remeto o leitor às considerações que fizemos no artigo anterior – Registro em tempos de crise – III.

3.3 – Títulos judiciais (averbações premonitórias, penhoras, arrestos, sequestros etc.) apresentados por advogados (inc. I do art. 5º do Decreto Federal 10.278, de 18/3/2020).

Nesses casos não há dificuldade – ao menos no Estado de São Paulo. As peças podem ser autenticadas de acordo com a sistemática do próprio processo judicial (eSAJ).

4.1 – Instrumento particular do SFI/SFH (digitalização facsimilar – PDF/A) assinado digitalmente por todas as partes com certificado digital ICP-Brasil.

V. comentários ao item 1.c, supra.

4.2 – Traslado do notário digitalizado e por ele assinado digitalmente com certificado digital.

O notário pode digitalizar o traslado da escritura pública lavrada por ele. Não há diferença entre o traslado em papel e o digital, autenticado por ele com a aposição de sua assinatura digital (ICP-Br).

4.3 – Título judiciais antigos (processo tradicional).

O notário pode “desmaterializar” e confeccionar um título eletrônico (ex. item 214 e ss Cap. XVI das NSCGJSP). Não serão “menos públicas” as peças que integram um título judicial do que as próprias peças do processo. Se ele pode o mais, certamente poderá o menos.

5. E-Protocolo com suspensão do prazo de eficácia da prenotação (art. 205 da LRP).

Todos os demais títulos.


[1] 198. Os Tabeliães de Notas, seus substitutos e prepostos autorizados, poderão extrair traslados ou certidões de suas notas, sob a forma de documento eletrônico, em PDF/A, ou como informação estruturada em XML (eXtensible Markup Language), assinados com Certificado Digital ICP-Brasil, tipo A-3 ou superior.

[2] Item 214 – “O Tabelião de Notas poderá, a pedido da parte interessada, formar cartas de sentença das decisões judiciais, dentre as quais, os formais de partilha, as cartas de adjudicação e de arrematação, os mandados de registro, de averbação e de retificação, nos moldes da regulamentação do correspondente serviço judicial”.

[3] Num caso concreto já tivemos ocasião de propor exatamente isso. Note-se que no caso de processos de usucapião, na Capital de São Paulo, o próprio registrador se encarrega de dar curso à decisão, procedendo ao registro. V. especialmente o subtítulo Formação do título no próprio Registro de Imóveis? Acesso: https://bit.ly/titulojud

[4] Lei 4.380, de 21/8/1964, § 5º do art. 61.

[5] Lei 4.380, de 21/8/1964, art. 8º.

[6] Cfr. § 5º do art. 61 da Lei 4.380/1964; art. 38 da Lei 9.514/1997. Sobre os instrumentos particulares e o registro de imóveis, indico: JACOMINO. S. O instrumento particular e o Registro de Imóveis. Acesso: https://www.academia.edu/42322234

[7] V. a exceção do requisito ad substantiam da escritura pública no art. 108 – “não dispondo a lei em contrário”. Há uma pletora de leis dispensando o requisito da escritura pública.

Um comentário sobre “Registro em tempos de crise – IV

  1. Bom dia Dr. Sérgio, equipe IRIB, da qual sou associado e sou também da ANOREG-PR.

    Acompanho-o e o IRIB com especial “curiosidade” e atenção e só farei-lhe uma pergunta:

    Estou gravando todos os posts sobre o assunto, em especial nessa crise, a que somos bombardeados diuturnamente com “pedidos insólitos e malsinados” de desnecessidade dos Notários e Registradores, mas é do jogo, lutemos, e tudo isso “se me apresenta muito complicado e estranho”, documentos eletrônicos e digitalização, mas tenho uma ótima equipe, mesmo interiorana aqui do Noroeste do Paraná, bem entrosada apesar de pititica (3 colaboradores), então independentemente de quantidade, localização, renda, somos todos CAPAZES E INSERIDOS nesse contexto para bem representar nossa tão Milenar e Especial Classe?

    Aguardo.
    Abraços.
    Ortega

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