O velho Ermitânio Prado caminha todas as manhãs pelos becos e reentrâncias do quarteirão de seu edifício. Odeia atividades físicas, abomina a cultura fitness, mas aprecia o sol de outono sobre a pele alva. Caminha lentamente, absorto, deixando-se arrebatar pela luz que incide de modo oblíquo na própria face, esbatendo suavemente nos costados do velho prédio da Biblioteca Municipal.
– “A luz outonal não se tinge do mefitismo local, nem se impregna dos miasmas da baixa Augusta, infestada de ratos, putas e miseráveis tragados pela droga”, diz.
Está de mal humor, como de costume. Emparelho o passo e vou ao seu lado, em silêncio.
– “Estamos vivendo uma crise complexa” – diz. “Vivemos uma crise institucional, de confiança, deontológica…”. Pigarreia e dá um longo suspiro. “Uma crise intestina cujo resultado são leis que fertilizam o solo da ignorância. Com todo o mar à frente para desbravar, exércitos inteiros de infiéis para guerrear, e nossos soldados investem, velas enfunadas, contra as muradas fortificadas da cidadela aliada”.
Nunca questiono o Velho em seus arroubos retóricos. Deixo-o falar como quem necessita desabafar. Segue na costumeira palração, entrecortada pela respiração ofegante e ansiosa.
– “Gato escondido – rabo de fora, diz o dito popular. O malsinado texto legal – giza o vácuo, como se tocasse um pergaminho invisível – traz o sinete de um velho conhecido… O homem é seu estilo e o texto sua marca. Esfragística tosca, escriba, tomada de arremedo na Feira da Ladra. Cães miseráveis! Cedo ou tarde há de se constituir o opróbrio”.
O Velho ficou neste estado depois de ler o texto que tramita no Senado Federal e que trata da conversão da Medida Provisória 700, de cuja andança aziaga e desenlace infausto dei notícia aqui mesmo.
Para o Velho Leão do Jocquey, o texto é lamentável, deplorável, mal redigido. “Parece formar-se um triste contubérnio, atraídos ao tálamo de barregões, onzeneiros e argentários da pena, aproveitadores políticos e parvos metidos em estolas de sua corporação de ofício”.
Dispenso a adjetivação perfeitamente desnecessária e busco traduzir o pensamento do Velho. Deixemos de lado – disse a ele – o exercício gongórico a que se dedica de modo extremoso. Vamos direto ao ponto, Dr. Ermitânio. Ao ponto!
Toma um trago do arzinho frio da manhã e diz que o art. 68-A, a ser introduzido na Lei 11.977/2009, é uma barbaridade inominável. Inaugurar-se-ia, no seio do RTD, atribuições que tradicionalmente estavam cometidas a outras especialidades. Na vertente notarial, são criadas competências para identificação e formação de cadastros de possuidores de áreas públicas ou privadas, autuação e lavratura de atos e atividades documentárias, culminando com a titulação de direitos de caráter estritamente pessoal. Na registral, promove-se a quebra da unicidade de competência para o registro de atos relativos a bens imóveis. A partir de agora, haverá dois nortes magnéticos de registro imobiliário, dupla referência, com consequente incremento de custos de due diligence e confusão geral dos utentes.
– “Já não bastava a confusão diabólica entre cadastros e registros jurídicos? Era necessário alimentar esse fogo estranho que agora arde na pira tradicional dos registros públicos?”.
A vasa legislativa e o crédito imobiliário
O impacto dessa vasa legislativa logo se fará sentir nas transações imobiliárias. O próprio mercado do crédito imobiliário sofrerá o impacto de processos mais burocráticos (e custosos) já que, para a concessão do crédito, deverá ser extraída certidões da matrícula e do RTD, além de uma penosa investigação dominial em cartórios cujos índices não contam com dados reais (distribuidores cíveis e cartórios de RTD). Será preciso investigar a existência de posse legitimada. Nada mais frustrante do que ser surpreendido por um direito de propriedade que nasce ao cabo de uma legitimação de posse travestida de usucapião pendente de declaração judicial.
O velho lança algumas perguntas como quem duela.
– “Como o processo se vai coordenar com o Registro de Imóveis? Partir-se-á sempre de presunções e com base em meras declarações unilaterais? Veja bem, escriba, sem a definição de territorialidade, qualquer RTD poderá lidar com o processo. Bastará mera declaração de domicílio para deslocar a competência antes precisamente demarcada pelo princípio da territorialidade do Registro de Imóveis (art. 130 da LRP). É isso mesmo, cara pálida? Bastará apenas um edital (art. 68-A, inc. II) para chamamento dos interessados ao processo? O que impede o colega da comarca vizinha de realizar a legitimação? Como conciliar os interesses de titulares de circunscrições distintas? Estaremos dependentes de regulamentação de distribuidores pelas corregedorias? Já não bastam as controvérsias que se originaram da canibalização de atribuições que redundam em massadas tribunalícias? Que diabos de territorialidade é esta que estará na base de um registro eletrônico nacional centralizado feito para indicar a ocorrência de eventual regularização fundiária em Xiririca da Serra de imóvel localizado em Macapá? It´s no make sense…”.
Regularização fundiária e o “monstro de Horácio”
E a regularização fundiária? O Ministério das Cidades terá percebido que sabota a própria obra?

Depois de um amplo, dedicado, intenso e sério debate que redundou no processo de demarcação urbanística e legitimação de posse da Lei 11.977/2009, em memoráveis encontros entre juristas, urbanistas e registradores, será possível que vamos agora vilipendiar aquelas ideias originais gerando um monstrengo imperfeito?
– “Monstro de Horácio, caro monge copista, um Monstro de Horácio”, exclama, na toma da deliciosa expressão dos clássicos.
Registro bisado – custo duplicado
De fato, a demarcação e legitimação de posse, feitas no Registro de Imóveis, de pronto produzem um título de direitos, apto para gerar efeitos jurídicos e ingressar no mercado e garantir o crédito imobiliário (art. 69 da Lei 11.97/2009 c.c. n. 41, I, do art. 167 da LRP). Esse título poderá ser cedido e transferido e a cessão deverá ser regularmente registrada (art. 60-A da Lei 11.97/2009).
E o que ocorrerá com a legitimação de posse registrada em RTD? Teremos um título de direitos com eficácia real, oponível erga omnes? Se a resposta for afirmativa, decrete-se o fim do sistema de registro de direitos imobiliários no país. Se não – como de fato não pode nem deve ser – teremos que concordar que a iniciativa é um estorvo oneroso, ineficiente, que servirá unicamente para aposição de um carimbo registral e gerar a aparência de “papel passado em cartório”, em perfeito ludibrio de pobres diabos seduzidos pela propaganda política.
O Velho Ermitânio Prado não crê que os técnicos do Ministério das Cidades desejam, sinceramente, que o Registro de Direitos, que o Brasil a duras penas vem tentando erigir há mais de 160 anos, agregando valor à proclamação da situação jurídica pela escrupulosa qualificação registral, seja afinal convertido em mero Registro de Títulos. Será possível – questiona – que vamos investir “num depósito de papeis passados cujos direitos estarão sempre na dependência de um registro bisado no cartório competente ou de confirmação judicial?”.
Certamente não se quererá que o trabalho desenvolvido ao longo de uma década se perca em ludibrio jurídico ineficaz e oneroso.

Aprovado esse monstrengo, nossa referência, de agora em diante, passará a ser o velho e agônico sistema francês, cuja ineficiência, onerosidade e irracionalidade é denunciada por todos aqueles que se dedicam seriamente a estudar os sistemas registrais mundo afora.
Adenda
Para ver todas as fotos que comprovam a modelagem do sistema de titulação pela demarcação urbanística e legitimação de posse, acesse: