Cartório: uma instituição em decadência?

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Estamos nos acostumando com a emasculação das instituições jurídicas neste país. Perigosamente, estamos desconsiderando a importância e o valor da tradição, que no caso dos notários e registradores é mais do que secular.

Estamos presenciando um bárbaro retrocesso quando há ostensiva desvalorização e desapreço das instituições notariais e registrais brasileiras. Verificamos, consternados, a manifestação pública de autoridades, por meio de jornal de grande circulação e prestígio, questionando a importância dos serviços notariais e registrais brasileiros, propondo uma “desburocratização” dos negócios jurídicos e a extinção, pura e simples, dessas instituições (Cfr. Folha de S.Paulo de 06/07/96, página 3, caderno 2, Urbano Ruiz).

O lamentável em tudo isso é que essas manifestações denunciam grave preconceito e mesmo ignorância da história do direito brasileiro. Além disso, essas declarações vão na contramão da história, já que há, no mundo todo, uma revitalização do notariado, uma revalorização da tutela pública de interesses privados. Basta o exemplo dos Estados Unidos, que criou a figura do CyberNotary, profissional do direito encarregado de dar autenticidade e validade aos documentos eletrônicos.

O notariado de inspiração latina e os registros de segurança jurídica desfrutam, no mundo desenvolvido, de grande prestígio e são de importância inquestionável à cidadania.

Visando trazer às novas gerações de estudiosos do direito – aos notários, registradores, juízes, advogados, promotores, procuradores – as obras clássicas do direito brasileiro, o Instituto de Registro Imobiliário do Brasil obteve autorização para publicação, na prestigiosa Revista do IRIB, do precioso livro de João Mendes de Almeida Jr.: “Os Órgãos da Fé Pública“. Comemorando o centenário da primeira aparição do texto, nas páginas da Revista Jurídica da Faculdade de Direito de São Paulo, em 1897, o IRIB presta uma justa homenagem ao Eminente Jurista e põe em pauta a importância dos serviços notariais e registrais brasileiros, injustamente atacados.

Mais uma vez estamos verificando a falta de seriedade no debate instaurado pela imprensa acerca da real utilidade e da necessidade de serviços públicos notariais e registrais no Brasil.

Mais uma vez esse debate – que poderia ser útil e proveitoso para o aperfeiçoamento de nossas instituições jurídicas – descamba para uma lamentável sucessão de equívocos e imprecisões técnicas que chegam mesmo a surpreender, se considerarmos que exprimem uma visão – distorcida, é bem verdade – de um Juiz de Direito, de quem se espera sempre sobriedade e moderação. Refiro-me ao magistrado Urbano Ruiz na entrevista publicada pela Folha de São Paulo de 14/2/97, entre outras.

Mas, facilmente chega-se à conclusão de que essa diatribe não convém às pessoas sérias e devotadas de nossa categoria que emprestam à causa pública as suas melhores qualidades. Os argumentos esgrimidos nessas reportagens não são verdadeiramente relevantes. O absurdo da proposta, de extinção pura e simples dos serviços notariais e registrais no país, é de uma indigência intelectual desconcertante. Seria o mesmo que propor o fim da aviação civil porque caíram algumas aeronaves, ou matar as pessoas nas ruas para provar a falência da segurança pública…

Fica aqui consignado que os serviços notariais e registrais no mundo contemporâneo gozam de especial prestígio e importância. E aqui mesmo, nesta página, há a indicação de inúmeros sítios que poderão ser visitados e constatada a veracidade do que afirmo.

Mesmo nos países em que não há a tradição de um notariado de perfil latino, como é o caso dos Estados Unidos, há uma tendência significativa de valorizar a figura do notário como profissional do direito que, com independência e preparo técnico, reduz a vontade das partes em instrumentos dotados de fé pública. A palavra chave é autenticidade. Confira as notícias que nos dá Ted Barassi , e a American Bar Association .

Portanto, se existe algo a ser feito agora, isto chama-se trabalho. Trabalho e serenidade. Como não se trata de uma discussão séria, é bobagem tentar responder às essas invectivas. Vamos estudar, aperfeiçoar ainda mais o nosso trabalho. Mostrar à sociedade que existem homens íntegros e sérios que suportam as instituições que representam e prestigiar o nosso Tribunal de Justiça no sentido de apurar as irregularidades que ainda possam existir nos serviços notariais e registrais, sempre consagrando o devido processo legal e garantindo a ampla defesa. 

SELOS DE AUTENTICIDADE

Nessas reportagens, tem-se debatido acerca do selo de autenticidade para os atos notariais. Afinal, quem o concebeu? Quais as suas verdadeiras finalidades? Para quem não sabe, o proto selo de autenticidade – que hoje é adotado no Estado de São Paulo, apresentado em moderna impressão holográfica – foi criação de D. Dinis.

Por lei de 1305, D. Dinis determinou que, além da presença de cinco testemunhas, para a validade e autenticidade de algumas escrituras lavradas por tabeliães portugueses, deveria haver a aposição de um selo que deveria existir em cada cidade, vila ou julgado.

Os selos dos concelhos, como eram então chamados, deveriam conter, nas palavras régias, “os meus sinais e letras que contam o meu nome e o nome da cidade, ou da vila, ou do julgado”. O selo seria confiado a um homem-bom, de nomeação régia, jurado sobre os Santos Evangelhos e seria aposto em cera na escritura.

Rendemos homenagens às vetustas tradições que remontam à idade média. (Cfr. CAETANO, Marcello. História do Direito Português. 3a. ed. Lisboa : Verbo). 

CARTÓRIOS, CHARTÁRIOS, CARTULÁRIOS, CARTAYRO…

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“O sistema dos cartórios começou a operar a partir de 1917, quando entrou em vigor o Código Civil Brasileiro” (Urbano Ruiz, Folha de SPaulo, 14/02/97)

“…alias per series Testamenti, et alias per conligationes placitas, secundum in Cartarios , et in Inventarios nostros resonant” (Chatae de Santa Cruz de Coimbra.

Por este documento de 1058, aqui reproduzido em parte, Gumice Alba doou ao Mosteiro de Campanhãa, junto à cidade do Porto, certas herdades que possuía.

Cartayro. Arquivo, cartório. Segundo registra o Elucidário, (Fr. Viterbo, 2a. ed. Lisboa, 1865) esta expressão se encontrou em documentos de Pendorada, datados de 1320.

Segundo ainda Marcello Caetano (Op. cit., p. 242 e ss.) , no período em que se formou o Estado Português (1140-1248), os documentos régios e os particulares (chamados de cartas – chartae) eram lavrados por notários, em sua maioria, para atestar a prática de atos jurídicos, incluindo as simples notícias ou atas.

Nesse período, a prova testemunhal desempenhava importante papel, já que o analfabetismo era acentuado, mas, mesmo assim, inúmeros documentos particulares foram conservados do período, como testamentos, contratos, etc. chegando até nós coleções originais ou cópias que eram deles trasladadas.

Segundo Caetano, a razão para que se tenham conservado tantos documentos particulares deve-se ao fato de que alguns originais, outros apógrafos (traslados ou cópias reunidos em coleções chamadas “cartulários”), justificavam o domínio de alguns proprietários. Assim, essas coleções de documentos – cartários ou cartórios (de Charta) – pertenciam sobretudo às corporações monásticas ou às mitras, que possuíam grandes patrimônios constituídos de centenas de prédios, em plena propriedade ou foreiros.

É muito interessante verificar a necessidade que já então se sentia de reduzir a vontade das partes a escritos lavrados por notários, isso por um lado. Por outro, a necessidade de justificar o domínio – o que nos faz logo pensar na oponibilidade – que fez nascer fólios que eram os repositórios de títulos, cartas, depositados em lugares específicos, que vêm a ser exatamente o ancestral institucional dos nossos registros prediais.

Se o registro imobiliário pode ser remontado a partir de antiquíssimos exemplos hauridos do direito grego, egípcio e assírio, não deixa de ser importante a investigação do direito português.

* Os textos aqui reproduzidos foram originalmente publicados em 1996 como editorial no antigo site Registral (site do 2° Registro de Imóveis e Anexos de Franca – SP). Foram redigidos a partir da desconcertante declaração de Urbano Ruiz de que os “cartórios nasceram em 1916, com o Código Civil”. 

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