No último dia 7 de agosto de 2025, por ocasião do L Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, participei, como debatedor da palestra Coordenação cadastro e registro: a experiência da Espanha, proferida pelo registrador espanhol, Fernando Jesús Manrique Merino.
Destaquei a importância do IRIB no tema, indicando as passagens mais importantes, honrando a memória do grande geômetra, professor e amigo pessoal, Dr. Jürgen Philips.
Procurado pela jornalista Keli Rocha (Cartórios com Você), concedi a entrevista que o leitor lê abaixo, na íntegra.
O senhor teve um papel preponderante na aprovação da Lei nº 10.267/2001, pode pontuar ao longo desses 24 anos os avanços e desafios em legislação e controle registral?
Eu tive a honra e o privilégio de conduzir, à frente do IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, as tratativas com o governo federal que culminaram com o advento da Lei 10.267/2001 e de seu regulamento – Decreto 4.449, de 30 de outubro de 2002. No transcurso das discussões legislativas foi possível demonstrar que era perfeitamente possível estabelecer um protocolo de coordenação entre duas instituições, que são distintas e singulares, embora interdependentes – o cadastro técnico e o registro imobiliário. Essa distinção nem sempre é percebida ou valorizada, especialmente pelo Governo, que enxerga o registro de direitos como mero apêndice do cadastro. [Para conhecer a história da criação do GEO-IRIB, acesse: https://www.youtube.com/@IribAcademyIRIB/playlists.
Em que medida o Provimento nº 195/2025 representa um avanço tecnológico no sistema registral brasileiro?
O provimento concretiza uma iniciativa que se iniciou, há muito tempo, com a criação de um grupo de trabalho que envolveu o IRIB e os núcleos de estudos como o GTCI – Grupo de Trabalho sobre Cadastro Imobiliário da Universidade Federal de Santa Catarina e, mais tarde, com a Universidade Federal do Pernambuco. Inaugurávamos o milênio com as propostas que agora se concretizam no ONR. A coordenação do cadastro e o registro imobiliário, tendo por objeto áreas urbanas e rurais, foi defendida pelo IRIB e pela Professora Andrea Carneiro (UFPE) no transcurso do XXVII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, realizado em Vitória (ES) em agosto de 2000, onde se apresentou elaborado relatório de pesquisas na área de coordenação entre o cadastro físico e o registro imobiliário brasileiro.[1]
No ano seguinte, celebrou-se um convênio com a universidade para utilização de sistemas cartográficos pelos Registros de Imóveis no Brasil, com apoio técnico e científico da UFSC. Naquela oportunidade, buscou-se inspiração no Projeto GeoBase do Colégio de Registradores da Espanha, com o assessoramento e formação do Serviço de Cartografia da Universidade Autônoma de Madri. As iniciativas ocorreram “em virtude de convênio de colaboração subscrito com o fim de se criar um Sistema de Informação Geográfica no Registro de Imóveis, permitindo estudar as técnicas para a conexão de bases gráficas cadastrais com os dados alfanuméricos do Registro e definir os procedimentos básicos para a gestão registral”.[2]
Pode-se dizer que as lições do Professor Dr. Jürgen Philips foram as sementes que agora germinaram no âmbito do ONR. Sob sua orientação, o IRIB e o próprio CNJ visitaram o modelar sistema de coordenação entre o cadastro e o registro imobiliário da Alemanha em 2007. É possível rastrear as iniciativas pioneiras que culminaram neste inegável avanço do sistema registral nos anais do próprio IRIB-Academia.
Pode pontuar quais os benefícios que as ferramentas IERI-e e SIG-RI trarão para o melhor controle dos registros de imóveis do país?
O benefício mais evidente é que o SIG-RI pode vir a ser uma ferramenta tecnológica que permitirá ao registrador realizar operações de controle da malha territorial com o apoio de recursos gráficos. A técnica narrativa adotada no Brasil (inc. I do art. 231 da LRP) poderá ser superada pelo registro eletrônico (SREI) que poderá acolher os dados relativos aos pontos georreferenciados do polígono, representando-o e relacionando-o com os demais imóveis lindeiros.
Todavia, não deveria ser mais do que uma ferramenta tecnológica reconhecidamente útil e poderosa a serviço do cartório. Quando se pretende promover a integração com os cadastros oficiais já existentes, gerando relatórios de área, perímetro, identificando sobreposições e localização dos imóveis e gerando uma informação que se reveste da legitimação registral, alguns cuidados essenciais deverão ser tomados. Não se deve esquecer que os cadastros cobrem parcelas (que são entes distintos de imóveis – art. 79 do CC) e alcançam imóveis irregulares ou que prescindem do sistema registral. É bastante clara a disposição que se acha no art. 5º do Decreto 11.208/2022: O cadastro reconhece imóveis ou parcelas, “independentemente da sua matriculação no Registro de Imóveis competente e do título de domínio respectivo, não gerando qualquer direito de propriedade, domínio útil ou posse”.
O surgimento de vários cadastros imobiliários no Brasil (CNIR, SIGEF/INCRA, CAR, SINTER/CIB Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais/Cadastro Imobiliário Brasileiro), além dos cadastros municipais de imóveis urbanos, estaduais e setoriais etc.), acabou gerando fenômenos de duplicidade, redundância, incongruências, entre cadastros que não interagem e não compartilham dados entre si. Atento ao problema, o TCU, no âmbito de suas atribuições, recomendou medidas de racionalização (TCU – acórdão 1.942/2015 – Governança de solos em áreas não urbanas). O Tribunal observou, e criticou, a grande quantidade de legislações sobre o mesmo tema e a vasta gama de instituições governamentais dispersas sem clara delimitação de funções.
A resposta ao TCU pode ter sido o advento da Lei-Complementar 214/2025, com a criação do SINTER/CIB, erigido como núcleo de convergência para consolidação de dados cadastrais relativos a bens imóveis (urbanos e rurais) que deverão ser inscritos no CIB (art. 265 da LC 214/2025).
A existência de cadastros concorrentes não é racional, nem funcional, nem tampouco empresta maior segurança ao sistema de gestão territorial, nem mesmo dos registros imobiliários. No ecossistema criado pelo SINTER, os notários e registradores acham-se obrigados a remeter dados atualizados ao CIB, mas devem igualmente servir a vários cadastros. O advento do CIB obriga a adoção, pelas serventias, do código de identificação cadastral dos bens imóveis (art. 266, I, “b” da LC 214/2025). Entretanto, os dados são igualmente remetidos para a mesma RFB por meio da DOI (art. 8º da 10.426/2022 e IN/RFB 2.186, de 12/4/2024) – além do dever dos notários e registradores em comunicar as mudanças de titularidades de imóveis aos municípios, nos termos do Provimento CNJ 174/2024 (art. 184-A do CNN-CN-CNJ-Extra e art. 4º da Resolução n. 547, de 22/02/2024).
No bojo das reformas recentes, a Receita Federal do Brasil baixou a Instrução Normativa RFB 2.275, de 15/8/2025, que regulamenta dispositivos da Lei Complementar nº 214/2025, fortalecendo o Sinter como plataforma oficial de compartilhamento de dados entre serviços notariais e registrais e as administrações tributárias. Os notários e registradores deverão integrar-se ao Sinter para o compartilhamento de informações e documentos relativos às operações com imóveis, como previsto no art. 255 da LC 214/2025, entre eles operações de alienação, locação, cessão onerosa ou arrendamento, cessão ou de atos onerosos translativos ou constitutivos de direitos reais sobre bens imóveis. A RFB busca vincular diretamente a atividade registral ao regime fiscal e cadastral, integrando a publicidade registral ao sistema do Sinter. O CIB será identificador único de cada bem imóvel urbano ou rural (art. 5º).
Corre-se, efetivamente, o risco de se criar uma Babel Cadastral caso o SIG-RI ultrapasse os limites operacionais e administrativos das serventias. O modelo que sempre defendemos foi o de coordenação e interoperabilidade, não a assimilação dos dados e atribuições próprias de cada instituição. Nesse sentido, o Brasil deveria buscar a construção de um cadastro nacional com as características dos CTM (Cadastros Técnicos Multifinalitários).
Em que sentido o Provimento nº 195/2025 facilitará o papel estratégico dos registradores de imóveis no combate a práticas ilícitas como grilagem e fraudes?
O fenômeno da grilagem de terras é multifatorial e seus impulsos ocorrem além dos limites do registro imobiliário. Episodicamente, a fraude pode ocorrer com o concurso de um ou outro cartorário – como pode ocorrer com um ou outro agente público. Entretanto, o registro de imóveis não contribui ativa e estruturalmente para a ocorrência do fenômeno, de modo que não pode se tornar um ator ativo no seu combate, que deve ser empreendido pelas autoridades competentes. O que o Registro pode e deve fazer é controlar, com base em seus tradicionais princípios, a continuidade, a especialidade, a autenticidade da titulação etc. A ferramenta tecnológica pode ser um instrumento coadjuvante importante.
Quais são as peculiaridades da Lei nº 10.267 diante do Provimento nº 195/2025?
A pergunta é muito oportuna. O modelo adotado no ecossistema da Lei 10.267/2001 deveria ser adotado pelo Provimento e aqui a palavra-chave é: interoperabilidade. As grandes cidades já contam com ferramentas GIS (Geographic Information System) que adotam linguagem e código interoperáveis. O acesso às tais bases se dá rotineiramente pelos cartórios, como no caso do GEOSAMPA[3] – o “mapa digital da cidade de São Paulo”. Com a ferramenta paulistana, os cartórios podem localizar os imóveis, calcular a área, verificar a situação física, obter informações e outros insumos. Entretanto, nem o cadastro altera o registro, nem o registro o cadastro; ambos permanecem singulares e indispensáveis para a realização de seus fins.
O modelo conceitual que inspirou a criação da infraestrutura do SIGEF (Sistema de Gestão Fundiária) foi a criação de uma infovia que conecta o sistema registral brasileiro ao cadastro técnico gerido pelo INCRA. Trata-se de um protocolo de coordenação e interoperabilidade entre as instituições referidas. Já a determinação certificada do polígono é atribuição do cadastro.
Os dados georreferenciados, encaminhados aos cartórios após certificação pelo órgão oficial, fornecem elementos para a criação de mosaicos baseados em tecnologia GIS (Geographic Information Systems), que utiliza vários instrumentos para definição e determinação dos vértices, vincando os limites do imóvel. Com isso, torna-se possível a representação gráfica das figuras geodésicas que compõem o mapa. A utilização de ferramentas auxiliares para formação de tais representações territoriais pelas serventias (e para controle de superposição e outras distorções e erronias) acabou levando à criação do SIG-RI, que tem a vantagem de concretizar a diretriz essencial que norteou a criação do próprio ONR – o compartilhamento de recursos entre as várias unidades e a coordenação com a administração.
A ideia não é original. Afrânio de Carvalho, já no final da década de 40, apresentou um anteprojeto de Lei Agrária em que propunha que o Cadastro Territorial e o Registro de Imóveis deveriam atuar conjuntamente, com módulos interdependentes e integrados na serventia (art. 121 do anteprojeto). Era uma ideia bastante avançada e jamais chegou a se concretizar.[4] Mais tarde publicaria um livro dedicado ao tema, onde deixou consignado:
“Esse sistema de registro, recomendado por tantos motivos ligados à racionalização e modernização do trabalho, há de superar a preocupação burocrática pela preocupação técnica, já simplificando a tomada da posição jurídica dos imóveis, já conjugando-a com a tomada da sua posição física. A simplificação facilitará o conhecimento imediato da posição jurídica, mas, como esta se refere a um objeto, importa que também este se torne logo possível de conhecimento. Conquanto os escritos onde se define a posição jurídica dos imóveis tragam também a sua descrição, esta, pela sua precariedade e nebulosidade, não serve para dar a sua posição física, que somente aparecerá com a necessária firmeza e nitidez no desenho. Estas considerações induzem a concluir que o atual registro de imóveis precisa sofrer uma reforma dupla, a saber, simplificadora dos livros e introdutora das plantas. Noutras palavras, um só livro fundiário e um cadastro territorial”.[5]
Talvez tenhamos chegado ao tempo de concretizar as ideias de Afrânio de Carvalho. Alerto, contudo, que se deve vincar as singularidades de cada instituição. Não vá o registrador (e o agrimensor ou o geodesista) além das sandálias.
Notas
[1] Boletim Eletrônico do IRIB n. 224, de 8/8/2000.
[2] Boletim Eletrônico do IRIB n. 301, de 10/4/2001.
[3] https://geosampa.prefeitura.sp.gov.br/PaginasPublicas/_SBC.aspx
[4] Anteprojeto de Lei Agrária – com previsão sobre registro imobiliário e cadastro. Diário do Congresso Nacional, 15/1/1948, p. 479 a 485.
[5] CARVALHO, Afrânio. Reforma Agrária. Rio de Janeiro: Ed. O Cruzeiro, 1963, p. 152.





