Registro em tempos de crise – VII – títulos em formato eletrônico

[atualizado em 2/6/2020]

A pandemia do COVID-19 desencadeou uma profusão de atos normativos e projetos de lei visando adequar o sistema registral às necessidades dos usuários dos serviços notariais e registrais em tempos de crise.

Tenho feito comentários esparsos sobre as implicações práticas e teóricas dos vários dispositivos de tais atos normativos neste espaço e há pouco tivemos notícia da proposição do PL 2942, de 2020, de autoria do Senador Flávio Arns (REDE/PR) que é, em certa medida, uma compilação dos atos normativos já baixados pelo CNJ.

Abaixo indiquei alguns pontos que podem servir à reflexão dos interessados na matéria. O art. 4º do Provimento CNJ 94/2020 é parcialmente reproduzido no art. 2º do PL 2942, de 2020. As observações feitas abaixo servem, naturalmente, e no que couberem, para a discussão do dito projeto de lei.

Os comentários devem ser considerados um working´n´progress e são passíveis de retificação – seja pela crítica dos leitores, seja pelo desenvolvimento dos estudos do autor.

Vamos aos comentários ao art. 4º do Provimento CN-CNJ 94/2020, de 28/3/2020.

Art. 4º. Durante a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), contemplada no caput, todos os oficiais dos Registros de Imóveis deverão[1] recepcionar os títulos nato-digitais[2] e digitalizados com padrões técnicos[3], que forem encaminhados eletronicamente para a unidade a seu cargo, por meio das centrais de serviços eletrônicos compartilhados[4], e processá-los para os fins do art. 182 e ss da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973[5].

[1] – Dever – não faculdade. O verbo indica um dever, não uma mera faculdade. O ato normativo da Corregedoria Nacional de Justiça vincula os registradores (inc. XIV do art. 30 da Lei 8.935/1994) que devem observar seus termos com critério técnico. Não poderá o registrador negar acesso aos títulos recepcionados nos formatos indicados no ato normativo.

[2]Documentos natodigitais. V. comentário ao § 1º que será veiculado em próxima postagem.

[3]Padrões técnicos. Quando o provimento alude a “padrões técnicos” deve-se entender não só aqueles estabelecidos no Decreto 10.278, de 18 de março de 2020, mas a todos atos legais e normativos que tratam do valor jurídico dos documentos tradicionais reproduzidos em outros meios e autenticados pelas várias modalidades admitidas em lei [1]. São exemplos o microfilme, a digitalização, outros “meios reprográficos” [2], além de assinaturas digitais – com ou sem certificados digitais emitidos pela ICP-Brasil, admitido-se outras modalidades de certificação, integridade e autenticação (biometria, autenticação cruzada etc.) [3].

A disposição ilumina todo o artigo e seus parágrafos. Veremos que o § 2º tratará de um tipo muito específico de documentos digitalizados. Remetemos o leitor aos comentários ali expendidos em uma próxima postagem.

Padrões do Arquivo Nacional

[3.a]Padrões técnicos – II. A digitalização de documentos deve observar os padrões técnicos estabelecidos por órgãos competentes. Os órgãos competentes são, em primeiro lugar, os do próprio Poder Judiciário. Entretanto, todos os órgãos públicos devem observar os padrões técnicos estabelecidos nas diretrizes baixadas pelo Arquivo Nacional (inc. IV do art. 2-A do Decreto 4.073/2002)[4]. Os documentos que os registros públicos recebem, seja em que meio for, são reputados documentos de preservação permanente, assim definidos no § 3º do art. 7º da Lei 8.159/1991. Mesmo os documentos microfilmados não podem ser descartados, mas recolhidos ao arquivo público [5]. V. art. 13 do Decreto 1.799/1996:

“Os documentos oficiais ou públicos, com valor de guarda permanente, não poderão ser eliminados após a microfilmagem, devendo ser recolhidos ao arquivo público de sua esfera de atuação ou preservados pelo próprio órgão detentor”.

Este dispositivo se articula com o conjunto normativo dos artigos 22 a 27 da LRP e art. 46 da Lei 8.935/1994. Aplica-se, igualmente, o § 1º  do art. 2-A da Lei 12.682/2012, que reza:

Após a digitalização, constatada a integridade do documento digital nos termos estabelecidos no regulamento, o original poderá ser destruído, ressalvados os documentos de valor histórico, cuja preservação observará o disposto na legislação específica (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

É evidente que os documentos de valor histórico são assim considerados os probatórios. (V. § 3º do art. 7º da Lei 8.159/1991).

O acessório e o principal – o modelo de delegação de funções públicas personalizadas

[4]Centrais são meios – não fim. Os destinatários dos documentos apresentados em meios eletrônicos são as unidades de registro de imóveis, observada a regra da delegação de função pública fracionada. As centrais não praticam atos registrais autonomamente, sob pena de fragilizar o sistema de delegação por exercer funções para-registrais ou subdelegadas.

Até que advenha o ONR – Operador Nacional do SREI, entidade criada por lei e que tem a missão institucional de implementar e operar o SREI (art. 76 da Lei 13.465/2017), as centrais, pessoas jurídicas de direito privado, são meros pivôs (hubs) que atuam de modo coadjuvante no trânsito de dados e informações entre os utentes e as unidades de registro de imóveis. São uma espécie de longa manu do próprio registrador.

[5]Processo de registro. A lei denomina o iter do título na serventia como processo do registro (Cap. III do Título V das LRP). A denominação é perfeitamente apropriada. O processo registral inicia-se com o protocolo do título (art. 182 da LRP), não com o depósito do representante digital do título ou o próprio documento natodigital nas centrais [6]. Chamo a atenção do leitor aos comentários que serão feitos ao Anexo II – Metadados Mínimos Exigidos do Decreto 10.278/2020, especialmente os relacionados a autoria [itens 4 e subseções].


Notas

[1] Não é o caso de aprofundar aqui, mas citem-se as seguintes leis e atos normativos que tratam do tema: Lei 5.433/1968 (Decreto 1.799/1996); Lei 6.015/1973 (§ 3º do art. 1º; § único do art. 17; § 1º do art. 19 e art. 25); Lei 8.935/1994 (arts. 41 e 46); Lei 11.977/2009 (art. 37 e ss.); Lei 12.682/2012 (art. 2º A e seus parágrafos); Lei 13.874/22019 (inc. X do art. 3º). O rol não é exaustivo. Há uma profusa produção legislativa que vem por derruir os obstáculos relacionados à plena utilização de meios eletrônicos na produção e trânsito de documentos eletrônicos.

[2] A reprografia não deixa de ser um método de produção de representantes digitais ou analógicos que vem sendo admitido e aplicado na praxe cartorária. Vide, por exemplo, o § 1º do art. 19 da LRP que prevê a emissão de certidões por “meios reprográficos” ou o § 5º da mesma lei que, além da modalidade reprográfica da fotocópia, admite “outro processo equivalente”. A chave interpretativa para decifrar a avulsão de meios reprográficos acha-se no art. 25 da mesma LRP, que admite “outros meios de reprodução”, desde que autorizados em lei. Veremos que há autorização legal para aceitação de outros meios, além da tradicional microfilmagem.

[3] O uso de outros meios de autenticação, integridade e imputação de autoria são admitidos na Lei (§ 2º do art. 10 da MP 2.200-2/2002; letra “b, inc. III do § 2º do art. 1º da Lei 11.419/2016; inc. II do art. 18 da Lei 13.874/2019;

[4] O CONARQ disponibiliza uma série de recomendações. Dentre elas, destacamos a Resolução 31, de 28/4/2010, que dispõe sobre a adoção das Recomendações para Digitalização de Documentos Arquivísticos Permanentes. Acesso:  http://conarq.gov.br/images/publicacoes_textos/Recomendacoes_digitalizacao_completa.pdf

[5] O sistema registral brasileiro se inscreve no rol dos chamados “registros de direitos”. Todavia, o art. 194 da LRP estabelece um repositório que é uma espécie de arquivo registral de cujos fólios (títulos privados arquivados) são extraídas certidões (art. 194, in fine, da LRP). Nesse caso específico, dá-se a publicidade do próprio título, a latere da certidão do registro, que é bem outra coisa. Há outras hipóteses: por exemplo, o art. 32, § 4º, da Lei nº 4.591, de 1964. A Lei 6.766/1979, prevê a consulta do processo de loteamento e seus documentos (art. 24), além do depósito de uma das vias de promessas e cessões públicas ou privadas (§ 1º do art. 26). Todos os memoriais de loteamentos e condomínios, processos de retificação etc. remanescem na serventia, de cujos títulos e documento poder-se-á expedir certidões.

[6] Este tema carece de maior aprofundamento. Uma das questões que deverão ser enfrentadas por ocasião da criação do ONR-SREI é o valor do protocolo digital feito no SAEC (art. 18 do Provimento CNJ 89/2019) para graduação dos direitos e controle do chamado contraditório. Deixo para outra oportunidade o enfrentamento da questão que reputo relevante. Indico, apenas, a chave interpretativa que registrei nos comentários feitos ao art. 182, no item 6 – precedência e número de ordem geral na obra Lei de Registros Públicos Comentada: lei 6.015/1973, organizada por José Manuel de Arruda Alvim Neto, Alexandre Laizo Clápis e Everaldo Augusto Cambler. (Forense, 2a ed. 2019.

Um comentário sobre “Registro em tempos de crise – VII – títulos em formato eletrônico

Deixe uma resposta