Registro e Cadastro – Uma interconexão necessária

Sérgio Jacomino [1]

Para enfrentar o problema da necessidade de integração entre o registro e o cadastro físico; para tentar apontar os benefícios recíprocos que a conexão propiciaria; para compreender que os registros de segurança jurídica não se desnaturalizariam com a conjugação de informações com os cadastros físicos, é preciso verificar ligeiramente a figura da matrícula nos registros imobiliários, como foi introduzida em nosso sistema e qual a sua natureza jurídica. Principalmente, extremar os conceitos de matrícula e cadastro, que promiscuamente rendem interpretações equívocas em nosso meio.

O termo matrícula é de fato rico em significações e bastaria uma avaliação de seu emprego em outros campos do direito, restringindo assim a pesquisa onomasiológica, para verificar o caráter plurívoco e polissêmico que encerra.

Ao longo dos anos, o termo matrícula pôde significar tanto a inscrição necessária para o exercício do comércio[2], quanto o registro de navios e embarcações; podia indicar o procedimento para estabelecimento de empresas de armazéns gerais,[3] ou o cadastro do leiloeiro, atividade que se exerce mediante prévia matrícula no órgão respectivo. O próprio registro Torrens, hoje regulado pela Lei 6015/73, previa, desde o ano de 1890, a matrícula nos procedimentos de registração.[4] A vigente lei de registros públicos igualmente prevê a matrícula de oficinas impressoras, jornais, periódicos, empresas de radiodifusão e agências de notícias.[5]

O conceito de matrícula no registro imobiliário entre nós foi sendo joeirado pela contribuição sistemática de inúmeros estudiosos ao longo do tempo, desde o advento da Lei 6015/73, até os dias de hoje. A comunidade de estudiosos do direito registral permitiu fixar, com razoável precisão, o conceito jurídico de matrícula.

Conceito de matrícula

Assim, matrícula, para Maria Helena Leonel Gandolfo é “um ato de registro, no sentido lato, que dá origem à individualidade do imóvel na sistemática registral brasileira, possuindo um atributo dominial derivado da transcrição da qual se originou”[6]

Partindo da definição da notável registradora paulistana, poderíamos destrinçar seus elementos e tecer algumas considerações com o fim de bem fixar o conceito.

Assim como a inscrição pode significar tanto o ato de inscrever quanto o seu resultado (o inscrito)[7], para fins pedagógicos poderíamos distinguir entre o ato jurídico de matrícula – no sentido de inscrição inaugural no sistema de fólio real –  e a matrícula como sinônimo de fólio real, que encerra as inscrições a ele endereçadas relativamente à unidade predial.

Na sua formulação substantiva, o termo matrícula acena para o sentido já registrado nos bons dicionários latinos, cuja raiz aponta para a idéia de rol e, mais amplamente, de registro público.[8]Com o sentido de fólio real, a matrícula é a própria folha, a base – continente registral – sobre a qual vão aportar os assentos relativos ao domínio e às demais mutações jurídicas – conteúdo registral – que tenham por objeto o imóvel matriculado.[9]

A matrícula, com o sentido lato de registro, é a primeira inscrição no fólio real[10]. Pois, assim dito, subentende-se: (a) que se trata de um registro jurídico – para afastar a idéia de que a matrícula seria tão-só um ato cadastral[11] (b) que estamos diante de um ato jurídico cuja conseqüência imediata é fixar o atributo de dominialidade, enunciando a situação jurídica do imóvel e (c) que a matrícula, entendida como ato jurídico de inscrição, pode apresentar nítida distinção em relação ao fólio real, que é o suporte da inscrição.

Matrícula e cadastro – rápidas distinções

Afrânio de Carvalho desde muito cedo refutou a idéia de que a matrícula representasse meramente um ato cadastral, que pudesse assim ser deixada “solta no mundo da irrelevância”.[12] Com certa razão a crítica, pois a tendência dos comentadores de primeira hora, provavelmente afetados pelas frustradas tentativas de aproximar o nosso sistema de direito registral ao alemão, acabou considerando o advento da Lei 6015/73, e especialmente da instituição da matrícula, como o marco legal da instituição entre nós de um verdadeiro cadastro.

Enfim, a matrícula é a inscrição primigênia no fólio real, base para qualquer outra que lhe suceda, porque passa a fundamentar o direito de propriedade sobre o imóvel.

Prosseguindo, afirma-se que a matrícula dá origem à individualidade do imóvel. O sistema anterior era organizado tendo por base um fólio coletivo, de base documental, ou mista, em que o assento se perfazia pela “transcrição” do título, em ordem cronológica, podendo albergar dita “transcrição” mais de um imóvel ou partes ideais, embora pudesse referir-se – essa a hipótese mais comum – a um só imóvel. Na verdade, com o advento da atual lei de registros públicos, houve a opção pela técnica do fólio real, que organiza a publicidade imobiliária a partir da unidade predial e sua respectiva matriz, em implicação recíproca.[13]

O aspecto que merece a minha melhor consideração, nesse passo, é que a matrícula, como sinônimo de fólio real, é um importante divisor sistemático, contrastando os modelos de organização da publicidade imobiliária pela ênfase que deposita no ordenamento real. Portanto, não é a matrícula que daria origem à individualidade do imóvel – a sugerir que o antecedente da matriz seria o caos de indeterminação objetiva – mas enfatizando a organização do sistema nessas bases, define-se a relação que vai imperar na ordenação criadora dos assentos – um imóvel uma matrícula.

Matrícula – recidiva de domínio

A definição oferecida pela estudiosa de direito registral culmina com o reconhecimento do atributo dominial derivado da transcrição.

Mais uma vez, Afrânio de Carvalho socorre-nos em boa doutrina para justificar o caráter dominial da matrícula[14]. De fato, a inscrição originariamente feita no livro de transmissões – o antigo livro 3 do Decreto 4857/39 – sofre uma mutação morfológica, uma mudança exterior, sem qualquer interferência substancial. A mudança do sistema, que impõe agora uma nova forma de organização do registro, não contamina a medula do sistema registral brasileiro: a matrícula representa a recidiva de domínio.

Parafraseando Marshall McLuhan, que no clássico Understanding Media proclamou que o meio é a mensagem, a forma é o conteúdo, poderíamos aproveitar o delicioso mote para expressar a tendência natural de que a revolução formal experimentada pelo registro brasileiro acarretasse, como poderosa vis atractiva, a instituição de sua contraparte material – a consagração do eixo fundamental e estrutural de um registro imobiliário moderno, a fé pública registral. Mas, a mudança do sistema de organização fundiária no Brasil, com a introdução do fólio real, até hoje anela a necessidade de uma integração com o cadastro físico. A matrícula clama naturalmente pela sua contraparte: o cadastro – quod omnia intendunt assimilari capitastrum. Essa necessidade estrutural do sistema se expressa timidamente em alguma referência legal (Art. 176, § 1o, 2, III e art. 278, § 1o, III da Lei 6015/73 sem falar nos dispositivos do Estatuto da Terra).

Mas é preciso consignar que nem sempre o atributo dominial da matrícula é derivado da transcrição que a antecede. Pode ocorrer que o fólio se inaugure com a inscrição primigênia que inicia não só o historial tabular, mas também a fixação inaugural de seu atributo dominial: é o début registral, no dizer de García Coni.[15] Há casos em que o imóvel, através da matrícula, passa de uma realidade extra registral ao regime da publicidade registral, ficando adstrita aos seus rigores e efeitos. Assim, por exemplo, no processo administrativo discriminatório de terras devolutas da união,[16] ou na matrícula de bens públicos – quando se pensa na necessidade de matriculação desses bens quando desafetados para alienação. Pense-se na usucapião, na acessão (aluvião, avulsão) nos títulos de domínio anterior ao Código Civil – cujos titulares, na opinião de Walter Ceneviva, têm “direito adquirido ao não registro, mesmo para assegurar disponibilidade[17] etc.

Inscrição, especialidade e determinação

Embora a matrícula de fato tenha representado um grande avanço na organização do registro predial brasileiro, a grande dificuldade que ainda resiste bravamente, e desafia a inteligência dos operadores do direito, é a imperfeita determinação dos bens imóveis, já que o nosso sistema registral padece, como já apontado, com a falta de conexão com um sistema cadastral minimamente organizado.

Suspeito que a doutrina hipotecarista brasileira (mais do que a doutrina, a iterativa jurisprudência administrativa e registral) identificando claramente as deficiências que decorrem dessa falha estrutural – mirando-se no sistema paradigmático do direito tudesco – substituiu a falta de integração com o cadastro físico pelo reforço da idéia de especialização do imóvel pela descrição literal do bem. Naturalmente, vimos investindo no aperfeiçoamento da chamada especialização do bem inscrito, optando-se, todavia, pelo procedimento técnico mais inadequado. Como conseqüência, nosso sistema registral está como que condenado a um injusto purgatório, pois ainda padece dos atributos necessários para consagrar, à perfeição, a eficácia da inscrição.

Ocorre uma curiosa idealização no nosso sistema. Assim, quanto mais detalhada fosse a descrição do imóvel matriculado, com todas as minudências expressas em descrições literais, maior seria a segurança, pouco importando que simplesmente se reproduz em um novo meio (matrícula) um ultrapassado modelo de determinação e individuação dos imóveis, exatamente como se dava nos longevos registros (transcrições). À mingua de uma necessária interconexão entre o registro de segurança jurídica e o cadastro físico, procurou-se fazer repousar na técnica da especialidade literal do bem matriculado a compensação dessas notórias deficiências. Levadas às últimas conseqüências, a especialização do bem, assim encetada, representa um notável retrocesso sistemático, pois simplesmente reproduz um procedimento anacrônico para a determinação do bem inscrito. Nem mesmo as famosas retificações de registro, pelos motivos que abaixo serão apontados, logram atingir um grau mínimo de segurança na determinação dos bens imóveis.

Acostumados ao jargão técnico que se fez dominante após o advento da Lei 6015/73, dizemos que os imóveis matriculados devem estar “especializados”, isto é, perfeitamente descritos e caracterizados, com todas as minudências que permitam individuá-los e estremá-los de quaisquer outros.

Perseguimos a segurança jurídica, fazendo concretizar-se o princípio de especialidade.

Mas, lamentavelmente, estamos faltos de uma abordagem estrutural, uma visão de conjunto, pois a segurança jurídica que se busca na precisa especialização do bem imóvel não logra atingir perfeitamente a conexão da parcela com sua confinância. Não há no registro uma representação da imbricação que se verifica no solo. Ou seja, temos uma visão fragmentária das parcelas, sem qualquer elemento de amarração estrutural com o todo. Em suma, tem-se, ainda, uma visão atomizada, pulverizada, desestruturada, dos imóveis que se entretecem na vasta malha do território.

O “beliche dominial” e a fé pública registral

Essa a razão da recorrente superposição de parcelas, acarretando o que tenho denominando de  síndrome de beliche dominial, com títulos contraditórios, versando sobre bens imóveis que se superpõem. Ingressando no ofício predial, inoculam o germe da nulidade pela destruição da legitimação do registro pela dupla matriculação – problema pouco explorado por nós e que está a merecer um estudo mais detido.

Poucos se aperceberam que a relutância em admitir-se entre nós a fé pública registral, robustecendo a eficácia do registro, se deve, em grande parte, às deficiências na determinação segura dos bens que são objeto das inscrições. E a deficiência é sempre magnificada e agravada pela falha estrutural de inexistência de integração entre o registro de segurança jurídica e o cadastro físico.

Não se dá o caso de que o nosso registro predial seja inseguro. O sistema provê certa segurança, digamos estática, mas descura, por razões históricas e culturais, uma visão dinâmica do fenômeno consistente na constrasteação das confrontações. A dialética da confinância produziria a melhor determinação e individuação de cada imóvel objeto da inscrição. As referências da confinância, não sendo hauridas da descrição literal do próprio imóvel, mas resgatadas de uma planta cadastral segura, geraria uma certeza robustecida. Cresceria a segurança jurídica que o sistema almeja.

Demarcação de terras e queima de cartórios

A opção do legislador civil originalmente recolheu as idiossincrasias culturais e históricas da realidade fundiária brasileira, forjando um estatuto legal de extraordinária importância. Posteriormente, a doutrina e a jurisprudência, agravando a opção pelo modelo em vigor, acabaram por aprofundar o divórcio entre o registro e o cadastro – ao ponto de muitos registradores até hoje resistirem desconfiados à idéia dessa fundamental integração.

Os motivos são vários e não cabe aqui, nesta ligeira exposição, enumerá-los em pauta extensiva.

Mas, recolhem-se índices simbólicos que permitem descerrar os motivos dessa opção hoje consagrada. Em primeiro lugar o histórico contubérnio entre terras públicas e particulares, que dispensa maiores comentários. Além disso, a contradição entre a necessidade da regulamentação da propriedade e o modelo de exploração econômica da colônia que se assentava na agricultura predatória e extensiva, prática que se tornou regra depois da independência e se manteve até há bem pouco tempo como uma chaga da realidade fundiária e ambiental brasileira. Na voz autorizada de um cronista, essa contradição era aguda e nitidamente sentida pelos contemporâneos: “terrenos devolutos quase todos têm há doze anos a esta parte explorados, invadidos e apossados por um aluvião de pessoas e convertidos em fazendas”. Prosseguindo, anota que “um germe fecundíssimo de desordens e de crimes tem sido a confusão dos limites das propriedades rurais, tanto as adquiridas por sesmarias primitivamente, como as havidas por título de posse com cultivos efetivos. As divisas principalmente dessas ultimas só são firmadas e respeitadas por armas de fogo desfechadas de emboscadas de trás dos grossos troncos de nossas árvores seculares.”[18]

De qualquer maneira, a anarquia verificada na titulação de terras acabaria por redundar no primeiro diploma legal que visava pôr ordem no caos: a chamada Lei de Terras – Lei 601, de 18 de setembro de 1850. No transcurso de inúmeras tentativas legislativas baldadas, levadas a cabo para regularizar a questão das terras no Brasil, vemos a violenta resistência à organização fundiária, acirrando e consagrando o aspecto “agrarista” da sociedade brasileira. Desde o arrasamento de São Vicente, em 1534, patrocinado pelos misteriosos Bacharel do Iguape e Ruy García Moschera, acompanhados dos índios carijós, destruindo o pelourinho, arrombando a cadeia, libertando os prisioneiros e destruindo o cartório por incêndio, “queimado o ‘livro do tombo’, no qual estavam registradas as escrituras de sesmarias”[19], o que a história flagra é uma contínua e invariável reincidência de conflitos que versam sobre a questão da titulação das terras e especialmente sobre a demarcação das glebas.

Sobre incêndios em cartório, valeria um capítulo e merece breve referência aqui a revolta do Quebra-Quilos em que os proprietários, insatisfeitos com a adoção do sistema de medição e demarcação das terras, insuflaram a população a queimar cartórios.[20]

Enfim, a precária demarcação de terras acaba ocorrendo pela necessidade de substituir a garantia de escravos pela hipoteca, que exige, como é cediço, a identificação da garantia. Mas a perspectiva individualista da propriedade, dissociando-a de uma planta cadastral, permanece como um traço que ilumina nossa vocação àquela visão estática da especialização do imóvel. Não se releva a imbricação que acarreta uma visão global oferecida por uma planta cadastral. O ponto de partida da especialização é sempre a parcela, ou seja os interesses individuais do proprietário que se projetam sobre os interesses públicos de racional ordenação do solo. Até hoje os cadastros urbanos e rurais se  nutrem de informações parcelares, oferecidas unilateralmente pelo interessados – às vezes nem mesmo o proprietário – reproduzindo, sem que isto seja mera coincidência, o que já dispunha, por exemplo, o Registro do Vigário (art. 91) e a própria Lei 601, de 1865, que já previa a criação nas freguesias do “registro das terras possuídas, sobre as declarações feitas pelos respectivos possuidores, impondo multas e penas àqueles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declarações, ou as fizerem inexatas”.

Até mesmo o dístico “um imóvel, uma matrícula”, que orna os umbrais dos registros brasileiros, à parte representar importante fundamento operacional e marco legal, parece nutrir e estimular essa visão fragmentária do fólio imobiliário.

A força do registro imobiliário

O registro imobiliário não reproduz, ainda, e fielmente, a feição do território – salvo os casos recentes de parcelamentos do solo urbano, orientados por critérios técnicos de levantamento cartográfico aceitáveis (referências a marcos “amarrados” a redes geodésicas). Se partíssemos da descrição encontrada em cada matrícula e a partir delas nos propuséssemos a “remontar” a imagem do território de uma dada região, obteríamos como resultado um monstro disforme, uma representação completamente descaracterizada da realidade fundiária.

É preciso reconhecer, por outro lado, que tal ocorre não por culpa do profissional do direito encarregado desse mister. De fato, os registradores brasileiros sempre responderam à altura dos ingentes desafios de prover segurança jurídica aos negócios imobiliários. Mas, somos tributários de uma larga tradição que sempre buscou traduzir o objeto da inscrição em termos de descrição literal, quase sempre imperfeita. Os exemplos mais estapafúrdios povoam a literatura técnica e, o que é pior, compõem ainda hoje parte considerável dos registros prediais: imóvel que confronta com “os impossíveis da serra”; linha que divide com um “cemitério de índios”; prédio rústico que faz limite com o “pasto da vaca mocha” etc.

Estamos lamentavelmente presos a uma visão equivocada, além de superada, histórica e tecnologicamente. Mesmo tendo havido um salto qualitativo com o advento da sistemática da Lei 6015/73 – que ordena o registro a partir do imóvel, formando uma “base cadastral”, na dicção de alguns estudiosos de primeira hora – o fato é que, na matrícula, supervalorizamos, ainda, o elemento descritivo, literal, desprezando-se outros elementos seguros para a perfeita identificação do imóvel.

Assim, mesmo tendo o chamado sistema de fólio real priorizado o objeto (imóvel) na organização dos registros, não houve o correspondente aperfeiçoamento técnico na determinação do bem. Os memoriais descritivos, elaborados em muitos casos sem qualquer rigor técnico, apresentam sérios problemas e é comum não apresentarem correspondência com o que se encontra no solo. São conhecidos os exemplos de “ablaqueação”, “registros sem lastro”, para usar expressões cunhadas por Ricardo Henry Marques Dip e que fizeram fama no meio registral.

Ainda recentemente divulgaram-se notícias de fraudes em títulos e registros de imóveis rurais[21]. As superposições, intersecções e omissões de parcelas, que acarretam a nulidade e o bloqueio de matrículas, destruindo o eixo fundamental do registro (legitimação), se devem à falta de integração entre o registro predial e o cadastro.

Por outro lado, os registros também são feitos com suporte em títulos judiciais como retificações de registro,  discriminatórias e usucapiões.  Ainda assim a inscrição padece do mesmo mal. São registros inorgânicos.

Embora padeça de reconhecidas imperfeições, o registro cumpre magistralmente o seu papel. O que não deixa de ser paradoxal, pois a modesta taxa de litígios que versam sobre conflitos de domínio desorienta os seus críticos. Afinal, imóveis imperfeitamente descritos, em tese, proporcionariam infindáveis demandas judiciais.

Mas o fato é que, em parte, os registros ainda conservam um elemento importantíssimo de determinação do bem imóvel, embora este possa não estar representado no registro – especializado, como diríamos – com o rigor necessário para estremá-lo de qualquer outro, evitando-se a superposição. Muitas vezes, um imóvel imperfeitamente descrito é perfeitamente determinado. Depois, os limites naturais dos prédios rústicos e urbanos são socialmente reconhecidos e respeitados. E acima de tudo, o registro representa a segurança jurídica. A posse, que é a visibilidade do domínio, quando robustecida com um título de domínio, afasta, de maneira eficaz, grande parte dos conflitos.

Mas as exigências de segurança cada vez mais se impõem como uma verdadeira necessidade social. Parece que estamos chegando a um ponto de mutação, para usar uma expressão de moda. Paradoxalmente, somente atingiremos um estado aceitável de segurança na determinação das parcelas quando abandonarmos esse modelo que se baseia, quase que exclusivamente, na abordagem individualizada e atomizada dos imóveis. É preciso vislumbrar um novo modelo “holístico”, conceito que se aproxima de um cadastro físico, perfeitamente integrado com o registro imobiliário, servindo à sociedade como um todo. Hoje é mais do que necessário pensarmos um cadastro (multifinalitário?)  que possa absorver, segundo critérios técnicos e científicos, previamente estabelecidos e validados, as  informações dos vários níveis, seja em relação à questão física, agrária, ambiental, tributária, seja, na outra ponta, em relação a todas as questões relacionadas com o exercício e garantia dos direitos dominiais.

O relacionamento dos cartórios com as instituições públicas merece uma reavaliação, uma nova abordagem. Hoje, existe uma preocupação  institucional  muito maior em relação à perfeita integração num cadastro, que seja multifinalitário, que possa atender a múltiplas demandas sociais – públicas e privadas. É mais ou menos este o sentido que estamos tentando perseguir para o registro, pensar um registro para o Brasil nesses moldes. Por isso,  procurou-se uma parceria científica com a universidade. Por isso estamos aqui, para contribuir com a nossa experiência e com os nossos conhecimentos.


[1] Sérgio Jacomino é Registrador Imobiliário em São Paulo, Capital. Texto originalmente publicado em 17.10.2000 no site do IRIB.

[2] Código Comercial, Lei 556, de 25/6/1850

[3] Decreto 1102, de 21/11/1903

[4] Cfr.Dec. 451-B, de 31/5/1890 e seu regulamento, Dec. 955-A, de 5/11/1890.

[5] Cfr. art. 116, 123, 124, 125 e 126 da Lei 6015/73.

[6] Gandolfo, Maria Helena Leonel. Reflexões Sobre a Matrícula 17 Anos Depois. RDI 33/105, São Paulo, jan./jun. 1994.

[7] Wolff, Martin. et. al. Tratado de Derecho Civil, Derecho de Cosas. 3a ed. 1o Vol. Barcelona : Bosch, 1970, p. 177.

[8] Saraiva, F.R. dos Santos. Novíssimo Diccionario Latino Portuguez. 8a. ed. Rio de Janeiro : Garnier, 1924, p. 718. Cfr. também Torrinha, Francisco. Dicionário Latino Português. 3a ed. Porto : Gráficos Reunidos, 1985, p.506; Silva, De Plácido e. Vocabulário Jurídico, Vol III e IV, 3a ed. Rio de Janeiro : Forense, 1993, p. 164

[9] Aproveitando a ilustração dada por Nalini. José Renato. A Matrícula e o Cadastro no Registro Imobiliário. São Paulo : RDI 37/17, jan./abr. 1996.

[10] Carvalho, Afrânio de. Registro de Imóveis. 3a ed. Rio de Janeiro : Forense, 1982, p. 434 passim. Sustentando tratar-se de um ato de registro: Silva, Gilberto Valente da. A Matrícula. Mim. Encontro Regional de Registradores Cuiabá – MT, 1987.

[11] Como advogam Balbino Filho, Nicolau. Registro de Imóveis. 6a. ed. São Paulo : Atlas, 1987, p. 92, citando Jether Sotano;Oliveira, Édson Josué Campos de. Registro Imobiliário. São Paulo : RT 1976.

[12] Carvalho, Afrânio. A Matrícula no Registro de Imóveis. São Paulo : RDI 5/31, jan./jun. 1980.

[13] Dip, Ricardo Henry Marques. Do Controle da Disponibilidade na Segregação Imobiliária. São Paulo : RDI 22/54, jul./dez., 1988

[14] Carvalho, Afrânio. Op. Cit. p. 432

[15] García Coni, Raul R. El Contencioso Registral. Buenos Aires : Depalma, 1978, p. 75. Adverte-nos Coni que, no direito argentino, denomina-se matriculação à passagem do antigo sistema cronológico à técnica de fólio real. Por essa razão, matrícula e fólio real se empregam como sinônimos. (loc. cit.). Cfr. do mesmo autor Registración Inmobiliária Argentina. Buenos Aires : Depalma, 1983, p. 76.

[16] Lei 6383, de 7/12/76. Cfr. art. 13, § único: “caberá ao oficial do Registro de Imóveis proceder à matrícula e ao registro da área devoluta discriminada em nome da união”.

[17] Ceneviva, Walter. Lei dos Registros Públicos Comentada. 7a ed. São Paulo : Saraiva, 1991, p. 341-342.

[18] Viana, João Caldas. Relatório do presidente da província do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1843, p. 4

[19] Bueno, Eduardo. Capitães do Brasil – a saga dos primeiros colonizadores. Icoleção Terras Brasilis, Vol. III. Rio de Janeiro : Objetiva, 1999, p. 98 passim.

[20] Barman, Roderick J. The brazilian peasantry reexamined: the implications of the Quebra-Quilos revolt. (1874-1875) in Hispanic American Historical Review, vol. 57, n. 3, 1977. Posteriormente, nas páginas de Terras do sem fim, Jorge Amado iria imortalizar uma prática comum entre os coronéis: o caxixe “que era registrar um título de propriedade à base de uma velha medição já sem valor legal” e o incêndio de cartórios, como o patrocinado pelo Coronel Teodoro no cartório de Venâncio (cfr. O capítulo gestação de cidades, n. 10)

[21] A Folha de São Paulo de 11/8/98 (editoria Brasil 1-12) estampou notícia que ilustra muito bem a confusão causada pela titulação anárquica que nos vem de há muito, potencializada pelo próprio INCRA: “No final da década de 50, o então governador Moisés Lupyon distribui títulos de posse das áreas a colonizadoras e grandes empreendedores. Para solucionar o impasse, o Incra ingressou com ações de desapropriação na áreas de conflito, emitindo títulos definitivos. Ao ingressar com as ações, o Incra utilizou, porém, transcrições de posse viciadas (sem amparo legal) de cartórios da região para identificar os réus (que seriam desapropriados). O ato do Incra aumentou a confusão, já que muitas áreas possuíam até cinco transcrições de posse (superposição de títulos)”. À parte a grosseira confusão sobre atribuições de registros prediais e serviços notariais, além de desconhecimento olímpico da outorga de títulos pelo Estado (e de seus efeitos nos registros), o fato é que a superposição denunciada se dá pela anarquia dos cadastros e falta de integração com os registros.