Feriado em São Paulo. Sampandemix. Culture cave day. Minha filha me convoca para assistir um filme cult dos 90 – Fight Club – e me escala para discutir a relação. A relação de Tyler e Jack. Que pode um velho registrador contribuir para aclarar suas dúvidas e inquietações?
As suas inquietações renderam um podcast que v. pode ouvir no final deste post. A redação e ideias são dela. Minhas inquietações vão pela senda do Huxley, que ela preferiu não enfrentar em seu trabalho de classe. (SJ).

Nas modernas sociedades, há uma busca incessante por mecanismos de dominação não violenta, o que se dá pelo uso da propaganda, do condicionamento comportamental, pela figura da autoridade artificialmente criada, sem o uso de violência física.
Os dois polos desse fenômeno são bem representados pelas distopias de George Orwell e Aldous Huxley (1984 – Brave new world). No primeiro caso, a dominação se dá pelo terror, pela violência, pelas táticas de lavagem cerebral, no segundo pela servidão voluntária ao poder dominante, facilitada pela alienação provocada pela droga e pelo sexo.
Vemos na sociedade contemporânea muitos dos elementos da distopia de Huxley: grandes organizações, uso massivo de novas tecnologias (reprodução artificial, biomedicina manipulativa, transgeneticismo, pós-humanidade, transhumanismo etc.), uso constante de drogas (soma), sexualização exercitada sem limites, hedonismo, hiper-materialismo (culto ao “Nosso Ford”, etc.) tudo para proporcionar a “realização individual” pela conquista da completa felicidade por meio de sedução e prazer.
Assim se manifestava Aldous Huxley na retomada do tema de seu admirável mundo novo:
“Um estado totalitário verdadeiramente eficiente seria aquele em que o executivo todo-poderoso de chefes políticos e seu exército de administradores controlassem uma população de escravos que não tivessem de ser coagidos porque amariam sua servidão”.
E remata com uma atualidade e pertinência impressionantes:
“Fazer com que eles [população de escravos] a amem é a tarefa confiada, nos estados totalitários de hoje, aos ministérios de propaganda, diretores de jornais e professores [1].
Vemos que as estratégias de dominação se sofisticaram. O uso de novas tecnologias e meios digitais (internet, Youtube, Hollywood films, Facebook etc.) sujeita o indivíduo a um padrão e estilo de vida pautados pelos interesses do mercado, tornando o ser humano alienado, ansiosamente consumista, controlado pelas grandes corporações e por governos que transformam os seres humanos em escravos dóceis.
Escravos dóceis?
O filme Fight Club nos revela uma ser humano esquizofrênico, em luta consigo mesmo e contra esse padrão quase irresistível de sujeição e alienação que lhe é imposto pela sociedade contemporânea pós-industrial e consumista.
O nosso protagonista (narrador) é um típico homem comum, representante da classe média de qualquer grande cidade do mundo capitalista. É um homem solitário, vazio, derrotado, sem perspectivas, que vive de modo quase robótico, dependente do seu trabalho numa companhia de seguros. É uma vida estável e materialmente confortável. Sua distração, que se torna a única obsessão, é comprar roupas caras e peças de mobília para fornir seu modesto apartamento. No início do filme há referência a marcas famosas e a sedução que esses produtos produzem com o objetivo de preencher esse vazio interior.
“We are consumers. We’re the by-products of a lifestyle obsession”. (Tyler Durden)
“The things you own end up owning you” (Tyler Durden)
“This is your life and it’s ending one minute at a time” (narrador).
A vida monótona e alienada do narrador leva-o a padecer de insônia por longos meses. O vazio interior se torna simplesmente insuportável. Quando busca ajuda médica, ele é aconselhado a visitar grupos de autoajuda, quando então se vê confrontado com o reverso de sua utopia infeliz: o sofrimento humano (pathos) materializado nas doenças crônicas e incuráveis. A miséria humana, como reverso daquele mundo ilusório e artificial, provoca nele um impulso de humanidade perdida e sacrificada no altar do consumismo. É então que ele recupera o sono – “sono de um bebê”.
O aspecto que quero destacar é o progressivo descolamento que o narrador vai experimentando em relação aos modelos e padrões que conformavam sua vida vazia e confortável e que, bem ou mal, lhe dava a sensação de “normalidade” e segurança. Começa por abandonar o apartamento decorado com móveis e utensílios caros e de bom gosto. Muda-se para uma casa abandonada na periferia – um velho sobrado sujo, vazio, em ruínas e deixa de assistir à TV, desligando-se dos efeitos persuasivos da propaganda.
A possessão naquela velha casa de vários cômodos em ruína é uma poderosa metáfora que nos revela como o interior do ser humano moderno está abandonado, destruído, em ruínas. Ali, no coração daquela casa, tem início um processo disruptivo que vai culminar na “molecularização” dos clubes de luta.
Progressivamente, o narrador vai experimentando uma espécie de reação explosiva, que apela para os instintos mais primitivos que todos nós, seres humanos, levamos como herança genética. É um retorno à humanidade perdida.
A libertação se dá pela dor e por altas doses de adrenalina que provocam euforia e um sentimento difuso de poder e que promove a descarga de toda raiva acumulada. Essa reação individual, irracional e violenta, quando assume uma dimensão social, se projeta contra o “sistema”.
Da luta que travamos entre esse elemento arcaico, irracional, violento, disruptivo de nossa natureza e o “normal” estabelecido artificialmente pelos poderes constituídos e pelos mecanismos de controle social, surge o “Project Chaos”. A dissolução do logos faz surgir o pathos que se manifesta no sentimento de compaixão e acolhimento do exército de homens desvalidos, marginalizados pela doença (Bob) ou pelo sistema de exclusão social (work class). O sentimento de compaixão (syn-patheia) é, de certo modo, subversiva, pois faz nascer um princípio de identidade e de autoridade no grupo que granjeia a concentração de poder que o duplo do narrador (Tyler) agora exerce naturalmente em relação aos membros de seu grupo revolucionário.
“For complete freedom, chaotic life is recommended.”
“I reject all the assumptions of civilization especially the importance of material possessions”.
O conflito entre o narrador e seu duplo Tyler é a contradição de milhões e milhões de indivíduos, ainda que ele ocorra nos limites do subconsciente. Homens e mulheres alienados compõem hoje verdadeiros rebanhos digitais, seres humanos alienados e sem identidade, seduzidos e controlados em troca do prazer instantâneo e do conforto e segurança aparentes. Homens e mulheres, jovens e anciões, buscam a bem-aventurança e a felicidade no escambo de seus impulsos criativos por bens materiais.
Jack já não pode preencher o seu vazio existencial provocado por uma vida inútil inteiramente devotada ao consumismo desenfreado, guiado por propaganda e estratégias de controle e adestramento social.
But, the show must go on, as rodas da indústria devem rodar! Aprofundam-se as desigualdades sociais e se marginalizam e idiotizam milhões e milhões de seres humanos.
Mas, até quando? O surgimento de gangs violentas nos subúrbios de grandes cidades (como São Paulo, LA, Santiago, Paris, Londres); os movimentos sociais que, sem motivação aparente, irrompem violentamente como fagulhas destrutivas, investindo furiosamente contra símbolos do mercado capitalista, da igreja, do governo estabelecido; o surgimento de “tribos”, pequenos grupos sociais, que adotam uma identidade própria, utilizam uma linguagem cifrada e que são regidos por valores disruptivos e contravencionais; o surgimento do hackers que praticam cybercrimes, tudo isso tem como contraponto o fortalecimento de um governo mundial, em tudo controlador, adestrador, uniformizador… Essa estado de coisas provoca no ser humano uma dissociação cognitiva, levando a estados de progressiva esquizofrênica dos indivíduos, abrindo as portas para o caos.
Uma nótula de otimismo – do caos à ordem?
A história se faz de sucessivas crises de transformação que nos levam do caos à ordem, da anarquia à autoridade, em ciclos que se repetem. No final de Fight Club, o narrador aniquila Tyler Durder com um tiro desferido contra si mesmo. Aparentemente, o narrador sobrevive. Tangido pela dor do ferimento, diz a Marla Singer – You met me at a very strange time in my life… – enquanto ambos assistem à derruição de todos os símbolos do sistema – os prédios de grandes corporações de crédito – que voam pelos ares pelas explosões sucessivas.
Será a violência uma reação a uma doença que se cura pela dor? Uma doença social se cura pela revolução? A mesma dor ancestral, que nos lembra, como o espinho na carne, de que somos humanos, terrivelmente humanos, essa dor incurável poderá resgatar a humanidade perdida nos paraísos artificiais?
[1] HUXLEY. Aldous. Brave New World. Preface.