Maria Helena Leonel Gandolfo

Revisitando as galerias de fotos do nosso IRIB, os rostos de tantos amigos e amigas passam rapidamente, como num flash animado por quadros complexos e inextrincáveis – conexões que se formam numa espécie de mosaico existencial. Com quantas pessoas cruzamos no curso de nossas vidas? Quantas delas nos marcam de modo indelével? Os encontros e desencontros são um mistério profundo que não nos é dado conhecer.

Nesta manhã fria penso que a vida é efêmera. As situações, cenários, rostos que se desenharam nesta longa jornada vão se esmaecendo e nos fica um sentimento de profunda e inconsolável solidão. Voltamo-nos para o passado, como quem busca dar sentido ao presente e nos fortalecer para os desafios do futuro. Lembro-me do Elvino, do Jether, do Carvalhaes, do Oliveira Pena, do Albergaria, do Fioranti… Tantos nomes, tantos lugares, tantos textos… tudo passa dançando na memória e no écran do meu computador, veloz, fugaz.

Lembro-me bem de Maria Helena figurando de modo indisputável nos encontros do IRIB. Acho que a primeira vez que nos cruzamos foi em Fortaleza, em 1996 (ou terá sido em Belo Horizonte, em 1997?). Eu estava animado com o admirável mundo novo da informática registral. Ela demonstrava interesse na matéria.

Apresentaríamos um trabalho naquelas duas oportunidades e há uma cena de que me recordo muito bem. Falava animado sobre as maravilhas e os perigos da informática e de repente fui capturado pelas observação atenta de Maria Helena, sentada na primeira fileira. Os olhos fixos em mim, ela murmurava, baixinho, as últimas palavras que encerravam as minhas frases – como quem buscasse fixar cada pensamento, sublinhando cada conclusão. Na verdade, ela intuía cada palavra final – como quem confirma as suas próprias conclusões. Estabelecíamos, ali, uma estranha comunhão.

Lembro-me, certa feita, de estar só em meu escritório registral em Franca (SP) lendo e apontando nótulas de estudos. Mal pude me conter quando me deparei com uma citação elogiosa do nome de Maria Helena no livro de Afrânio de Carvalho. Está lá, na nota 11 da página 119 da conhecida obra – “brilhante monografia”, como registraria para sempre o mestre e professor de todos nós. Havia ainda outra citação de Maria Helena, que há pouco recuperei e utilizei para criticar a aziaga reforma da Lei 6.015/1973: Cessão Fiduciária, que veio a lume em 1980[1]. Afrânio se apoiaria na doutrina de Maria Helena para as suas próprias conclusões (nota 9, p. 147 da 3ª edição, 1982). Liguei excitado para Maria Helena e ela, surpresa, foi buscar o seu exemplar para conferir. E rimos, os dois presos ao telefone, excitados, como quem acha uma pequena joia preciosa nas águas de um caudaloso rio.

Lembro-me de outra passagem. Eu falava com ela uma vez mais ao telefone e usei uma expressão que a impressionara e deixara perplexa – síndrome do beliche dominial. Referia-me ao fenômeno de superposição de glebas no meio rural e o desafio do Registro de Imóveis de coordenar-se com o cadastro. O trabalho se acha por aí, dormitando num escaninho qualquer do Instituto. Ela me interrompeu e perguntou com uma sinceridade desconcertante: – de quem é a expressão? Parece que a ideia lhe causava forte impressão. Fiquei encabulado e não lhe respondi.

Não éramos amigos muito próximos. Ela pertencia a uma geração de registradores que construiu o Registro de Imóveis que nós, os mais jovens, recebíamos como valiosa doação de veneráveis pioneiros. Havia uma relação de reverência com os nossos maiores.

Entretanto, mesmo depois de aposentada, nunca deixei de honrar a grande registradora paulista, tendo-a convidado para proferir, ao lado de renomados juristas, um curso de introdução ao Direito Registral. Ela nos brindaria com uma linda palestra para jovens sobre a sistemática dos cartórios.

Ela topou participar do Café com Jurisprudência, iniciativa que havia nascido e vicejado no Quinto Registro de Imóveis de São Paulo, proferindo uma verdadeira aula prática sobre a sistemática e o funcionamento dos Cartórios. “Podemos apresentá-las não como palestra ou aula, mas simplesmente como um bate-papo“, disse, sentindo-se confortável com a iniciativa informal do projeto Café com Jurisprudência[2].

Lembro-me de me ter encontrado com Maria Helena no Centro Cultural São Paulo, por ocasião do lançamento de um livro de Vange Leonel, sua querida filha. Eu e Vange trocamos algumas ideias sobre As Sereias da Rive Gauche. Vange foi cantora, compositora, letrista, escritora, uma mulher sensível e que cedo nos deixaria. O que ficou desse encontro imponderável é uma dedicatória no livro em que me formulava um repto – Sérgio, voltemos aos clássicos! Voltemos, Vange, voltemos.

Nossos encontros foram rareando com o passar dos anos. Recebia notícias por intermédio de Ademar Fioranelli ou de Clenilse Vanz, minha querida secretária. A última vez que estivemos juntos foi nas exéquias de Vange. Solidariza-me com a registradora naquele momento tão duro e ela, sempre firme e serena, lançou-me um profundo e dolorido olhar. Não pude mais do que lhe dar um abraço e foi ali mesmo, em julho de 2014, que se deu nossa despedida.

Uma geração de notáveis registradores passa e deixa sua marca inscrita no grande livro do Registro de Imóveis brasileiro. O que nos reserva o futuro? Não sei dizer. De alguma forma busco resgatar a memória de homens e mulheres que construíram este grande edifício institucional e, com isso, reatar um fio de desenvolvimento. Entretanto, vivemos um tempo de disrupção e desesperança.

Maria Helena foi um ícone, um signo perene na construção de uma grande obra institucional. Uma linda estrela que hoje se apaga, mas a sua luz nos acompanhará neste universo sensível até o último dia de cada um de nós.

Notas

[1] V. JACOMINO, Sérgio. Caução e Cessão Fiduciária. São Paulo: Observatório do Registro, acesso:  https://wp.me/p6rdW-2yQ

[2] Vide Boletim Eletrônico do IRIB n. 856, de 30/9/2003.

Um comentário sobre “Maria Helena Leonel Gandolfo

  1. Mesmo sabedor e não tendo essa proximidade amistosa, o vejo tal como vês a Sra. Maria Helena. Estabeleço com o Senhor não uma estranha comunhão, mas o mesmo admirar que tens para com os que lhe foram e que continuam fiéis, neste admirável mundo novo da informática registral, que já o era naquela época ao Senhor, e continua ainda, contemporaneamente, não só um admirável, mas também um confuso novo vivenciar do Notariado e do Registro. Quiçá saibamos, juntos todos, superar os desafios. Gratidão por sempre homenagear, com verdadeira inspiração, aqueles que lhe foram e continuam caros.
    Abraços!

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