Dos livros do Registro ao Fólio Real Eletrônico

O extrato abaixo é parte da exposição intitulada Dos Livros do Registro ao Fólio Real Eletrônico apresentada no XXIV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, realizado entre os dias 15 e 19 de setembro de 1997 na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais.

O trabalho foi realizado em conjunto por Kioitsi Chicuta, hoje desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Ary José de Lima, registrador em Santos (SP) e por mim.

Destaco a transcrição da minha exposição pela importância dos temas lançados a debate na edição do evento anterior promovido pelo IRIB, em encontro realizado na cidade de Fortaleza, Ceará, no ano de 1996.

Chegamos a afirmar, há mais de 20 anos, que a digitalização da matrícula, se pensada como um verdadeiro sistema de Registro Eletrônico, seria um retrocesso:

“Do ponto de vista do tratamento da informação registral, é um retrocesso, é uma tecnologia muito sofisticada, mas que não representa de fato um aperfeiçoamento para o registro”.

Até hoje palmilhamos um caminho acidentado de incompreensão e de equívocos. Muitos de nós não chegou a compreender, ainda, que andejamos nestes vinte anos sem rumo definido.

À parte o grande trabalho realizado na ARISP, sob a coordenação do incansável Flauzilino Araújo dos Santos, nada se fez de verdadeiramente significativo ao longo desses anos todos.

Ainda é tempo!

Palestra proferida em 1997 em Belo Horizonte:

Digitalização da matrícula X fólio real eletrônico

O objetivo da exposição é trazer elementos para um debate que possa ser instaurado depois.

Temos que pensar no desenvolvimento do sistema de registro imobiliário no país para que realmente haja vantagens no aperfeiçoamento da informação. Por essa razão, ao invés de pensar em termos de digitalização de matrícula, nós estamos propondo uma etapa posterior, um aperfeiçoamento técnico, com a concepção de um folio real inteiramente eletrônico. Isto vai demandar a uma discussão sobre o novo conceito na organização da informação registrária, apurando o que seja relevante para o Registro Imobiliário.

Temos com o folio real eletrônico uma virtualização de dados, quer dizer, já avançaríamos na discussão sobre o documento público eletrônico, que cada vez mais está sendo utilizado no mundo todo, para transações em escala global. Aqui mesmo, no contexto da América do Sul, existe uma discussão muito importante sobre integração dos Registros e das Notarias, justamente na transmissão e recepção do documentos eletrônicos. Nós precisamos estar preparados para isso.

A digitalização da matrícula e a hiper-saturação textual

Com o folio real eletrônico nós teríamos condições de enfrentar o problema da hiper-saturação textual, que ocorre com a digitalização de títulos e matrículas.

O que quer dizer com hiper-saturação da matrícula?

A digitalização da matrícula só aparentemente é uma solução. Não significa uma verdadeira e válida alternativa para o desenvolvimento do sistema registral. Porquê?

Porque a digitalização da matrícula não discrimina os dados relevantes na massa de informação que compõe a imagem. De outra parte, com o folio real eletrônico aproveitaremos os dados que são essenciais para fornecimento de uma informação precisa, desprezando todo tipo de dado irrelevante.

Com a hiper-saturação textual, vamos enfrentar a questão da indexação anômala, que o Dr. Chicuta referiu. Seria muito importante que nós pudéssemos dar a seguinte informação: “Quero saber se Fulano de Tal é credor hipotecário desde 1990”. Com a matrícula digital a resposta que obteríamos seria difusa. Portanto é muito importante que nós enfrentemos, de maneira eficaz, a necessidade de indexar as informações que informam o Registro Imobiliário.

Digitalização da matrícula é mero efeito especular

A digitalização da Matrícula é uma cópia, mero efeito especular da matrícula, através de um dispositivo eletrônico. Sei que a discussão pode parecer complexa para as pessoas que não estão ainda se utilizando do sistema, mas a cada dia que passa torna-se muito comum a utilização desses recursos para a realização dos registros.

A digitalização da matrícula consiste em fazer uma cópia, através de um dispositivo chamado scanner, que permite o armazenamento da “imagem” desta matrícula em outros dispositivos de gravação do computador – como o disco rígido do sistema. E o que acontece com a imagem armazenada no computador por esse meio?

Esta imagem passa a servir de base para pesquisa. Contudo,  quando nós fazemos uma cópia da matrícula e a armazenamos no computador, na verdade estamos repetindo um processo que já foi feito com a própria matrícula, sem qualquer tipo de vantagem, exceto aquela de ter esses dados disponíveis no computador, como um sistema de segurança adicional.

Esta questão da digitalização da matrícula foi objeto de discussão no Congresso de Fortaleza, onde explicamos de maneira pormenorizada todas as etapas por que passa a digitalização da matrícula, e o objetivo de mostrar através de um audio-visual, é reforçar a idéia que já havíamos desenvolvido, de que a digitalização da matrícula não representa de fato uma evolução para o sistema registral brasileiro. Muito pelo contrário. Embora, como mecanismo alternativo e suplementar de segurança, ela possa ser perfeitamente utilizada.

A digitalização da matrícula pode ser verificada nos vários programas que são oferecidos comercialmente. São excelentes programas, propiciam um tratamento da informação muito importante, mas o mais grave da digitalização da matrícula é que a digitalização, se não seguida de outros processos de tratamento da informação, não representa o aperfeiçoamento do sistema. Este é o ponto essencial da nossa explanação. Se nós tivermos uma cópia especular da matrícula no computador, que vantagem teremos, a não ser, eventualmente, a possibilidade de não manusearmos as matrículas?

Enfim, seria um mecanismo de segurança, não seria um mecanismo de aperfeiçoamento da informação. Aqui tentamos mostrar que, na verdade, quando se faz uma pesquisa através da matrícula digitalizada, a resposta é muito difusa, muitas informações acedem, e os “ruídos” que acompanham a resposta não são úteis para a informação que precisamos. Pelo contrário. Na verdade, eu chego a afirmar que a digitalização da matrícula, do ponto de vista do tratamento da informação registral, é um retrocesso, é uma tecnologia muito sofisticada, mas que não representa de fato um aperfeiçoamento para o registro.

Se verificarmos a matrícula como foi plasmada, ela foi concebida dessa forma porque, na época da lei 6.015, entendeu-se que essa forma mecanográfica era a resposta mais eficiente para o registro imobiliário de então.

Agora, reproduzir a matrícula num novo meio é um erro conceitual, que deve ser atacado. Nós precisamos discutir isso, porque senão, todos nós estaremos reproduzindo um processo que pode levar a uma saturação do sistema. É importante essa discussão técnica, inclusive, procuramos uma universidade, como a Universidade de São Paulo, a escola Politécnica da USP, para poder elaborar documentos técnicos que pudessem servir de base para as empresas que operam no mercado e oferecem seus serviços aos Registros Imobiliários.

Mas em suma, a digitalização da matrícula é isto: temos a matrícula, passamos numa “maquininha” que é parecida com uma máquina de xerox, só que o resultado dela não é uma cópia em papel,  o resultado dessa máquina é uma imagem que passa a ser observada no próprio computador . Esta imagem no computador não teria muita utilidade se não pudesse ser de alguma forma indexada, ou seja, se não pudesse ser feita desta imagem uma “fichinha”, que nos permitisse chegar imediatamente à informação necessária – a matrícula que eu procuro.

É por isso que aparece aqui o OCR. O que é o OCR?

OCR quer significar “Reconhecimento Óptico de Caracter”. Significa o seguinte: que o computador vai fazer uma varredura de cada “palavrinha”, que se acha na matrícula, e vai indexar de maneira tal, que se aqui apareceu a palavrinha, por exemplo, “Antonio”, o computador imediatamente vai levar a essa matrícula determinada. Quando for feita uma pesquisa: quero saber então quantas vezes aparece a palavra Antonio. O computador vai dizer: na matrícula x, y, z, etc.

A digitalização da matrícula é esse processo  que envolve uma cópia do original que é armazenada eletronicamente. O resultado já não está na cartolina, já não está no papel, ela está gravada eletronicamente.

A digitalização da matrícula não é solução para o RI

A nossa crítica, basicamente, centra-se no fato de que este mecanismo complexo não é a solução para o Registro Imobiliário. E ainda que pudéssemos discutir a sua utilidade em outro contexto, concedendo que é de fato muito útil, a digitalização e o reconhecimento óptico seria mum elemento auxiliar importante na registração, mas jamais poderia substituir os meios que suportam a informação. Não podemos confundir o “dedo com a lua”, isto é, um mecanismo auxiliar importante, mas não a solução para o Registro Imobiliário.

A partir desta tipologia procuramos desenvolver uma outra alternativa: como é que esta informação, que hoje está neste meio, pode vir a ser processada de maneira mais racional, de maneira tal que a informação seja mais precisa, e mais eficaz, rápida e segura a recuperação da informação que o Registro Imobiliário presta?

Nós temos com a digitalização quase que um microfilme, na verdade até o microfilme é superior em termos de segurança, segundo testemunham os técnicos e especialistas.

Verificamos também, que os cartórios hoje estão prestando serviços até pela Internet, e é necessário que se enfrente o problema do tratamento dos dados. Com a digitalização da matrícula, realmente não é possível.

O Fólio Real Eletrônico

É interessante refletirmos sobre a redação do Decreto [Decreto 1.799, de 30.1.1996] recentemente editado, que dispõe sobre a microfilmagem no país. Esse diploma legal já prevê a gravação em microfilmes de dados gerados eletronicamente. Já está havendo uma aproximação desta tecnologia, o microfilme com a digitalização de dados.

Temos graficamente  o que poderia ser a evolução do sistema  dos livros, dos pesados livros, que o Lamana hoje se referiu, até a matrícula, a digitalização da matrícula. Só que hoje  estamos propondo um novo modelo, um banco de dados especialista, onde as informações poderiam ser melhor organizadas.

Na verdade nós estamos propondo um folio real eletrônico, e neste passo, vamos fazer referência aos dois trabalhos publicados anteriormente, pois ali existem todas as indicações técnicas e um sumário das experiências que estão sendo levadas no mundo a respeito desse assunto. Não é um tema pacífico na doutrina estrangeira, todos nós estamos preocupados com o futuro do Registro Imobiliário, mas com certeza passará pelo folio real eletrônico, isto é, pela organização dos dados em meios eletrônicos.

Aqui reside precisamente a importância deste debate.

Basicamente, o que queremos dizer, é que, com um banco de dados especialista, nós teríamos não só o indicador pessoal, que é indispensável, absolutamente necessário, como o indicador real, perfeitamente integrado, também o indicador de título no sentido material, também o indicador de título no sentido formal, além do protocolo, além de coordenadas geodésicas, e projeções eletrônicas de polígonos – essa experiência inclusive está sendo feita em Franca – enfim, a integração do cadastro com o registro, porque muitos cadastros já estão se utilizando de projeções como esta para informação dos seus arquivos.

Para que haja a introdução do folio eletrônico no país, é preciso estar atento para um fenômeno muito importante, muito interessante, é necessário que haja padronização.

Quando os cartórios estão se informatizando, estão se esquecendo que, na verdade, precisam de normas técnicas que os compatibilizem com todos os demais sistemas, porque o Registro Imobiliário no Brasil é um. Não pode o oficial do cartório X, por sua própria conta, estabelecer regras, e , vamos dizer assim, decretar a substituição da matrícula pela digitalização e virtualização de dados.

É necessário que haja uma padronização, é necessário que haja uma tecnologia aberta. O que significa tecnologia aberta? Significa que os oficiais de cartório tem que ter absoluto controle do que está sendo colocado no seu serviço. Porquê? Porque as empresas que comercializam software  têm segredos  industriais e o processo de digitalização de matrícula e tratamento de informações, muitas vezes, não são de domínio público. Portanto, o oficial do cartório corre o risco de ficar refém de uma tecnologia que ele não domina.

Além da tecnologia aberta é necessário normatização. O que se procura com o convênio com a USP é justamente o estabelecimento de critérios e normas técnicas que servirão de paradigma para a informatização dos cartórios.

Precisamos ter um documento, de preferência um documento oficial, de uma universidade, de um instituto, que possa dar referências precisas para as empresas que exploram este mercado, para que possam usar como paradigmas. É necessário que haja uma segurança de dados porque, não se esqueçam, os dados que estão no computador ostentam caráter de documentos públicos. Esses dados que estão digitalizados, ou que se encontram em banco de dados, ou que se encontram nos índices que são normalmente utilizados pelo cartório, na verdade são livros públicos. Portanto, é necessário que esta segurança seja alcançada através de procedimentos muito claros de tratamento da informação. E muito importante, que haja portabilidade, para que os cartórios possam, no futuro, trocar dados. Porque, não duvidamos que, em pouco tempo, vai haver uma perfeita integração dos cartórios das grandes metrópoles.

É necessário que os cartórios pensem desde já na portabilidade dos seus dados, para que haja uma maior segurança, e perfectibilidade no trânsito da informação.

Por fim, o que queremos dizer, é que o limite disso tudo é uma integração global. Já se discute o caráter internacional do Registro Imobiliário, já se alcançou um nível de aperfeiçoamento, que se permite até falar na dicionalização de termos técnicos registrais (o que será objeto de discussões nos Congressos e Fóruns internacionais). Para que haja esta ampliação dos limites, nós precisamos pensar largo, nós precisamos pensar adiante, nós precisamos, além de tudo, estar muito preparados para enfrentar o desafio da globalização, que também vai acontecer nos nossos domínios.

Já acontece com a contratação eletrônica, já acontece com os documentos notariais eletrônicos, com o reconhecimento da firma digital (os notários italianos por exemplo estão muito preocupados com isso), já ocorre no âmbito do Mercosul (já existem fóruns de debates sobre este tema), e nós não podemos pensar tudo isto, sem pensar na necessidade de uma utilização racional e adequada dos nossos sistemas.

Portanto, o que gostaríamos de deixar à reflexão dos colegas aqui, é que o tema da informatização dos registros prediais brasileiros, é um tema muito importante, e não pode ser deixado na mão exclusivamente de técnicos.

Lembro-me, novamente, para encerrar, da expressão bastante humorada de Georges Clémenceau que diz: “a guerra é coisa grave demais para ser confiada a militares”, eu diria que a informática é um assunto sério demais para ser deixada nas mãos de técnicos.

3 comentários sobre “Dos livros do Registro ao Fólio Real Eletrônico

  1. Grande SJ,

    Como sempre a frente de seu tempo. Essa discussão travada há 20 anos continua não solucionada, ainda que já exista o documento técnico produzido pelo LSI-Tec.

    Ansiamos que nossas entidades de classe de âmbito nacional possam ser protagonistas no desenvolvimento de um software institucional que já contemple uma adequada estruturação dos dados.

    Abs.

    Vinicius
    Assis/SP

  2. […]  – Dos livros do Registro ao Fólio Real Eletrônico. Sérgio Jacomino. Extrato do trabalho (texto e vídeo) apresentado no transcurso do XXIV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, realizado entre os dias 15 e 19 de setembro de 1997 na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais. Neste texto, o estabelecimento de diretrizes para a informatização do sistema registral. […]

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