Cartórios e cartórios

“Há cartorios e ‘cartórios’ em quase todas as áreas – Federal, estadual, municipal,  órgãos públicos, associações, sindicatos, etc. Os que não têm rabo preso são contra a malandragem e há até os que assumem posições dignas publicamente. (…) Qualquer tributo, emolumento, preço público ou qualquer nome que se dê só tem legitimidade se puder ser, moral e juridicamente, em beneficio de todos e não de apenas alguns ou de algumas entidades ou corporações, verdadeiros ‘cartórios’ corporativos que envergonham a grande maioria e algumas instituições”. (Manuel Morales, SP., Jornal da Tarde de 6/1/99, p. 3A)

“Distribuição de renda/corporativismos. O Negócio daqui é fogo, vai da toga à tanga e dos cartórios aos cartéis” (Ronan Calheiros, após assumir o Ministério da Justiça em abril. JT 6/1/99, p. 2A)

Cartórios, Chartários, Cartulários, Cartayro…

O nome não é a coisa. E no entanto o nome “cartório” pesa sobre toda uma comunidade de profissionais e estudiosos como um verdadeiro estigma, como se vê dos exemplos acima, pinçados dos jornais de hoje. Uma aproximação com o estigma da lepra não seria ociosa: em ambos os casos, o uso preconceituoso e discriminatório de grupos sociais e profissionais. Mas não é só a utilização pejorativa do belo nome cartório que incomoda a nós todos, profissionais do direito encarregados de tão importante atividade. Até mesmo autoridades públicas usam e abusam de expressões equivocadas e, não raro, o fazem de má-fé. Bastam os exemplos recentes dando conta de irreais aumentos abusivos de emolumentos. Quando, aliada à má-fé se unem a ignorância e o preconceito, não resta muita razão, perde o sentido o debate sério.

Recentemente, o presidente da Associação dos Juízes para a Democracia afirmou, surpreendentemente, que “o sistema dos cartórios começou a operar a partir de 1917, quando entrou em vigor o Código Civil Brasileiro” (Urbano Ruiz, FSP 14/2/97) Parece ao ilustrado magistrado, que os cartórios começaram a atuar com o advento do código civil. Mas os cartórios são muito mais antigos do que pode imaginar o presidente da combativa entidade. Sem falar nos notários, cuja história multissecular é um exemplo da permanente necessidade social de suas atividades.

Mas você sabe a origem da palavra cartório?

Cartayro. Arquivo, cartório. Segundo registra o Elucidário, (Fr. Viterbo, 2a. ed. Lisboa, 1865) esta expressão se encontrou em documentos de Pendorada, datados de 1320. Mas, muito antes, já em 1058, encontramos a carta de Santa Cruz de Coimbra, pela qual Gumice Alba doou ao Mosteiro de Campanhãa, junto à cidade do Porto, certas herdades que possuia:

“…alias per series Testamenti, et alias per conligationes placitas, secundum in Cartarios, et in Inventários nostros resonant”.

Segundo Marcello Caetano, no período em que se formou o Estado Português (1140-1248), os documentos régios e os particulares (chamados de cartas – chartae. em latim) eram lavrados por notários, em sua maioria, para atestar a prática de atos jurídicos, incluindo as simples notícias ou atas. Nesse período, a prova testemunhal desempenhava importante papel, já que o analfabetismo era acentuado, mas, mesmo assim, inúmeros documentos particulares foram conservados do período, como testamentos, contratos etc. chegando até nós coleções originais ou cópias que eram deles trasladadas. Segundo Caetano, a razão para que se tenham conservado tantos documentos particulares deve-se ao fato de que alguns originais, outros apógrafos (traslados ou cópias reunidos em coleções chamadas “cartulários”), justificavam o domínio de alguns proprietários. Assim, essas coleções de documentos – cartários ou cartórios (de Chartae) – pertenciam sobretudo às corporações monásticas ou às mitras, que possuíam! grandes patrimônios constituídos de centenas de prédios, em plena propriedade ou foreiros.

E muito interessante verificar a necessidade que já então se sentia de reduzir a vontade das partes a escritos lavrados por notários, isso por um lado. Por outro, a necessidade de justificar o domínio, o que fez nascer os repositórios de títulos, cartas, depositados em lugares específicos, que vêm a ser exatamente o ancestral dos nossos registros prediais. Se o registro imobiliário pode ser remontado a partir de antiquíssimos exemplos hauridos do direito grego, egípcio e assírio, não deixa de ser importante a investigação do direito português.

É preciso resgatar a dignidade e o respeito pelas atividades tão nobres e necessárias como o são as do notário e do registrador. Isto é, dos cartorários.

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