“Concentração na matrícula” e o entulho informativo

“Concentração na matrícula” e o entulho informativo
Uma boa ideia fora do tempo e do lugar.

Crítico da Lei 13.097/2015, que alguns pensam ter criado entre nós a chamada “concentração na matrícula”, o Dr. Ermitânio Prado, conhecido advogado do foro paulistano, nos revela as razões pelas quais considera o advento desta lei expressão de um “sarampão serôdio” de velhas regras já consagradas na lei.

Dístico da página na internet do Dr. Ermitânio Prado
Dístico da página na internet do Dr. Ermitânio Prado

Com sua verve crítica, revela e denuncia o longo sono da doutrina registralista e aponta para o fato de que carecemos de um bom canal de diálogo com o governo, com a sociedade e com a comunidade de juristas.

Vamos dar voz ao velho “Leão do Jockey”, agora que já não pode frequentar os bancos do hipódromo da Cidade Jardim. (SJ).

Sérgio Jacomino – Comente a Lei 13.097, publicada no dia 20 de janeiro de 2015 no Diário Oficial da União.

Ermitânio Prado – A lei é uma iniciativa timbrada pelo signo da ignorância jurídica. Trata-se de valente tentativa de fazer vibrar o que já existia na própria lei. Vamos por partes, como terá dito alguém em Londres. O que esta norma, essencialmente, quis significar? Por debaixo de um rótulo de marketing – “concentração na matrícula” – pretendeu-se como que repristinar uma regra que já se achava expressa há muito na própria lei: a inoponibilidade de fatos não inscritos. Trocando em miúdos, isto quer dizer, simplesmente, o seguinte: o que não se acha inscrito no Registro Público não pode prejudicar nem ser oposto em face de quem anteriormente inscreveu. Demos um exemplo: um determinado sujeito (exequente) obtém a penhora de um imóvel matriculado para garantia da execução. Ato contínuo, como seria esperável, não promove a sua inscrição (art. 169 c.c. art. 240 da Lei 6.015/1973 c.c. § 4º do art. 659 do CPC). O executado vem a alienar o bem. O eventual adquirente (ou um sub-adquirente) em tese não poderia ser atingido e prejudicado pelo desenlace daquele processo executivo, salvo se provado que ele tinha (ou poderia ter) conhecimento da ação que poderia reduzir o devedor e alienante à insolvência. Voltamos ao estado em que nos achávamos, antes do advento da lei. Uma simples diligência aos distribuidores teria o condão de afastar a presunção de conhecimento de ações que poderiam, de fato, reduzir o devedor à insolvência.

O sr. considera, então, que nada mudou?

Francamente? Mudamos para nada mudar! As velhas questões serão repisadas, já que não houve uma significativa transformação no sistema registral pátrio. O princípio de inoponibilidade decorre da legitimação registral, princípio assente no ordenamento (art. 1.245 do CC e art. 169 da LRP, dentre outros). Não chegamos, ainda, ao grau de desenvolvimento institucional de se consagrar uma eficácia absoluta (ou saneadora) dos fatos inscritos no Registro, como ocorre em outros países que adotaram a chamada fé pública registral. Aqueles que defendem que os distribuidores podem ser considerados “registros públicos”, lato senso, manter-se-ão firmes na trincheira, guerreando o bom combate, pois, argumentam: o adquirente poderia ter conhecimento das demandas (art. 593, II, do CPC) e precaver-se com uma singela consulta aos distribuidores – acesso favorecido, hoje, pelos meios eletrônicos. Enfim, o modelo, incensado como uma espécie de “concentração” redentora na matrícula, achava-se perfeitamente delineado no sistema registral brasileiro há quase um século. Basta ler atentamente a redação do art. 266 do Decreto 18.542, de 24 de dezembro de 1928

Mas, o que se buscou com a lei foi, justamente, evitar custosas diligências extrarregistrais que encarecem os intercâmbios econômicos relativos a negócios imobiliários…

A própria lei excepciona um número importante de hipóteses em que a regra da inoponibilidade é singelamente quebrada. Veja, por exemplo, o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência (Lei 11.101, de 2005). Ou a regra que se acha inserta no art. 185 do CTN – que faz presumir “fraudulenta a alienação ou oneração de bens (…) por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa”. Note que a simples inscrição na dívida ativa gera uma presunção que não pode ser elidida pela regra da chamada “concentração”. Isto sem falar nas hipóteses exceptivas de “aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel” (art. 54, § único da lei sob comento), sabendo-se que as citações em ações reais – e a usucapião é uma típica ação real – devem ser objeto de registro (art. 167, I, 21 da LRP). Enfim, pergunto-me: quem, em sã consciência, realizaria um negócio jurídico sem consultar previamente os distribuidores?  Qual notário dispensaria, na prática, as diligências ordinárias de pesquisa nos distribuidores forenses antes de formalizar um negócio imobiliário? Os agentes do sistema de crédito imobiliário consultam rotineiramente outros sistemas de informação (como o SERASA, p. ex.), que podem ser mais eficientes do que as certidões dos distribuidores…

Mas o Sr. não enxerga virtudes nesta lei?

Devo concordar que há um certo encanto em tentar fazer “pegar no tranco” uma regra antiga que remanesceu no olvido jurídico, numa espécie de limbo iniciático em que só os registradores (e alguns notários) pareciam versados. É incrível que precisemos repetir conceitos com outras palavras para facilitar a assimilação de antigas regras legais pela comunidade jurídica. Quando não, repetimos, ipsis litteris, os mesmos termos (compare o art. 167, I, 21 com o art. 54, I da Lei). Devo conceder, que, de fato, há novidades no front: por exemplo, modificou-se, aparentemente, a regra da evicção. Como sabemos, a evicção é a perda, que pode ser total ou parcial, de um bem por sentença judicial decorrente de causa preexistente ao contrato (art. 447 do CC). Se afastamos a evicção, nos casos de boa-fé presumida do adquirente ou do credor, com título inscrito, temos que o registro somente poderá ser cancelado em virtude de ação própria, provados os vícios que podem inquinar o negócio jurídico. Esta é a regra estampada no parágrafo único do art. 54 da lei aqui comentada. Vejamos como o Judiciário vai reagir a esta regra. Sempre suspeito de lances em que falta combinar a finta com os russos. Há, também, as interessantes disposições do art. 55 que preveem que “a alienação ou oneração de unidades autônomas integrantes de incorporação imobiliária, parcelamento do solo ou condomínio edilício, devidamente registrada, não poderá ser objeto de evicção ou de decretação de ineficácia”. É boa a regra, mas, convenhamos, não deixa de ser um repeteco – se considerarmos que o processo que antecede o registro do parcelamento ou da incorporação é uma custosa diligência que busca, justamente, atestar a solvência do parcelador ou do incorporador. Trata-se de proteção avant la lettre do consumidor de lotes ou de unidades autônomas. Antes que as alienações, decorrentes desses empreendimentos, pudessem ser declaradas ineficazes, havia que se superar o fato de que as pesquisas vestibulares já haviam sido cumpridas pelo empreendedor, com obtenção das certidões dos distribuidores (art. 18 da Lei 6.766/1979 e art. 32 da Lei 4.591/1964).

Afinal, qual o sentido e importância da expressão que vem sendo bastante utilizada – “concentração na matrícula”? E para o crédito imobiliário – haverá algum benefício?

Implico com a expressão “concentração na matrícula”. Critiquei, desde a primeira hora, outra expressão que se insinuou no ordenamento jurídico – “portabilidade” -, que nada mais era do que a velha e bem-conhecida sub-rogação de crédito. Ambas expressões são atécnicas mas empolgaram parte da doutrina registralista. Slogans são excelentes técnicas para se vender um produto – ou para a mistificação política – não para nominar institutos jurídicos. Neste caso, a “concentração”, além de representar uma expressão profana, por sorte não consagrada na lei, pode levar a um enorme equívoco e a um desvio sistemático no modelo institucional. Convenhamos: não é toda e qualquer vicissitude relativa aos bens e direitos imobiliários que deva desaguar na matrícula. Não por acaso, a taxatividade dos direitos reais acarreta, numa espécie de efeito especular, uma enumeração dos fatos inscritíveis (art. 167 da LRP). Embora não taxativo, esse rol da LRP tende, naturalmente, a uma limitação que decorre da própria natureza dos direitos reais e de algumas circunstâncias que os possam limitar ou restringir. A abertura das portas do registro para qualquer situação judicial que se relacione com o imóvel matriculado pode representar o colapso informativo que, no limite, milita contra a clareza, transparência e celeridade do tráfico jurídico imobiliário. Inflação informativa leva à desinformação. Depois, não se pensou no entulho em que pode se converter a sucessão de averbações concentradas nas matrículas. Basta pensar num só exemplo: ações trabalhistas. Ao deixar ao exequente-reclamante a liberdade de promover tal averbação, especialmente nas hipóteses em que o interessado se declare hipossuficiente econômico (art. 56, § 2º, da Lei), teremos uma profusão de atos quando dirigidas a imóveis de propriedade de grandes incorporadoras ou de empresas que atuam fortemente no mercado consumidor. Contra essas pessoas jurídicas avultam ações judiciais. Depois de encerradas essas ações, quem vai “sanear” a matrícula? Quem vai arcar com os custos do cancelamento das ditas averbações? No caso de alienação, quem vai adquirir tais imóveis gravados? Ainda que se adquira o bem, o comprador estará disposto a fazer uma peregrinação no foro, agora muito estendido, por sistemas de informação integrados, como o Sistema Ofício Eletrônico, que apontam para todos cartórios do Estado de São Paulo e de outros estados associados?

Mas tudo isso não se previu?

Admiravelmente, temos várias entidades de classe que deveriam zelar pela boa orientação doutrinária, conduzindo as discussões, quando possível, e iluminando os debates legislativos, quando necessário. Mas nenhuma delas estendeu um debate sério sobre a tramitação da MP 656 (que redundou na Lei 13.097/2015). Não se buscou envolver os maiores interessados –notários e registradores. Eu mesmo, na condição de jubilado, propus uma emenda de criação de um registro provisório – a exemplo do que ocorre em outras partes do mundo com a anotação preventiva, por natureza provisória. Poder-se-ia fazer o registro de tais constrições judiciais no Livro 3 – Auxiliar, com a fixação de prazo pré-determinado de eficácia, findo o qual o registro preventivo seria automaticamente cancelado por caducidade. Faltou discussão; faltou debate. Tudo se perde nesta selva de papagaios. Faltou, sobretudo, articulação política para esclarecer os redatores da medida provisória acerca dos caminhos, já tradicionais no direito alienígena, para tornar efetiva a “publicidade notícia”. Esta modalidade de publicidade registral é mal estudada entre nós, embora corrente na Europa, ao menos desde os primórdios do século XX. Enfim, a lei é defectiva. Incorre em erros crassos, repetições, redundâncias rebarbativas. Perdemos a chance de aperfeiçoar o sistema registral brasileiro.

O Sr. diz que a lei é defectiva. Além de reprisar, como diz, o princípio de legitimação, que defeitos percebe na sua redação?

Veja, por exemplo, o art. 54 da Lei que se refere a “negócios jurídicos eficazes”. Como sabemos, o sistema registral brasileiro é causal e constitutivo. Diz-se que a eficácia plena dos negócios e atos jurídico-reais somente se alcança com o registro. Não serão, portanto, os negócios jurídicos que visam constituir, transferir ou modificar direitos que hão de prevalecer na colisão antevista. Considerando-se a redação, que não alude expressamente ao fato inscrição, e que parece mesmo apontar para negócios jurídicos formalizados mas ainda não registrados (“que tenham por fim”), tem-se a impressão de que tais negócios jurídicos, aos quais se reconhece uma eficácia contida e limitada, seriam eficazes em relação aos atos e fatos jurídicos não inscritos. No limite, a construção se acha em contradição com a teoria geral da oponibilidade de fatos inscritos, em choque com o princípio de legitimação registral. Para sermos exatos, que diacho de eficácia é esta do art. 54? Eficácia condicional? Quer dizer, então, que os negócios jurídicos serão eficazes somente “nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel” as informações indicadas? De outro modo, não? A ideia subjacente é evidente: os fatos não inscritos é que não poderão ser opostos aos devidamente registrados…

O Sr. não crê que esta crítica seja excessiva, quando se pode apanhar perfeitamente o sentido geral da lei? Não estará apostando no seu fracasso?

Para que servirá a crítica, então? Para que doutrina? A redação do art. 54 é simplesmente irritante! “Atos jurídicos precedentes” … Vamos à radical literalidade: os “negócios jurídicos” somente serão eficazes em relação aos atos jurídicos precedentes não inscritos? É isto? Não serão eficazes em relação aos atos jurídicos posteriores? Somente serão eficazes se os ônus e constrições não forem registrados? Aos diabos com essa redação confusa e tortuosa!

Uma última palavra…

Quero lhe dizer, caro registrador, que, paradoxalmente, se algum proveito advier desta malsinada lei, este será fruto da ignorância sistemática, que vê a tradição como pura invenção moderna, ou da boa sorte de a lei “pegar no tranco”, uma vez criado o ambiente econômico propício. Mas nunca passará de um sarampão serôdio!

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