LGPD. Centrais Estaduais de Serviços Eletrônicos Compartilhados

LGPD. Centrais Estaduais de Serviços Eletrônicos Compartilhados. adequação das Centrais à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais[1].

Senhor Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo.
Desembargador RICARDO MAIR ANAFE.

Honrados com a vista dos autos para oitiva do IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, entidade que congrega todos os registradores imobiliários do Brasil, prestamos respeitosamente as seguintes informações.

Em síntese, o objetivo do requerente é a proibição de centralização de dados na ARISP, segundo ele, em virtude de potencial risco à privacidade de dados. Roga-se que os serviços prestados pela Central Estadual “sejam acessíveis apenas de maneira descentralizada”. Requer-se, ainda, seja concedido prazo “para que todas as associações privadas que controlam as Centrais venham a publicar padrões de comunicação para todos os serviços disponíveis em suas plataformas” e que se fixe um prazo para a “destruição das bases de dados pessoais externas aos cartórios, eliminando-se o modelo de bases de dados pessoais sob controle das associações de classe”, adequando-se as Normas de Serviço no que couber.

Passamos a expor nosso entendimento, articuladamente.

Custódia de dados pessoais pela Central ARISP

A questão colocada em debate neste processo é justamente essa: centralização de dados relativos a pessoas em suas relações com atos, fatos, títulos inscritos ou recebidos pelos Registros de Imóveis por intermédio da Central Estadual a cargo da ARISP.

Os dados são recebidos, tratados, manipulados e distribuídos pela central – títulos (em PDF ou em formato XML), notificações, pedidos de certidões, bases de matrículas digitalizadas, DOI´s e demais informações que se interrelacionam e que, combinados, podem gerar produtos que se afastam das finalidades que, por design, constituem as dos próprios registros públicos tal e como previsto na legislação. Os dados compartilhados sempre se referem a “pessoas registrais” e seus direitos. Os dados recebidos pela central em código de máquina (XML) ou PDF são convertidos in itinere em títulos inscritíveis, impulsos se consubstanciam em notificações, dados se convertem em estatísticas etc. O que é feito de toda essa coleção de dados e informações?

Admitido que fosse esse trânsito de informações e dados (o que não nos parece recomendado), o resultado de todas essas operações, realizadas na própria central, não só transmigra pelo pivô registral (hub), como é transformado no percurso do itinerário sem qualquer auditoria calcada em políticas previamente conhecidas e publicadas e que poderiam assegurar o cumprimento, de forma abrangente, de normas de governança e de boas práticas relativas à proteção de dados pessoais (art. 50 da LGPD).

Os registradores imobiliários deverão ter o mesmo tratamento dispensado às pessoas jurídicas referidas tanto no art. 23 da LGPD quanto no art. 1º da Lei 12.527/2011. Note-se: são os próprios registradores, não entidades privadas de classe, que deverão tratar os dados pessoais nos limites e atribuições de sua finalidade precípua, que é a publicidade jurídico-registral, cumprindo, assim, os fins e objetivos do serviço público tal como previsto em lei. São os registradores – não centrais, nem órgãos exógenos, administração ou mercado – que foram incumbidos pela lei para a instituição do Registro de Imóveis eletrônico (art. 37 da Lei 11.977/2009), a eles atribuindo a responsabilidade de tratar os dados e mantê-los sob sua guarda.

O CNJ tem entendido que as centrais são extensões dos próprios cartórios e que devem atuar como ramais meramente administrativos e operacionais de serviços compartilhados, como previsto nas normas regulamentares[2]. As centrais são entes despersonalizados. Nada justifica possam manipular e manter em suas plataformas dados registrais, latamente considerados, e lhes dar quaisquer outros fins, ainda que justificáveis – como produção de dados estatísticos, por exemplo.

Retenha-se esta última afirmativa – finalidades lícitas e justificáveis – contrastando-as com as conclusões expendidas no julgamento pelo STF na ADI 6.389/DF[3]. Não basta que se atendam a demandas justificáveis do ponto de vista das necessidades do próprio estado; é preciso ir além e conciliar os interesses da sociedade e do estado sob um novo marco político-constitucional, ponderados os princípios de finalidade e proporcionalidade.

Por óbvio, não está em causa, nem é objeto de nossas considerações, formular qualquer juízo crítico baseado em impressões meramente subjetivas, nem tampouco inquinar tais atividades de qualquer modo. Discute-se, aqui, apenas e tão-somente, o acerto ou desacerto de políticas institucionais que se nos afiguram como desvios sistemáticos que deverão ser arbitrados e soberanamente dirimidos por Vossa Excelência.

Marco legal da custódia e preservação dos dados registrais

Não custa relembrar o marco legal definidor da custódia dos dados registrais. Dispõe o art. 24 da LRP que os Oficiais de Registro devem “manter em segurança, permanentemente, os livros e documentos e respondem pela sua ordem e conservação”. E mais: “os livros e papéis pertencentes ao arquivo do cartório ali permanecerão indefinidamente” (art. 26), inclusive os instrumentos particulares, dos quais se dará certidão (art. 194 da LRP).

Livros, papeis, documentos, títulos, dados… O art. 25 da LRP previu que todos esses elementos deverão ser “arquivados em cartório mediante a utilização de processos racionais que facilitem as buscas, facultada a utilização de microfilmagem e de outros meios de reprodução autorizados em lei”. A lei foi sábia ao abrir um amplo espaço para a adoção de novas tecnologias, desde que seu uso seja autorizado por lei. Nesse sentido, podemos afirmar seguramente: legem habemus! O art. 37 da Lei 11.977/2009 e art. 76 da Lei 13.465/2017 e o próprio regulamento, Provimento CN-CNJ 89/2019, trataram de modo adequado todo o processo registral eletrônico em todas as suas etapas.

A Lei 8.935/1994 igualmente confirma essa orientação no artigo 46 onde se diz que “os livros, fichas, documentos, papéis, microfilmes e sistemas de computação deverão permanecer sempre sob a guarda e responsabilidade do titular de serviço notarial ou de registro, que zelará por sua ordem, segurança e conservação”. Até mesmo quando a lei alude a “papeis” arquivados em cartório, como no seu artigo 42, compreende-se que no iter do processo registral são acolhidos, tratados, produzidos e disponibilizados documentos que podem ser classificados como de preservação permanente (§ 3º do art. 8º da Lei 8.159/1991), documentos correntes e intermediários[4], todos recebidos, tratados ou mesmo produzidos in loco, mas sempre mantidos sob a custódia do registrador, nos termos do art. 25 da LRP, em quaisquer meios – inclusive os eletrônicos.

Enfim, não é razoável, nem justificável, que esses documentos ou dados sejam compartilhados e custodiados pelas centrais estaduais, entes que não foram criados para acolher ou produzir resultados informacionais pela combinação de dados pessoais ou reais a permitir sua veiculação ou utilização para outros fins que não aqueles para os quais foram criados os sistemas registrais.

Com efeito, referidos dados estão alocados em sua base primária, sob guarda e responsabilidade do respectivo oficial de registro de imóveis, seu controlador (Prov. CGJSP 23/2020, que acrescentou ao Capítulo XIX o item 129, in fine, das NSCGJSP).

O Oficial Registrador responde pelos danos patrimoniais, morais, individuais ou coletivos, tais como violações à legislação com o consequente dever de reparação. Responde, ainda, solidariamente, pelos danos causados por operador. Em resumo, a responsabilidade, em caso de incidentes, é do controlador – i.e., do próprio registrador.

“Dados estatísticos” – um exemplo impressivo

Um exemplo bastante ilustrativo do fenômeno de centralização de dados poderá ser encontrado na determinação de envio de uma coleção de informações que serviriam para a formação de índices estatísticos – como transferências imobiliárias e alienações fiduciárias registradas, intimações de devedor fiduciante, consolidações da propriedade averbadas ao longo de vários anos.

As sucessivas alterações das NSCGJSP revelam o interesse que a produção de tais índices e estatísticas sempre representou. Quando se autorizou o envio de informações sobre operações imobiliárias, com base na alteração das NSCGJSP, promovida pelo advento doProvimento22/2019, de 26/4, pode ter havido uma confusão semântica que agravou o problema da concentração de dados da ARISP. É que a partir de então, a entidade de classe passou a requisitar o envio da DOI – Declaração de Operações Imobiliárias. Assim, a partir de maio de 2019, todos os registradores paulistas passaram a receber da ARISP requisições para o envio das próprias DOI´s da Receita Federal para o fim de “produção de dados estatísticos”[5].

Em boa hora, a regra se modificaria com o decidido por Vossa Excelência no Processo CG 53.702/2020[6]. Os cartórios agora deverão se adaptar ao novo modelo, mais restritivo e consentâneo com as novas orientações legais e regulamentares, o que representa um passo muito importante na senda de regulação, uniformização e governança judiciárias.

SINTER – DOI – proteção de dados – sigilo fiscal

Monitors display a video showing facial recognition software in use at the headquarters of the artificial intelligence company Megvii, in Beijing, May 10, 2018. Beijing is putting billions of dollars behind facial recognition and other technologies to track and control its citizens. (Gilles Sabrié/The New York Times)

Entretanto, malgrado o fato de que a nova orientação da Eg. Corregedoria-Geral indiretamente vedasse o envio de dados relativos a operações imobiliárias à ARISP, ainda é preciso avaliar, SMJ, o eventual convênio celebrado entre ela e a Receita Federal do Brasil que prevê o uso da central para encaminhamento das informações registrais ao SINTER.

Em primeiro lugar, a própria Corregedoria-Geral de Justiça viria a reiterar o entendimento de que os dados que consubstanciam a DOI da RFB acham-se protegidos sob o manto do sigilo fiscal, consoante o CTN (art. 198), Lei nº 10.426/2002 (art. 8°, caput) e Instrução Normativa RFB 1.112, de 28/12/2010 – a cujo rol pedimos vênia para acrescentar o § 2º do artigo 1º do Decreto Federal 10.046/2019, que excetua da regra de compartilhamento de dados os “protegidos por sigilo fiscal sob gestão da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia”.

Na mesma R. decisão se indicaria, de passagem, que “ainda não está esclarecido se a prestação de dados para fins de tratamento com vista à elaboração de índices e estatísticas esteja ou não inserida nesse mencionado ‘atendimento de sua finalidade pública, na persecução do interesse público, com o objetivo de executar as competências legais ou cumprir as atribuições legais do serviço público’” (LGPD, art. 23).

É certo que não há lei específica que cometa essa atribuição, de modo expresso e inequívoco, aos Cartórios de Registro de Imóveis – como bem indicado no R. parecer supra referido. Há, apenas e tão-somente, regulamentos – alguns já derrogados por legislação superveniente, outros de duvidosa constitucionalidade[7].

Muito bem. Especificamente com relação à parcial derrogação do Decreto 8.764/2016 por lei superveniente (Lei 13.465/2017, § 7º do art. 76), a Eg. Corregedoria-Nacional de Justiça chamou a si a regulamentação, justificando-a nos seguintes termos:

“Para dar concretude à inovação legal, há necessidade de estabelecer, por ato normativo regulamentar, as regras de funcionamento do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis – SREI (…) e a forma de acesso ao SREI pelo Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais – SINTER, cuja previsão também está contida na Lei n. 13.465/2017 em seu art. 76, § 7º”.

O Provimento CN-CNJ 89/2019 indicará, no parágrafo único do art. 28, que o “ONR deverá estruturar, através do SAEC, a interconexão do SREI com o Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais (SINTER)”.

Ficou consagrado, no dito regulamento, que compete ao SAEC (Sistema de Atendimento Eletrônico Compartilhado) do ONR “estruturar a interconexão do SREI com o SINTER” e com “outros sistemas públicos nacionais e estrangeiros” (inc. II do art. 17 do dito Provimento). A interconexão para cumprimento das regras estabelecidas por regulamento – inclusive para efeitos de produção de dados e de índices estatísticos – se dará por intermédio do SAEC do SREI:

Art. 16. O Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado – SAEC é destinado ao atendimento remoto dos usuários de todas as serventias de registro de imóveis do País por meio da internet, à consolidação de dados estatísticos sobre dados e operação das serventias de registro de imóveis, bem como ao desenvolvimento de sistemas de apoio e interoperabilidade com outros sistemas.

Fora do âmbito do SINTER, ainda em relação à produção de dados estatísticos, a mesma Eg. Corregedoria Nacional de Justiça já havia disposto sobre o tema ao acolher a documentação técnica produzida no bojo do Projeto SREI/CNJ/LSITEC[8]. Mais recentemente, o R. órgão voltaria ao tema e confirmaria o mesmo entendimento, qual seja: tal mister acessório deve ser desempenhado pelo SAEC, a quem cabe a “consolidação de dados estatísticos sobre dados e operação das serventias de registro de imóveis” (art. 16 do Provimento CN-CNJ 89/2019).

O SAEC é o ponto nuclear onde se consolidarão os dados estatísticos sobre o processo de registro e acerca de informações relativas às transações imobiliárias – sem que os dados originais migrem da própria serventia.

Cadastro e Registro: atribuições e funções distintas

Parece indiscutível que são os oficiais de registro que detêm a competência constitucional para o exercício de atividades próprias do mister registral. Poder-se-ia cogitar se a eles caberia também desempenhar uma outra atividade, absolutamente acessória, como seria a produção de índices e dados estatísticos.

Parece haver, no cerne desta questão, uma espécie de confusão entre as atividades que são próprias dos registros públicos de direitos e outras, afeitas à gestão e ordenamento territorial, como avaliação de preços, tributação, comportamento e tendências do mercado e informações correlatas, que são elementos próprios do cadastro territorial. A CF/1988 atribuiu diretamente aos municípios a missão de promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (inc. VIII do art. 30 da CF/1988). Registre-se, de passagem que, ao menos no que diz respeito à coleta de dados para criação e divulgação do “índice de preços de imóveis no Brasil”, tal mister está cometido ao IBGE – Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, nos termos do Decreto Federal 7.565, de 15/9/2011.

Ainda que se admitisse que esse subproduto, meramente acessório, decorrente da atividade própria dos registradores, não nos parece certo que tal atividade possa ser confiada a entes despersonalizados, como o são as Centrais Estaduais de Serviços Eletrônicos Compartilhados.

Ad argumentandum, admitido que fosse atribuir tal mister à ARISP Central de Serviços Compartilhados, ainda assim tal atividade deveria ser baseada em lei ou – dada a equiparação do serviço registral à administração pública[9] – que a transferência de dados fosse respaldada em contratos, convênios ou instrumentos congêneres (inc. IV, § 1º do art. 26 da LGPD). Como celebrar convênios com entes despersonalizados? Ainda assim, conclui-se, tais instrumentos deverão ser comunicados à ANPD (§ 2º do mesmo artigo).

A criação de dados estatísticos é atividade própria, a cargo de órgão de pesquisa, que tem por “missão institucional ou em seu objetivo social ou estatutário a pesquisa básica ou aplicada de caráter histórico, científico, tecnológico ou estatístico” (inc. XVIII do art. 5º da LGPD). O ONR – Operador Nacional do Registro Eletrônico de Imóveis conta com tal previsão em seu estatuto social (inc. IV do art. 5º do seu estatuto social).

Enfim, parece lógico que assim seja – é preciso “dar ao Cadastro o que é do Cadastro”. Não são as pessoas jurídicas de representação de classe (e muito menos os entes despersonalizados) dotados de atribuições legais para coleta de informações e produção de dados estatísticos concernentes aos atos do Registro de Imóveis – sejam dados operacionais (relativos ao processo de registro) ou relativos aos atos próprios (inscrições).

Deve ser enfatizado que o tema foi normatizado pela E. Corregedoria Nacional de Justiça, por meio do Provimento CN-CNJ 89/2019, ao indicar que o ONR deve manter “Base Estatística contendo dados estatísticos sobre a operação das serventias de registro de imóveis, objetivando a consolidação de dados de tais serventias” (inc. I do art. 20), que serão publicados para conhecimento geral no site do SAEC – Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado (art. 18).

Para não repisar tema já decidido no precedente já referido, que enfrentou muito bem a questão e estabeleceu regras mais claras e rigorosas no compartilhamento de dados, esclareço que o tema do envio das DOI´s ainda não foi perfeitamente esclarecido e apreciado pela Eg. Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo. Ainda há uma extravagância jurídica que consiste no envio dos dados ao SINTER pela via oblíqua de centrais estaduais.

Anonimização X pseudonimização

Permita-me Vossa Excelência abrir um pequeno parêntese para registrar que o IRIB vem se dedicando ao tema há muitos anos, tendo em vista sua estrita vinculação à Recomendação CN-CNJ 14, de 2/7/2014[10], que dispôs sobre a divulgação do resultado de estudos realizados para a especificação do modelo de sistema digital para implantação do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico – S-REI.

Neste contexto, nunca se cogitou enviar para o ONR-SAEC as DOI´s, por exemplo. O motivo é simples: sempre entendemos que os dados não podem ser anonimizados a posteriori, no destino,quando do envio de pacotes de dados integrais (a DOI, por exemplo). O risco é a possibilidade de desanonimização a qualquer tempo pela reconversão dos dados, data mining e técnicas de big data, vulnerando a privacidade e extrapolando os limites das atribuições cometidas pelo regulamento do CNJ às ditas centrais ou ONR.

A ARISP aparentemente usa uma técnica de pseudonimização que ocorre quando os dados são anonimizados para veiculação, mas o controlador mantém a possibilidade técnica de novamente associá-los recombinando-os “pelo uso de informação adicional mantida separadamente pelo controlador em ambiente controlado e seguro” (§ 4º do art. 13 da LGPD). A pseudonimização, contudo, não pode ser adotada pelas centrais, já que pressupõe a manutenção dos dados integrais sob seu controle – o que vimos não ser legal.

Portanto, entendemos que o controlador (inc. VI do art. 5º da LGPD c.c. item 129, Cap. XIII, das NSCGJSP) não pode ser a entidade de classe e nem a central estadual, remanescendo na esfera de atribuições legais do delegatário o plexo de deveres e obrigações a ele cometido pelo poder delegante.

Alega-se, em arrimo da tese liberal, que os dados são anonimizados na própria Central e somente apósencaminhados à entidade encarregada da produção de dados estatísticos (FIPE).

Na verdade, os dados devem ser anonimizados ab origine (item 140, Cap. XIII das NSCGJSP), antes de serem encaminhados às ditas centrais ou ONR. Fosse possível acolher os dados parcialmente anonimizados pela própria entidade privada, seria sempre possível, ao menos em tese, a recomposição integral ou a produção de outros produtos derivados, sem falar na possibilidade de associação com dados disponíveis na própria internet[11].

Como produzir índices e dados estatísticos sem vulnerar a privacidade?

O IRIB realizou um trabalho rigoroso de especificação de um modelo em que os dados que gerarão os índices e elementos estatísticos são tratados na própria serventia antes de serem encaminhados ao SAEC. Isto significa que, seja a partir da DOI ou mesmo do SC (Sistema do Cartório), os dados originais não migram para o SAEC, apenas os elementos já anonimizados que contenham um intrínseco valor estatístico, indispensável para a confecção de índices[12].

O modelo defendido pelo IRIB foi apresentado na edição de 2020 do World Bank Conference on Land & Poverty, realizado em modo virtual entre os dias 16 e 20 de março de 2020. Neste importante encontro internacional, a engenheira ADRIANA UNGER, que já havia trabalhado na especificação do SREI – então na coordenação do NEAR-lab[13] – juntamente com outros cientistas, apresentaram a proposta do IRIB/USP intitulada Measuring Property Registry In Brazil: A Privacy By Design Econometric Model em que as ideias aqui expostas foram aprofundadas e a cujo paper remetemos os Srs. Magistrados interessados na matéria[14].

Esse modelo poderá, a critério da Eg. Corregedoria Nacional de Justiça, ser adotado pelo ONR-SREI.

SINTER <– Centrais <– e oficiais

 Admitido que o registro de imóveis eletrônico “espelhado”[15], em fase de construção pela Receita Federal do Brasil, deva mesmo ser consumado, chama a atenção o fato de que os documentos “nato digitais estruturados que identifiquem a situação jurídica do imóvel, do título ou do documento registrado” (art. 5º do Decreto 8.764/2016) sejam transmitidos à ARISP que se encarregaria de fazer a entrega ao SINTER a posteriori.

Esse pit-lane é simplesmente ilegal, pois tal arquitetura não encontra qualquer fundamento nas Leis 11.977/2009 e 13.465/2017, tampouco no Decreto 8.764/2016, e nem, por óbvio, no Provimento CN-CNJ 89/2019.

Eis como o Decreto 8.764/2016 dispôs sobre a função das centrais no ecossistema do SINTER: o “acesso dos órgãos e das entidades da administração pública federal às centrais de serviços eletrônicos compartilhados de registradores para operações de consulta, visualização eletrônica de matrículas e de títulos, requisição e resposta será operado exclusivamente por meio de interface do SINTER” (art. 7º do Decreto 8.764/2016).

A Lei 13.465/2017 revogou implicitamente essa parte do Decreto do SINTER ao dispor que a “administração pública federal acessará as informações do SREI por meio do Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais (SINTER), na forma de regulamento” (§ 7º do art. 76). Do mesmo jaez o art. 41 da Lei 11.977/2009. O “regulamento”, a que se refere a Lei 13.465/2017, veio afinal com o Provimento CN-CNJ 89/2019. Este é o quadro legal e regulamentar que deve orientar os intérpretes nessa matéria.

A chave para compreensão de tudo isso é o Manual Operacional do SINTER (inc. III do art. 2º do Decreto 8.764/2016) documento que visa detalhar e especificar como será o “sistema registral especular” sediado nas Centrais e no SINTER. Esse modelo, salvo melhor juízo, não é adequado para o bom funcionamento do Sistema Registral brasileiro que o Poder Judiciário tem a missão histórica, legal e constitucional de regulamentar, fiscalizar e zelar.

Ademais, o dito Manual Operacional não foi homologado pela Corregedoria Nacional de Justiça, consoante se pode comprovar pelo andamento do PP 0005650-96.2016.2.00.0000. Por decisão de 6/5/2020, de lavra do ministro HUMBERTO MARTINS, há a necessidade de apresentação de uma nova versão do Manual Operacional do SINTER quanto à interconexão entre o SINTER e o SREI pelo seu comitê gestor, órgão competente para tanto, considerando as regras supervenientes trazidas pelo Provimento CN-CNJ 89/2019.

Após realizadas todas essas adequações, o Manual Operacional do SINTER, relativo ao registro imobiliário, deverá ser submetido ao Plenário do Conselho Nacional de Justiça para sua homologação, de modo a tornar obrigatória a sua observância pelas serventias extrajudiciais envolvidas[16].

Além de não ter sido homologado o Manual Operacional, a Excelentíssima Senhora Corregedora-Nacional de Justiça, Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, proferiu o seguinte despacho:

“Contudo, tendo em vista que os presentes autos aguardam a adequação do manual nos termos determinados no bojo do presente pedido de providências, bem assim que a Secretaria da Receita Federal já está recebendo os dados das unidades, e em face do advento da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, determino a suspensão do encaminhamento dos dados às Centrais Eletrônicas de Serviços Compartilhados, pelo menos até que a questão seja mais bem examinada oportunamente, mantido o envio de informações diretamente pelas unidades do serviço de registro de imóveis à Secretaria da Receita Federal do Brasil (SINTER), como tem sido feito”[17].

Em vista do exposto, pergunta-se: como permitir que as Centrais Estaduais atuem como ramais da Receita Federal do Brasil, acolhendo os dados gerados por cada unidade de serviço registral do país? Como permitir que sejam formadas bases de dados em entidades privadas ou centrais estaduais despersonalizadas (ou para-centralistas) tudo à margem do ONR-SREI, regulamentado e fiscalizado pelo Poder Judiciário (CNJ e Corregedorias estaduais)?

Conclusões

Em visto de todo o exposto, entendemos que a Central ARISP deve ajustar-se às diretrizes e padrões estabelecidos pela LGPD, mas igualmente às Leis 11.977/2009 e 13.465/2017 e atos normativos baixados pela E. Corregedoria-Nacional de Justiça e pela E. Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, nos termos do artigo 34 do Provimento CN-CNJ 89/2019:

“Art. 34. As Corregedorias-Gerais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal fiscalizarão a efetiva vinculação dos oficiais de registro de imóveis ao SREI e a observância das normas previstas neste provimento, expedindo as normas complementares que se fizerem necessárias, bem como deverão promover a revogação das normas locais que contrariarem as regras e diretrizes constantes do presente provimento”.

Por fim, não se deve olvidar que o Provimento nº 47/2015, base normativa para o funcionamento das centrais estaduais, foi expressamente revogado pela Corregedoria Nacional de Justiça por meio do Provimento CN-CNJ 89/2019 (art. 37).

Era o que nos competia informar a Vossa Excelência, o que sempre fazemos com respeito, acatamento e o agradecimento por nos franquear veicular a posição do Instituto que tenho a honra e o gosto de dirigir.

São Paulo, 28 de novembro de 2020.

SÉRGIO JACOMINO

Presidente.

FLAUZILINO ARAÚJO DOS SANTOS

Diretor de Tecnologia da Informação.


Notas

[1] Informação prestada no Processo CG 2020/95134 em 28/11/2020.

[2] V. voto do min. DIAS TOFFOLI no acórdão proferido no PP 0003703-65.2020.2.00.0000, Minas Gerais, j. 23/6/2020, relator ministro HUMBERTO MARTINS. Acesso: http://kollsys.org/p2e.

[3] Nesta histórica e importante decisão de nosso Supremo Tribunal Federal discutem-se aspectos inteiramente pertinentes aos temas aqui tratados como a autodeterminação informativa, finalidade, proporcionalidade e preservação de dados pessoais, mesmo diante de requisições feitas pelo próprio Estado. Não é o caso de discutir em detalhes os impactos que tal orientação político-jurídico terá sobre as atividades notariais e registrais. Basta que se fixe a ideia de que mesmo diante de uma exigência legal, que endereçava ao IBGE os dados colhidos junto a empresas de telefonia, deve-se sopesar os aspectos envolvidos na tutela do direito à privacidade. A “proteção atribuída ao direito de autodeterminação constitui importante chave interpretativa do âmbito de proteção do direito fundamental à proteção de dados pessoais, o qual não recai propriamente sobre a dimensão privada ou não do dado, mas sim sobre os riscos atribuídos ao seu processamento por terceiros”, como registrou em seu voto o ministro GILMAR MENDES. Acesso: https://bit.ly/STF-privacidade.

[4] A definição de documentos correntes, intermediários e de preservação permanente (art. 8º da Lei 8.159/1991), coordena-se com a gestão documental do extrajudicial que conta com uma tabela de temporalidade e disposições esparsas nas Normas de Serviço do Extrajudicial. V. Provimento CN-CNJ 50/2015, de 28/9/2015, min. Nancy Andrighi. Acesso: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2512.

[5] O primeiro e-mail recebido no Quinto Registro de Imóveis nos foi endereçado a 2/5/2019, assinado por estatisticas@arisp.com.br. Do corpo do texto se extrai: “A Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo – ARISP solicita a todos os Cartórios de Registro de Imóveis o envio da cópia dos Arquivos da DOI (Declaração sobre Operações Imobiliárias) para fins de estudos e estatísticas”.

[6] Já citado Processo CG 53.702/2020, Osasco, decisão de 5/11/2020, Dje 5/11/2020, des. RICARDO MAIR ANAFE. Acesso: http://kollsys.org/plm.

[7] O subscritor tem plena consciência de que, em regra, não se afastam administrativamente dispositivos legais ou regulamentares que possam ser considerados inconstitucionais. Todavia, indico, para conhecimento, o excelente estudo encomendado pela AMB – Associação de Magistrados Brasileiros ao Prof. Dr. ANDRÉ RAMOS TAVARES – SINTER – legitimidade e adequação ao Sistema Jurídico-Constitucional. São Paulo: AMB, 2017. Acesso: https://bit.ly/SINTER-Tavares.

[8] Essa concepção já vinha claramente delineada na documentação técnica aprovada pela Recomendação CN-CNJ 14, de 2014. Brevitatis causa: BERNAL. Volnys. UNGER. Adriana Jacoto. SREI – Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário – Parte 1 – Introdução ao Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário. São Paulo: LSITec, 2012, item 3.3.1. Acesso: https://folivm.files.wordpress.com/2011/04/srei_introducao_v1-0-r-7.pdf.

[9] V. § 4º do art. 23 da LGPD.

[10] Recomendação 14, de 2/7/2014, Dje de 7/7/2014, cons. GUILHERME CALMON. Dispõe sobre a divulgação do resultado de estudos realizados para a especificação do modelo de sistema digital para implantação de Sistemas de Registro de Imóveis Eletrônico – S-REI. Acesso: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2035.

[11] Na capital de São Paulo, por exemplo, a municipalidade mantém na internet, inteiramente disponível, o cadastro municipal com dados quer podem servir para recombinação com os elementos já anonimizados. http://geosampa.prefeitura.sp.gov.br/

[12] O modelo teórico foi desenvolvido pelo Eng. EDUARDO ROTTMANN, Engenheiro Civil e Mestre pela Escola Politécnica da USP, Membro titular do IBAPE-SP e pelo Prof. Dr. NELSON LERNER BARTH, Engenheiro Eletrônico, Doutor em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas, Professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV sob coordenação da Eng. Mst. ADRIANA UNGER e da Dra. NATALY CRUZ do NEAR-lab – Laboratório do Núcleo de Estudos Avançados do SREI, incubado no IRIB.

[13] NEAR-lab – Núcleo de Estudos Avançados do Registro de Imóveis eletrônico é uma iniciativa que esteve incubada no IRIB e que se dedicou a pesquisar os temas relacionados com inovações tecnológicas relativas ao Registro de Imóveis eletrônico. Site: www.near-lab.com.

[14] UNGER. Adriana, BIONI. Bruno, FANTINATO. Marcelo e LUCIANO. Maria. Measuring Property Registry In Brazil: A Privacy By Design Econometric Model. 2020 World Bank Conference on Land & Poverty – The World Bank – Washington DC, March 16-20, 2020. Acesso do paper na íntegra pode ser obtida aqui: https://www.researchgate.net/publication/340087960.

[15] Nunca foi segredo que o objetivo da RFB com a iniciativa do SINTER foi normatizar e regulamentar o Registro de Imóveis eletrônico, enunciado na Lei nº 11.977/2009. Vide as fontes primárias citadas em JACOMINO. Sérgio. Sinter – riscos e benefício. São Paulo: IRIB. Boletim do IRIB em Revista n. 359, maio de 2019, p. 132. Acesso: https://issuu.com/sergiojacomino/docs/bir_359-2019.

[16] PP 0005650-96.2016.2.00.0000, decisão de 6/5/2020, Dje 7/5/2020, ministro HUMBERTO MARTINS. Acesso: http://kollsys.org/ots.

[17] PP 0005650-96.2016.2.00.0000, decisão de 21/11/2020, Dje de 27/11/2010. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA. Acesso:  http://kollsys.org/pob.

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