Penhor de escravos e queima de livros de registro

Dando seguimento aos debates acerca da queima de arquivos relativos à escravatura no Brasil, dialogando com os textos já publicados anteriormente¹,  hoje trago à reflexão dos nossos leitores os textos de decisões administrativas que serviram de base para as medidas draconianas baixadas por Ruy Barbosa, apresentando algumas das razões que podem subjazer à decisão ministerial a que se aludirá abaixo.

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Soriano Neto, Machado, Ruy e a queima de arquivos

A leitura das reflexões do Conselheiro Ayres – José da Costa Marcondes Ayres, como se vê em Esaú e Jacó (Cap. XII) -, proporcionou-me uma temporada de fruição verdadeiramente prazerosa. Dei notícia dessa espécie de contradição alhures – estar na Bahia lendo o Memorial de Ayres num resort – “tanta vida lá fora e eu aqui dentro…”.

Mas a leitura de Machado, à parte a viagem psicológica que o texto proporciona, dá-me as chaves para discutir o tema que me entretem ultimamente – velhos e renovados enigmas e desafios do Registro de Imóveis, nomeadamente: qual a razão de Ruy Barbosa haver determinado a destruição dos documentos sobre a escravatura? Além disso, e mais importante, Por que os Registros de Imóveis não cumpriram a determinação legal constante do § único do art. 11 do Decreto 370, de 1891? Diz o dito parágrafo:

Paragrapho unico. Os livros do registro sob o n. 6, nos quaes era transcripto o penhor de escravos, serão incinerados, e si delles constarem outros registros, estes serão transportados com o mesmo numero de ordem para os novos livros de ns. 2, 4 ou 5.

Suspeito que somente um registrador perceberia esse dispositivo solto no conjunto normativo da época, obscurecido, um tanto, pela incandescente verba emprestada por Ruy Barbosa à famosa Decisão de 14 de dezembro de 1890 que determinava a arrecadação e incineração de todos os papéis, livros e documentos existentes nas repartições do Ministério da Fazenda “relativos ao elemento servil, matrícula dos escravos, dos ingenuos, filhos livres de mulher escrava e libertos sexagenários”.

Ruy Barbosa foi injustamente atacado por esse expediente deveras acabrunhante. “Irreflexão, leviandade ou aleivosia – eis o tríptico da malévola e reiterada acusação a Rui Barbosa em torno dos arquivos da escravidão” bradará Francisco de Assis Barbosa na firme refutação das acusações levianas assacadas contra o Águia de Haia (LACOMBE. Américo Jacobina. SILVA. Eduardo. BARBOSA. Francisco de Assis. Rui Barbosa e a queima de arquivos. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988, p. 11).

Veremos em outra parte as razões apresentadas pela crítica para justificar a decisão de Ruy.

Interessa-me, aqui, resumidamente, destacar uma passagem de Machado de Assis, aliás da glosa penetrante de José da Costa Marcondes Ayres, Conselheiro Ayres, que retraça e antecipa a trajetória frustânea da Decisão de 1890.

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Machado de Assis

Colhe-se do delicioso texto o seguinte:

“Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os actos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da história, ou até da poesia”. (ASSIS. Machado de. Memorial de Ayres. Rio de Janeiro: H. Garnier. 1908, p. 56).

Os atos particulares, as escrituras tabelioas, os registros hipotecários, os autos judiciais, esse riquíssimo veio nunca se exauriu da informação logo reputada infamante. Remanesce à espera da prospecção inteligente da história.

Várias são as razões de se não terem atendidas as determinações da resolução ministerial. No caso dos livros de penhor de escravos (Livro 6 do Regulamento de 1864) o mais razoável será supor que os penhores ou estariam peremptos ou seriam simplesmente ineficazes depois da abolição. Aliás, tal era a situação dos credores hipotecários e pignoratícios, desfalcados repentinamente da garantia. Vários projetos foram enviados à Câmara e ao Senado para buscar a indenização não só a estes, como, especialmente, aos proprietários de escravos. Vale, como simples exemplos, citar dois (alias reproduzidos no livro acima citado).

Na Câmara colhe-se o projeto encaminhado por Coelho Rodrigues e lido já na sessão de 24 de maio de 1888:

“Fica o governo autorizado a indenizar, em títulos da dívida pública, os prejuízos resultantes da extinção do elemento servil, aos ex-senhores de escravos e aos credores hipotecários e pignoratícios, em relação aos compreendidos nos respectivos títulos de crédito, podendo, para isso, fazer as operações necessárias”. (Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 24 de maio de 1888, p. 113-4).

Já no Senado conhecemos a proposta e os argumentos lançados pelo Barão de Cotejipe que trazia, em suas consideranda, a notícia do perecimento da garantia: “Considerando que, em virtude da Lei 1.237, de 24 de setembro de 1864, os escravos pertencentes às propriedade agrícolas – especificados nos contratos – eram objeto de hipoteca e penhor; etc. (Anais do Senado, sessão de 19.6.1888, p. 107).

Os projetos buscavam a indenização pelos prejuízos sofridos com a célere abolição da escravatura, na senda de outros países que igualmente aboliram o vínculo servil. Esse seria o objetivo capital da eliminação dos documentos: fundamentos probatórios para o pleito de indenização.

Ao final e ao cabo, voltando aos velhos e pesados livros, o traslado das ditas transcrições seria custoso e de difícil consumação, já que tal implicaria uma investigação afanoza e de duvidosos resultados práticos. Não foram poucos os registros cujas garantias eram constituídas de escravos e outros bens necessários à lavoura.

Hipoteca e penhor de escravos

O Decreto 482, de 1846, já aludia à  “hypotheca” dos escravos (art. 2º). Mais tarde, o sistema registral acolherá o penhor de escravos e a hipoteca destes, considerados bens acessórios do principal (propriedade). Assim dispunha a Lei 1.237 de 24 de Setembro de 1864:

Art. 2.º A hypotheca é regulada sómente pela Lei civil, ainda que algum ou todos os credores sejão commerciantes.

(…)

§ 1.º Só podem ser objecto de hypotheca:

Os immoveis.

Os accessorios dos immoveis com os mesmos immoveis.

Os escravos e animaes pertencentes ás propriedades agricolas, que forem especificados no contracto, sendo com as mesmas propriedades

Devo ao registrador João Pedro Lamana Paiva a observação de que se mantinha a hipoteca de escravos após 1864 – fiado que estava, por ter compulsado inúmeros livros de penhor de escravos, que somente essa modalidade de garantia subsistia.

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Debret

Porém, é preciso destacar que a hipoteca de escravos somente se dá conjuntamente com a propriedade, como se vê na parte final do articulado. A mesma lei vai estabelecer que, no caso de escravos, quando considerados destacadamente, teríamos a figura do penhor de escravos; Assim dispunha o art. 6º, § 6º:

§ 6.º O penhor de escravos pertencentes ás propriedades agricolas, celebrado com a clausula constituti, tambem não poderá valer contra os credores hypothecarios, se o titulo respectivo não fôr transcripto antes da hypotheca.

O penhor mercantil de escravos era vedado pelo Código Comercial de 1850 (Lei 556, de 25 de junho de 1850, art. 273) mas previsto indistintamente pelo regulamento hipotecário.

Este Regulamento (Decreto 3453 de 26 de abril de 1865) criou o Livro 6 – transcrição do penhor de escravos:

Art. 30. O livro n.º 6 – Transcripção do penhor dos escravos -, servirá para a transcripção do penhor escravos pertencentes ás propriedades agricolas celebradas com a clausula constituti (art. 6.º § 6.º da lei).

O Decreto igualmente considerou os escravos bens acessórios da propriedade:

Art. 140. Considerão-se accessorios dos immoveis agricolas e só podem ser hypothecados com estes immoveis:

§ 1.º Os instrumentos de lavoura e os utensilios das fabricas respectivas, adherentes ao sólo.

§ 2.º Os escravos e animaes respectivos, que forem especificados no contracto.

O art. 139 é claro:

Art. 139. Póde ser objecto da hypotheca, mas juntamente com os immoveis, a que pertencem, os accessorios dos immoveis, ou os immoveis por destino.

Já apontava em 1866 Agostinho Marques Perdigão Malheiros:

“A hypotheca de escravos não póde hoje recahir senão sobre os que pertencerem a estabelecimentos agricolas, com tanto que sejão especificados no contracto, e só conjuctamente com taes immoveis como accesorios destes, do mesmo modo que os animaes”. (MALHEIROS. Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil. Ensaio histórico-jurídico-social. Parte 1ª – jurídica. Direito sobre os escravos e libertos. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1866, p. 70, § 49).

Em suma, hipoteca e penhor de escravos o sistema registral os acolheu em seus livros até a reforma de Ruy Barbosa e com isso voltamos ao princípio e ao Conselheiro Ayres.

Finalizo registrando que a edição de Memorial de Ayres, da qual extraio a passagem acima citada, é de 1908, data de falecimento do grande escritor brasileiro. O aspecto mais interessante desta edição – uma “nova edição” da Garnier, aliás do mesmo ano da primeira -, é o fato de que o livro foi adquirido por J. Soriano Netto, “acadêmico de Direito”, como grafaria com sua letrinha caprichada a 5 de julho de 1913 estampando sua assinatura na obra que agora se acha ao meu lado.

Será este mesmo Soriano Netto que não hesitaria em derribar o edifício da fé pública registral, cuidadosamente erigido por Clóvis e abonado por juristas de escol. A tese do brilhante jurista pernambucano, aliás, inspirada por eventual interesse advocatício (assim mesmo sugere Serpa Lopes) foi ligeiramente sufragada pelos tribunais brasileiros e nos dá, hoje, essa estranha combinação de efeito constitutivo do registro, de boa filiação germânica, com a menor eficácia do registro brasileiro em contraste com os sistemas da mais pura filiação latina.

Coisas do Brasil!

Soriano Neto

Depois de escrito este texto, fui advertido pelo neto do grande Soriano Neto acerca da ligeireza da crítica lançada no texto tal e como originalmente escrito. Ele tem razão. A maneira como tratei do assunto merece um reparo, razão pela qual alterei a parte final deste texto para escoimá-lo de qualquer julgamento precipitado e injusto.

Recebi uma mensagem (tornada pública) de Flávio de Alencar que nos dá um testemunho da família do nosso conhecido jurista:

Gostaria apenas de comentar um fato importante sobre Soriano Neto: ele era, como pelo sobrenome já se pode supor, neto de José Soriano de Sousa, que foi grande professor da Faculdade de Direito do Recife, médico de formação, doutor em filosofia pela Universidade de Lovaina. José Soriano de Sousa foi um grande tomista brasileiro, inaugurando a retomada do direito natural clássico no Brasil no século XIX. Seu “Compêndio de Filosofia”, com mais de 600 páginas, foi largamente usado nos seminários brasileiros, até meados do século XX.

Na ocasião em que revejo o texto, julguei oportuno fazer as correções devidas (dez. 2022, SJ).