Daniel Góes. Um amigo que se foi, uma parte que se desprendeu e nos deixa um pouco mais tristes e vazios neste imenso mundo.
Quantas coisas vivemos juntos… Meu amigo, quanto sonhos, quantas ilusões, tantas dores, mas, também, muitas, muitas alegrias.
O Movimento Bananas, de 1988, no Centro Acadêmico XX de Agosto da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, foi um desbunde, não é? Divertíamo-nos à beça, zuávamos aquela galera reaça… Assim era, mais ou menos, como pensávamos, embora já despontavam ali, naquele meio febril de greves e sindicalismo, minhas inquietações espirituais tangido pelas aulas excelentes do Professor Clóvis Lema Garcia.
Naqueles vídeos aloprados do Bananas você era o companheiro das loucuras e das luzes. Só quem viveu aqueles tempos saberá do que estou falando. O câmera era o Waldir Arnaldo Martins, outro amigo que partiu tão cedo e nos deixou saudades. Há uma série de takes hilários.
Éramos jovens, provocativos, insolentes. Foram anos de muita irreverência. Só assim suportávamos aquelas jornadas que hoje provocam tantas saudades.
Lembro-me que depois das aulas íamos a um pequeno restaurante na Kennedy, uma pequena cantina de um italiano. Tomávamos um monte de cervejas, trinchávamos um frango e conversávamos sobre todas as coisas do mundo e da vida. O restaurante ficava logo ali, na velha Avenida Kennedy… Saíamos tarde das aulas e batíamos o ponto. Depois eu o levava para casa a bordo daquele golzinho amarelo, lembra-se?
Daniel morava com a mãe na Vila Vivaldi. Era uma senhora idosa, silenciosa, simples. A casinha era obscura, mas digna. Lembro-me tanto dela… recordava a minha própria, o meu amor, a Dona Memé… Éramos uns fodidos, pra falar a verdade… órfãos de pai, tínhamos uma história de vida muito semelhante, mas éramos valentes, a vida nos convocava à luta e não havia tempo a perder.
Foi naquele pequeno restaurante que me vi confrontado, pela primeira vez, com a morte de um amigo. Lembro-me bem da situação. De repente, irrompeu no ambiente uma canção dos Beatles — acho que foi The Fool on the Hill. Imediatamente me veio à memória, como um soluço das entranhas, a figura do Sérgio Santos. Disse ao Daniel: “ai, ai, meu Deus! que será de nós?” Fomos tomados de um vazio oceânico, um denso manto de silêncio, sombrio e solene, desceu sobre nós. Era um sentimento que não conseguíamos exprimir. Apagamo-nos como as estrelas que desmoronam sobre si mesmas e tragam tudo – memória, afetos, rancores, passado, futuro… Certamente haverá um novo mistério que surgirá além daquilo que hoje possamos compreender.
Mas eia! logo brindamos à vida, afastando as nuvens de sentimentos graves e soturnos. A vida continua! Ainda hoje, quando me lembro da situação, aquela sensação de vazio se revela sorrateira e me traga num torvelinho de emoções sem nome.

Soube de sua passagem na madrugada do dia 9/4. Acordei às 3 da manhã e não podia ferrar no sono. Um sentimento de vazio me invadiu, daqueles com os quais a gente não sabe como lidar. Peguei o celular e foi quando li a mensagem que me enviara a amiga Iêda Roberto.
Daniel de Souza Góes, querido amigo. Você partiu no dia 8/4/2021. Deixou uma lacuna imensa, um deserto que avança sobre a minha alma e na de tantos que cruzaram seu luminoso caminho.
Vá em paz, irmão. Somos peregrinos nesta terra, sempre soubemos, lembra? Adeus e… até logo!

Querido Sérgio Jacomino.
O seu texto bem reflete esses momentos tão mágicos da juventude, quando, embora conscientes da nossa situação de mortais, da nossa finitude terrena, essa condição de peregrinos, passageiros de um milagre, andarilhos aventureiros numa estrada chamada vida que nunca sabemos para onde há de nos levar. Aqui experimentamos uma existência natural, mas tão incompreensível quanto imperscrutável, tudo ainda é muito simples, embora misterioso.
A juventude nos dá a ilusória impressão de que temos adiante de nós a perspectiva de um caminho bem mais longo do que o até então já percorrido, o que nos permite agir com essa leveza, irreverência, insolência até, tão própria dos jovens.
Como seria bom se pudéssemos manter este ânimo, este mesmo espírito, sempre alegre e de esperança no futuro, durante todo o percurso, até que chegue ao final da estrada. Mesmo que, à certa altura da caminhada, percebamos que já percorremos muito mais da estrada do que nos é razoável supor que ainda nos reste até o final, até o ponto de chegada que a todos nós se apresentará um dia.
Quem dera que na vida pudéssemos aprender sempre, mas nunca desaprender ou esquecer as nossas mais emocionantes emoções, desde aquelas experimentadas nos primeiros dias da existência – como o conforto de ser alimentado pela mãe, nossa primeira vez em pé, nossos primeiros passos, os primeiros sons e imagens que nos foram possíveis distinguir e reconhecer, até as nossas primeiras dificuldades, lembrar de como as superamos e de como lidamos com todas elas. Nunca esquecer da mão segura que nos amparou nos primeiros passos, até que experimentássemos a primeira vez que conseguimos nos equilibrar sozinhos. E assim por diante. Jamais esquecer do nosso primeiro dia de aula, do convívio com os nossos parceiros de caminhada. Nunca esquecer dos nossos sonhos de menino, das nossas brincadeiras – às vezes tão sérias e importantes no momento. Não esquecer do primeiro amigo, da primeira vez em que nos sentimos responsáveis por fazer algo pela felicidade do outro. Não deixar de lado a primeira demonstração de solidariedade que recebemos. Lembrar sempre de nossas descobertas de todos os dias. Ter sempre presente a consciência de que estamos associando os conhecimentos para alcançar novas conclusões, de que estamos em verdade crescendo ao percorrer a estrada da vida.
Nada pode ser desprezado ou desconsiderado no caminho. Porque a certa altura haveremos de constatar que fomos, temos sido, muito felizes e abençoados durante todo o percurso, por mais doloroso que ele seja muitas vezes, porque a felicidade está ao longo da estrada e a dor é o que nos permite crescer e compreender melhor a existência, que não tem outro sentido senão o de sermos felizes.
Caro Sérgio, como você também tive o primeiro amigo, os amigos da juventude, os amigos que fui encontrando mais adiante no caminho. Também vi alguns partirem, alguns muito cedo, outros também me deixaram e partiram enquanto a minha estrada da vida ainda prossegue até o destino que está traçado. Também como você senti um vazio com a partida de alguns que sempre me pareciam mais alegres e cheios de vida, que muito poderiam ainda iluminar este mundo. Entretanto, sei que, enquanto estavam percorrendo a sua própria caminhada, fizeram felizes os que estavam à sua volta e que viveram intensamente.
Resta-nos homenageá-los guardando a sua memória em lugar especial de nossos corações, porque é lá que devem ser guardadas as coisas mais especiais.
Não é à toa que o inglês se refere à memorização de um poema ou de outras coisas boas indicando que devemos memorizar by heart – no francês, dizem que devemos lembrar de coeur. Mesmo em português, usamos a expressão de cor, decorar, com origem no latim cor, sempre nos apontando que as melhores coisas devemos guardar no coração, local em que a bíblia nos ensina que devemos resguardar para a morada do Espírito Santo.
Então, guardemos essas boas lembranças no coração, porque lá serão inesquecíveis, viverão para sempre.
O coração humano é o caminho da eternidade, lá não há o tempo que conhecemos, nem tampouco limitação de espaço, pois que é infinito. O coração humano desafia as leis física, porque relativiza, na verdade anula as noções de tempo e de espaço conhecidas e nos permite amar sem limites, viver a eternidade.
Acho que os antigos egípcios estavam certos quando retiravam do corpo todos os órgãos para que fossem mumificados, exceto o coração.
Guardemos com alegria gravadas nos nossos corações as melhores lembranças, deixemos que elas sejam sempre iluminadas e nutridas pelo Espírito Santo. Tudo o que lá estiver viverá para sempre.
É o que aprendi nesta vida e procuro fazer.
Receba um grande abraço e os meus sentimentos pelo momento de dor, que bem compreendi pois que também vivi a perda de amigos tão preciosos para mim.
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Recebi essa mensagem de um querido amigo que não quis se revelar inteiramente. Como sei que sua escrita pode servir como um consolo para todos nós que vivemos essa experiência dolorosa da perda, com sua autorização a divulgo aqui. Mais adiante, se quiser ele poderá se apresentar aos leitores deste cantinho cartorário.
Tristes tempos. Uma nuvem soturna paira sobre o país. A morte da democracia. E a morte, morte mesmo, real e concreta, como nunca. Que a luz sobrevenha. A cura. A vacina. A vida. O amor. E a compreensão entre os homens.
Li, emocionado, num misto de ontem e hoje. Aquele momento foi um marco, um divisor de águas, um a.B, e um d.B (antes e depois do BANANAS). Lembro do Góes, de você e da galera que ficava ali, com a alma em fogo, os olhos abertos e as asas crescendo. Lembro-me, também, da Av. Kennedy (do espaço italiano), da pizzaria e, sobretudo, da Padaria (logo no começo da Kennedy). Houve vida, caro Jacomino, e se mantém.
Eu vinha de longe e caí de paraquedas ali. Brincando, irreverente, falávamos da Faculdade como “Faculdade do Largo de São Bernardo do Campo”, numa mistura de afeto (sim, afeto pela FDSBC!) e crítica a um certo (?) da SanFran.
Segui caminho diverso. Cheguei um tanto “conservador” (na política e economia apenas!), e fui para o campo das Teorias Críticas, onde estou até hoje. E por que? Porque no meu caminho aconteceu o BANANAS! Grande tempo, tempo imenso, intenso, vivo.
Pietro Nardella-Dellova